Desde o dia 13 de julho do ano passado, Elizabeth Gomes da Silva vive o drama de não saber o paradeiro do marido, Amarildo de Souza, desaparecido na favela da Rocinha após uma suposta averiguação por parte de policiais militares lotados na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da comunidade da zona sul do Rio de Janeiro. Passados oito meses, com as acusações já regulamentadas pelo Ministério Público e com a morte presumida de Amarildo assegurada pela Justiça, ela ficará frente a frente, pela primeira vez, com os 25 PMs acusados de tortura, ocultação de cadáver, fraude processual, omissão imprópria e formação de quadrilha.
O depoimento será o carro-chefe da promotoria na retomada da audiência de instrução e julgamento dos policiais militares, que teve inicío na tarde desta quarta-feira, às 14h45, na 35ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). “Estou esperando que seja justo, que eles entendam que eles têm que falar onde estão os ossos do meu marido para que eu possa enterrá-lo como digno. Eu não vou desistir, meus filhos, ninguém da família vai desistir”, disse na chegada ao auditório, acompanhada por um advogado, e bastante nervosa.
Na primeira sessão da audiência, no último dia 20 de fevereiro, a mulher de Amarildo esteve presente no local, mas numa sala reservada para as 19 testemunhas de acusação arroladas pelo Ministério Público. Ela não teve acesso ao auditório e, consequentemente, não teve contato com os policiais acusados, entre eles, o major Edson Santos, que seria o mentor das sessões de tortura na comunidade e era o comandante da UPP da Rocinha na época.
“Eu vou ficar tranquila. O problema está com eles, não comigo”, afirmou ainda sobre o fato de ficar olho no olho com os 25 PMs que, dependendo de cada caso, podem pegar até 33 anos de prisão. “Quero que os policiais que acabaram com a vida do meu marido, trabalhador, falem o que fizeram com ele. Não vou declarar mais nada, só quero saber disso. Meu marido sumiu na mão de policiais e não voltou nunca mais”, reiterou, antes da dar as costas aos jornalistas.
A imprensa não pode acompanhar a audiência por determinação do TJ-RJ, mas a assessoria de comunicação do tribunal informou que o soldado da PM Alan Jardim é a primeira testemunha de acusação do dia a ter a sua oitiva por parte da promotoria e advogados de defesa. Tesoureiro da UPP da Rocinha na época dos fatos, Jardim narrou que recebeu ordem deixar a base da unidade e se dirigir para policiamento externo. "Todos receberam esta ordem", disse.
Pouco tempo depois, o soldado explicou que foi obrigado a entrar num contêiner ao lado da base da UPP, "e não sair mais". Na sequência, conseguiu observar uma viatura da PM chegando com uma pessoa. Jardim afirmou ainda em depoimento que ouviu gritos, como: "você não vai falar?". As perguntas davam a entender que eram sobre armas e drogas. "Não falo", escutou da pessoa que, a partir deste momento, por 40 minutos, foi duramente torturada.
"Ouvi gritos de sufocamento e gemidos bem altos. Eram gritos terríveis, enlouquecedores", lembrou. Depois de ouvir barulhos de água como se alguém tivesse tentando acordar uma pessoa, ele explica que houve um silêncio precedido por gritos: "deu m…, deu m…". Posteriormente, recebeu a ordem para pegar uma capa de moto, passou a ouvir barulhos de fita crepe e viu cinco policiais militares se dirigindo para uma mata fechada, com o que seria o corpo de uma pessoa.
No dia seguinte, o soldado que cuidava do administrativo da UPP informou que recebeu ordens do tenente Luiz Medeiros, o braço-direito do major Edson Santos na Rocinha, de limpar a capa da moto, e se desfazer de uma mesa, ambos com manchas de sangue. No chão, gotas de sangue, assim como num balde d'água encontrado na base. Feito isso, ele participou de reuniões em que o major Edson Edson teria passado informações antes que todos prestassem depoimento na Divisão de Homicídios. "Os PMs tinham respeito e medo do major", relatou.
Início no mês passado
A primeira testemunha a ser ouvida no julgamento, iniciado no mês passado, foi o delegado titular da Delegacia de Homicídios, Rivaldo Barbosa, que comandou a investigação. Segundo ele, a princípio, o inquérito apontava que Amarildo foi morto por um traficante, mas depois o caso mudou de figura. "A ação dos policiais foi manobra ardilosa para imputar a terceiros a tortura contra Amarildo", afirmou Rivaldo.
O delegado disse ainda que os depoimentos eram incongruentes, pois todos tinham a mesma versão. Segundo ele, a polícia percebeu que o major Edson Santos, comandante da UPP na época, pressionava os PMs a fazer isso.
A Polícia Civil, segundo Rivaldo, precisou recorrer à Corregedoria da Polícia Militar para colher os depoimentos dos PMs, já que o major demorava muito a liberar os policiais para ir à delegacia. Segundo ele, era perceptível o medo que os policiais tinham de falar, e a polícia descobriu que Amarildo havia sido torturado apenas por meio de conversas informais.
A segunda testemunha de acusação a ser ouvida na ocasião foi a delegada assistente da DH, Ellen Souto, que sustentou a versão de que os policiais da UPP da Rocinha envolvidos no caso compraram fraldas, deram dinheiro e chegaram até a prometer casas para que os moradores da comunidade sustentassem a versão de que Amarildo teria sido morto por traficantes que atuam na favela.
Por fim, também foi ouvido o policial civil Rafael Rangel, que deu detalhes técnicos acerca do trabalho de perícia realizado pela corporação na investigação do sumiço de Amarildo. Após as testemunhas de acusação serem ouvidas (existe a expectativa de que algumas sejam dispensadas pela juíza, cujo nome o TJ não revelou), será a vez dos depoimentos de defesa e, posteriormente, dos próprios policiais militares. No total, 13 permanecem presos, enquanto outros 12 respondem ao processo em liberdade. Não há previsão para o término do julgamento.
O ajudante de pedreiro desapareceu após ser levado por policiais militares para a sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) entre os dias 13 e 14 de junho. O caso ganhou bastante repercussão, pois coincidiu com o período de eclosão das manifestações de rua em todo o País e, em especial, no Rio de Janeiro.
De acordo com a denúncia apresentada pelo Ministério Público (MP), o tenente Luiz Medeiros, o sargento Reinaldo Gonçalves e os soldados Anderson Maia e Douglas Roberto Vital teriam torturado Amarildo depois de ele ter sido levado para a base da UPP. Ele não teria resistido às sessões e seu corpo, retirado numa capa de moto fornecida pelo próprio comandante da UPP da Rocinha, major Edson Santos.