O julgamento dos 111 assassinatos de homens custodiados pelo Estado de São Paulo, no episódio conhecido como massacre do Carandiru, há 22 anos, finalmente terminou. No final da noite dessa terça-feira, o Tribunal do Júri do Fórum de Santana (zona norte) condenou a 624 anos de prisão, em regime fechado, o ex-policial militar Cirineu Carlos Letang, 50 anos. Ele foi sentenciado pela morte de 52 detentos que estavam no terceiro pavimento do pavilhão da unidade prisional, desativada em 2002. O massacre – assim classificado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) no ano 2000 – teve um total de 111 detentos mortos distribuídos em cinco pavimentos.
Realizados desde o primeiro semestre do ano passado, os julgamentos foram divididos pelo primeiro juiz do caso, José Nardy Marzagão, conforme a ordem de entrada de diferentes grupos especiais da PM no pavilhão 9. O argumento era um suposto princípio de rebelião causado pela briga de dois presos de gangues rivais.
Letang pertencia ao grupo de 26 policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) acusada pela morte de 73 presos do terceiro pavimento (equivalente ao segundo andar) – quase 70% do total no massacre. Desse grupo, 25 PMs foram condenados em julho do ano passado por 52 mortes, já que o Ministério Público pediu a absolvição deles por 21 mortes cuja autoria não ficou esclarecida.
Como o ex-policial já é réu preso, ele deixou o fórum direto para a Penitenciária de Tremembé, onde cumpre pena de 16 anos pelo homicídio do travesti Alison Braga, em 2011. Ele foi o primeiro de todos os 73 policiais já condenados no processo a não responder o processo em liberdade e, para os jurados, teve como qualificadora do crime o emprego de meio cruel que impossibilitou a defesa das vítimas.
Expulso da corporação e agora formado em Ciências Sociais, Letang já havia cumprido sentença de 60 anos reduzida a 18 anos, graças ao benefício da progressão penal, pelo assassinato de outros seis travestis – no meio policial, chegou a ficar conhecido como “O Matador de Travestis”. O ex-soldado da Rota seria julgado com os antigos companheiros de batalhão pelas mortes no Carandiru, mas a defesa conseguiu suspender o processo em relação a ele para requerer a realização de perícia que confirmasse suposta insanidade mental.
O laudo finalizado em outubro, segundo o promotor Daniel Tosta, apontou que o réu tem personalidade “paranoica”, mas não à época do massacre na antiga Casa de Detenção.
O júri demorou cerca de 12 horas e meia – o mais curto entre todos os quatro que já haviam sido realizados. Pela acusação, foi ouvido pela quinta vez desde 2013 o perito aposentado Osvaldo Negrini Neto, que realizou os laudos nas celas e corredores do pavilhão 9, à época. Negrini reafirmou as declarações dos julgamentos passados: afirmou haver marcas de rajadas de metralhadoras nas celas, o que reforça o argumento de mortes sem chance de defesa, usado pelo MP, e atestou que as cenas dos crimes foram adulteradas pelos policiais.
Testemunhas
Pela defesa, foram ouvidos três agentes penitenciários que trabalhavam no Carandiru, mas hoje atuam na Penitenciária de Serra Azul (interior paulista): Ronaldo Mazotto, José Rodrigueiro e Esmeraldino dos Santos. Desses, um não trabalhava no pavilhão 9, mas no 8, e outro não estava de plantão no dia em que os PMs entraram no complexo. O terceiro afirmou ter visto arma com detento uma única vez, “de longe”, e disse que, antes da suposta rebelião, havia “muitos pedidos de transferência” do local. Foi a primeira vez que eles depuseram no processo nesses 22 anos, observou o promotor.
A tese da defesa é que teria havido um confronto armado entre as partes – ainda que nenhum PM tenha morrido, e mesmo com laudos cadavéricos apontando que a maior parte dos mortos recebeu tiros na região da nuca e da cabeça.
Em interrogatório, Letang afirmou ter desmaiado após tomar um tiro no braço e que não teria revidado tiros supostamente desferidos por detentos. A acusação chamou a versão de “mentirosa” e afirmou aos jurados que, em outros depoimentos, o desfalecimento não fora sequer mencionado.
"Matador de travestis"
Já a advogada citou as condenações passadas do réu e indagou: “O senhor tem alguma coisa contra pessoas que têm homossexualidade?”. “Para mim, são pessoas normais”, respondeu.
“Esse fato (o massacre do Carandiru) em especial marcou muito a minha vida – fiz uma revisão total dos meus conceitos: pelo que aconteceu ali, eu poderia não estar aqui hoje ou até tomando coquetéis (de medicamentos)”, disse o réu, referindo-se ao risco que afirma ter corrido de contaminação pelo HIV, por sangue de detentos espalhado no pavilhão. A advogada indagou ao fim se Letang estava “em uma coisa chamada ‘seguro’, em Tremembé – nome dado à ala para onde são levados os presos que, a fim de terem a integridade física e moral preservada, ficam separados de outros egressos de outras penitenciárias do Estado. “Isso se existir seguro dentro do sistema prisional”, declarou o ex-PM.