Integração prevista na lei Maria da Penha ainda não funciona

14 anos após a criação da lei contra violência doméstica, 'Judiciário ainda não entendeu que se trata sobre acolhimento às vítimas'

19 ago 2020 - 09h10
(atualizado às 19h36)

Foram diversos episódios de agressão por parte do marido, incluindo duas tentativas de homicídio - uma delas envolvendo um tiro de espingarda que a deixou paraplégica e outra de eletrocussão durante o banho -, que motivaram uma farmacêutica a passar quase 20 anos tentando fazer com que seu agressor fosse condenado. Era assim que o Brasil deixava as mulheres que sofriam violência doméstica 14 anos atrás: desprotegidas, desmoralizadas e sem qualquer respaldo jurídico.

Maria da Penha passou quase 20 anos em busca de justiça e se tornou um símbolo de luta pelo fim da violência doméstica
Maria da Penha passou quase 20 anos em busca de justiça e se tornou um símbolo de luta pelo fim da violência doméstica
Foto: Instituto Maria da Penha / Reprodução

Esse famoso caso deu origem à lei que leva o mesmo nome da vítima, Maria da Penha. Mas isso só foi possível depois que ela conseguiu chamar a atenção de autoridades internacionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) que condenou o País por negligência. 

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Escrito e pensado por mulheres, o dispositivo, que faz aniversário no mês de agosto, prevê mecanismos para combater, conter e assistir às vítimas de violência doméstica de maneira ampla e multidisciplinar. Era a resposta que faltava no Brasil - e no mundo, já que foi considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a terceira lei em vigor mais avançada sobre o tema - para a violência de gênero. A ideia de uma rede de acolhimento envolvendo esforços de todos os lados da sociedade e do Estado foi extremamente elogiada na época - só é uma pena que sua aplicação também continue no campo das ideias.

“Gosto muito da lei no papel, mas o Judiciário tem alguns problemas de implementação”, aponta a advogada especializada no atendimento de vítimas de violência contra mulher e mestre em Direito e Políticas Públicas Eliane Almeida.

Entre os maiores problemas relacionado à eficiência da legislação indicados por especialistas do meio jurídico e grupos que prestam atendimento às vítimas, está a falta do olhar humanizado que é previsto no dispositivo, mas não é aplicado na prática. O principal motivo está na falta de comunicação entre os órgãos, que deveriam estar envolvidos no trabalho de amparo para essas mulheres.

“A Lei Maria da Penha tem a visão de que a violência doméstica é um problema complexo”, explica Cármen Campos, advogada e conselheira da ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, organização que participou da elaboração da lei. Segundo ela, a norma só será plenamente exercida quando houver integração entre todas as partes envolvidas. “A lei requer que os municípios, Estados e governo federal ajam de maneira integrada, junto de outros entes como o Ministério Público, a Defensoria Pública e sociedade civil. Essa é a ideia de rede, intersetorial, interinstitucional, para assistir à mulher da melhor forma possível.”

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Efeitos colaterais: a epidemia da violência doméstica
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O que prevê a lei

Sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Lei n. 11.340/2006 ou, Lei Maria da Penha, como ficou conhecida, passou a ser o primeiro dispositivo na legislação penal brasileira dedicado ao combate à violência de gênero.

Além de proteger as mulheres em situação de violência, punir os agressores e fortalecer o empoderamento feminino, a lei também exige, por meio da educação, a garantia dos direitos humanos para uma sociedade mais justa.

Até entrar em vigor, a mulher que passava por qualquer situação de violência doméstica e familiar tinha seu caso julgado por juizados especiais criminais, que enquadravam o crime como de menor potencial ofensivo, previsto na Lei n. 9.099/1995. Na falta de um aparato legal e especializado para punir o autor das agressões, o assunto era banalizado e sua pena poderia ser reduzida com o pagamento de cestas básicas ou trabalho comunitário.

Com a criação da legislação específica para o crime, as situações de violência doméstica passaram a ser tipificadas e definidas, consideradas não só na forma física, como também psicológica, sexual, patrimonial e moral. 

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A Lei Maria da Penha prevê que outros quatro tipos de violência, além da agressão, sejam considerados crime
Foto: Reprodução/Canva / Equipe portal

A pena também foi ampliada de no máximo um para até três anos de prisão. Em casos de risco à integridade física ou psicológica da mulher, o agressor pode ser preso preventivamente ou ficar proibido de ter contato com a vítima e seus familiares. 

O juiz também pode determinar trabalho comunitário e/ou comparecimento obrigatório em programas de recuperação e reeducação para o homem. E ainda: penas pecuniárias (que aceitam pagamento de multas) são proibidas nestes casos. Para crimes cometidos contra uma mulher com deficiência, a penalidade é aumentada em um terço.

Rede integrada e acolhimento de verdade

Em relação à vítima e seus dependentes, fica assegurado o encaminhamento a programas e serviços de proteção e de assistência social, garantidos por medidas protetivas (conjunto de imposições ao agressor com o objetivo de garantir a integridade da vítima) que podem ser demandadas no momento do atendimento policial e emitidas com urgência em casos em que a vida corre perigo.

Visando o acolhimento mais humanizado às vítimas, a partir da Lei Maria da Penha foram criados equipamentos, como as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), Casas-abrigo, Centros de Referência da Mulher e Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.

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No entanto, é nesse ponto que estão concentrados alguns obstáculos. Equipamentos desse tipo são deficientes e não estão preparados para fazer o atendimento previsto, diz Cármen. “Há muitos problemas de acolhimento nas DEAM e delegacias comuns, problemas no Poder Judiciário com o Ministério Público, que não consideram o que prevê a lei para conceder medidas protetivas para as vítimas e trabalham usando a mesma lógica de um processo criminal comum.”

A presidente da Associação dos Magistrados Brasileiro, Renata Gil fala sobre a necessidade de incorporação dos órgãos, mas reconhece avanços em relação ao assunto. “O Brasil tem tomado consciência de suas responsabilidades, inclusive, internacionalmente. A gente tem um diploma legislativo, que é a Lei Maria da Penha, absolutamente espetacular e que vem sendo remodelado com algumas questões pontuais, vem sendo trazido às necessidades do tempo, então, em termos legislativos nós estamos bem. O que precisamos é de efetividade e eficiência do sistema como um todo”.

Mas para Cármen ainda não há entendimento geral do conceito da legislação no Judiciário: “Não deixam a mulher falar, não querem ouví-la. Ficam apenas preocupados com a produção de provas”. O Terra já mostrou como o sistema acaba tratando casos de violência doméstica como ações criminais, e não civis, burocratizando o processo de denúncia.

Eliane concorda com a colega de profissão e complementa afirmando que "muito se preocupa em punir o agressor e pouco se olha para as necessidades da vítima". “A mulher tem dependências psicológicas e financeiras que devem ser avaliadas. A lei prevê que juizados possam resolver problemas de guarda de filhos e divórcio, por exemplo, num processo só, justamente para que ela não tenha mais gastos, não tenha que passar por mais desgaste emocional falando sobre suas agressões várias vezes e não seja mais vitimizada. Mas não é o que acontece”, lembra.

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Para que esse acolhimento acontecesse de fato, além de mudanças no comportamento e interpretação da lei no Judiciário, seria preciso investir em uma rede de acolhimento efetiva. “Precisa haver um serviço de psicólogas e assistentes sociais à disposição das vítimas. Isso faz parte de uma gestão que poderia ser administrada com o sistema federal e sistema de justiça”, pontua a conselheira da Themis.

“O Poder Judiciário tem que se abrir para acolher, não ser apenas um órgão julgador. Para a vítima, isso é muito importante. Talvez até mais do que colocar o homem na cadeia”, acrescenta a mestre em Direito e Políticas Públicas.

Aumento da violência doméstica durante a pandemia
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Nova lei durante a pandemia

A deputada federal Maria do Rosário (PT) compartilha da mesma opinião das advogadas sobre uma política pública mais acolhedora e interdisciplinar para vítimas de violência doméstica. “Só assim nós vamos salvar vidas e chegar antes do feminicídio, que é o nosso objetivo”.

Pensando nessa necessidade e considerando o aumento de casos de homicídios motivados pela questão de gênero durante a pandemia de covid-19, ela contou com o apoio 22 integrantes da bancada feminina para estruturar uma lei que garanta os direitos da mulher mesmo em quarentena. 

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“Não basta fazer o acolhimento, receber a denúncia, por exemplo, no Disque 180, e essa denúncia ficar formando uma estatística nacional. O Disque 180, assim como o Disque 100, vão interligar as denúncias às delegacias, a centros de atendimento, ao Sistema Único de Saúde, sobretudo ao sistema de atendimento especializado da polícia, de justiça de um modo geral, ao conjunto que está no comando, em cada município, e fazer o atendimento da mulher”, explica.

Pandemia afeta autonomia das mulheres
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A lei, sancionada em julho deste ano, assegura o pleno funcionamento de órgãos de atendimento a mulheres, crianças, adolescentes, pessoas idosas e cidadãos com deficiência vítimas de violência doméstica ou familiar, considerando o serviço como essencial e não poderá ser interrompido enquanto durar o estado de calamidade pública causado pelo novo coronavírus.

Conforme explicou a deputada, as denúncias nos canais de atendimento (Ligue 180 e 100) deverão ser encaminhadas às autoridades em até 48 horas, em todos os casos. Além disso, obriga que os órgãos de segurança criem canais gratuitos de comunicação interativos para atendimento virtual.

“Outra questão que a norma prevê é a extensão das medidas protetivas da lei Maria da Penha durante a pandemia. Quem fez uma denúncia e teve decisão judicial de medidas protetivas fica automaticamente ampliado o período até o final da pandemia”, conta. A matéria também permite que essas ferramentas sejam solicitadas por meio de atendimento online.

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Na teoria, há esforço para combater o problema. Resta agora observar se as exigências do novo dispositivo serão cumpridas ou se vão acabar esbarrando nas agruras do sistema. A deputada parece otimista em relação à lei, que criou para dialogar com a Maria da Penha, que, como ela mesma reconhece, “colocou novos elementos no que diz respeito à definição da violência e reconheceu a responsabilidade do Estado com atendimento às vítimas de violência no ambiente familiar”. 

“Foi uma mudança fundamental na estrutura de poder, de Estado, e cultural do patriarcado no Brasil. O que acontecia dentro desses ambientes era como se, não só não dissesse respeito, mas como se ninguém pudesse interferir. Agora a ideia é ampliar essa rede de proteção às vítimas e adaptar para esse novo cenário de pandemia”, finaliza.

Fonte: Redação Terra
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