No escuro: o que acontece ao denunciar violência doméstica

Burocracia criada pelo Judiciário e a polícia somada à falta de informação à vítima dificultam o caminho para a denúncia do agressor

18 ago 2020 - 09h00
(atualizado às 09h13)

“Se ele não for preso, vai vir atrás de mim e das minhas filhas”. Era tudo o que Ana* conseguia pensar durante os 3 anos que sofreu violência doméstica. A nutricionista conta que seu maior medo era não saber se teria a integridade dela e da família protegidas caso fosse à polícia. “Não sabia o que poderia acontecer. Eu tinha pavor de pensar em como ele poderia reagir se soubesse que eu o denunciei”, lembra.

Vítima de agressão física e psicológica, ela conta que o ex-namorado costumava apagar o cigarros em sua cabeça quando discutiam para que ninguém visse as marcas e que “só não entrou para a estatística [de feminicídio]” porque o agressor “morreu antes, em um acidente de carro”. “Hoje me arrependo de não ter ido à delegacia quando ainda tinha as marcas de violência no corpo, mas confesso que estou aliviada pelo que aconteceu com ele, por ter acabado”.

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Na teoria, se buscassem ajuda das autoridades, a manicure e seus filhos teriam a segurança de suas vidas garantida pela Lei Maria da Penha. Na prática, mulheres como Ana desistem de denunciar quando se deparam com obstáculos criados pelo próprio sistema de segurança pública e pelo Poder Judiciário que inviabilizam os direitos da vítima logo nas primeiras etapas do processo, ainda mais durante o isolamento social - quando os casos aumentaram.

Foto: Canva / Reprodução

Apenas 32% das mulheres que sofreram violência doméstica seguiram o caminho da denúncia formal contra o agressor, seja em delegacias comuns ou da mulher, enquanto 37% afirmaram ter procurado auxílio em vias alternativas como família, igreja e amigos, e só um quarto das mulheres agredidas buscaram atendimento de saúde após a agressão, conforme mostrou o estudo feito pelo Instituto de Pesquisa DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência em 2019. 

Os resultados possibilitam estimar o montante dos subregistros por não comparecimento tanto na saúde, quanto na segurança pública em relação a esses casos de violência doméstica

Efeitos colaterais: a epidemia da violência doméstica
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Dificuldades já nos primeiros passos

Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, é possível denunciar um caso de violência doméstica pelo Ligue 180, sem a necessidade de sair de casa ou ir a uma delegacia. O que não fica claro é que as queixas feitas pelo telefone não geram processo criminal, ou seja, o agressor não será investigado.

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“O 180 serve mais para orientar a mulher. As denúncias vão ser repassadas aos setores competentes, mas se a mulher disser que está sofrendo violência naquele momento, ela será encaminhada para uma delegacia de polícia”, enfatiza Cármen Campos, advogada e conselheira da ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos.

Para ampliar os registros, alguns estados passaram a permitir que boletins de ocorrências sejam feitos pela internet. “Vimos que alguns estados estão capacitando e qualificando os atendimentos dos policiais para um olhar de gênero. Na pandemia, por exemplo, vários deles disponibilizaram o boletim online para que mulheres possam denunciar - o que ajuda, mas não resolve o problema. Porque muitas vezes a mulher não consegue denunciar por não ter acesso à internet ou até mesmo por ter seu celular confiscado pelo agressor”, observa Juliana Martins, coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“Mesmo assim, o registro online é um pré-registro. Assim que recebe a ocorrência, o delegado vai entrar em contato com a denunciante e solicitar que ela vá à delegacia confirmar tudo. Esse processo demora muito, pelo menos aqui no Rio de Janeiro, onde atuo. Eu nem recomendo. As vítimas quase nunca são chamadas”, completa Eliane Almeida, advogada especializada no atendimento de vítimas de violência contra mulher e mestre em Direito e Políticas Públicas. Às clientes que querem denunciar, ela indica ir pessoalmente até alguma delegacia, de preferência especializada.

Denúncias feitas pelo Ligue 180 não isentam mulheres de ir à delegacia, caso queiram dar início a um inquérito policial contra o agressor
Foto: Canva / Reprodução

Ao chegar a uma unidade policial, é feito o registro do boletim de ocorrência e a vítima deve ser ouvida por uma autoridade. “Nesse momento, o ideal é que ela leve todas as provas do crime e, se tiver, leve testemunhas também”, aconselha Eliane. 

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Como prova, a advogada afirma que é possível apresentar áudios, vídeos ou mensagens escritas que ilustrem as ameaças ou ofensas, por exemplo. Fotos de lesões ou laudo médico também servem como evidência para casos de agressões físicas. Quanto a testemunhas, pode ser qualquer pessoa que tenha presenciado a agressão. 

Eliane explica que, se não houver necessidade de exame de corpo de delito ou pedido de medidas protetivas de urgência, a vítima é liberada e inicia-se o inquérito policial, a partir do qual a queixa será investigada pela autoridade policial. “Depois, cabe ao Ministério Público dizer se o inquérito vai se tornar uma ação penal ou não. Se virar, o processo vai para um juiz, que vai colher todas as provas e julgar o réu”, explica. Nessa etapa, é comum que casos sejam arquivados, seja porque o Ministério Público entende que há inexistência de crime, de provas de autoria ou até mesmo que a demora do procedimento inviabiliza sua prescrição.

 
Caminho da denúncia de violência doméstica

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Medidas protetivas esbarram em burocracias do judiciário e segurança pública

Paralelamente à ação penal (e independente dela), a mulher vítima de violência doméstica tem, segundo a Lei Maria da Penha, direito a medidas protetivas de urgência que podem determinar o afastamento do agressor da casa, proibição de se aproximar da mulher, restrição ou suspensão de visitas aos filhos e até obrigatoriedade de prestação de alimentos provisórios.

A legislação é clara quanto a esses recursos: devem ser demandados já no atendimento policial, na delegacia, e ordenados ao judiciário em até 48 horas, sendo que em casos em que a mulher corre risco de morte, as medidas devem ser emitidas com urgência. 

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“Porém, há vários lugares em que as medidas protetivas demoram muito mais do que o previsto pela lei para serem concedidas. Isso porque alguns juízes não querem concedê-las sem antes verificar se há provas suficientes para o que a vítima alega e exigem uma série de questões que não estão na lei”, aponta Cármen. 

A ativista reforça que essa burocracia criada pelo Judiciário vai contra o que a Lei Maria da Penha prevê, já que essas provas serão observadas no processo de ação penal e não são necessárias para a concessão das medidas. “Justamente porque esse é um processo de prevenção, tem natureza civil, não criminal”.

E mesmo depois de conseguir uma resposta positiva do juiz ou juíza, a vítima pode continuar desprotegida, porque as medidas só passam a valer quando o homem for informado por um oficial de justiça. “Na maior parte dos casos o oficial de justiça não vai até o agressor. Os delegados é que ligam para o homem e pedem para ele ir até a delegacia e aí ele é informado, o que leva ainda mais tempo”, pontua Eliane.

Além da denúncia

Como se não bastasse todos os obstáculos ilustrados até aqui, a mulher ainda precisa lidar com inúmeros fatores externos que contribuem para que o registro de violência doméstica seja evitado e continue sempre subnotificado - que vão desde a pressão social, reflexo do conservadorismo e patriarcado, até à dependência financeira e emocional.

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A desistência por pressão do agressor é comum após a denúncia da violência doméstica
Foto: Canva / Reprodução

“É por isso que a maioria das mulheres desiste de levar o processo à frente”, lamenta Eliane. E mesmo quando ela decide dar um basta, é comum recuar. “Depois que a mulher dá entrada na denúncia e começa a investigação, os homens mudam de comportamento e tendem a propor um acordo com a vítima, o que impede a continuidade da ação penal”, acrescenta.

Prevendo esse comportamento, a Lei Maria da Penha assegura, para a maioria dos crimes, a impossibilidade de desistência da denúncia uma vez que ela é feita. “Contudo, algumas acabam cedendo à pressão do agressor, família ou amigos e deixam de prestar depoimento quando são chamadas, trocam de endereço ou tomam outras atitudes para não serem encontradas apenas para não dar prosseguimento à ação e evitar a condenação do réu [que pode pegar de seis meses até três anos de prisão ou prestar serviço comunitário]”. 

A conselheira da Themis, organização que ajudou a elaborar a Lei Maria da Penha, em 2005, lembra que a ideia da lei não é de denúncia, mas sim de prevenção, assistência e contenção da violência: “A denúncia fica no campo da contenção, mas a gente tem outras duas áreas que também são muito importantes”.

Segundo ela, é necessário não só melhorar os instrumentos de contenção para que contemplem as vítimas, principalmente as que estão em situação de maior vulnerabilidade, como também fazer a manutenção e ampliar a rede de acolhimento para que o ciclo da violência tenha um fim. “A denúncia é importante, mas se a gente não der possibilidade de a mulher sair da relação abusiva, ela vai voltar para o homem, que pode voltar a cometer os abusos e a chance de ela denunciar de novo vai ser muito pequena”, afirma Eliane.

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Cármen completa o raciocínio trazendo uma reflexão para a questão como um todo: “Há muitos problemas na implementação da lei, incluindo no processo da denúncia. Mas como a gente extermina a violência doméstica? Com medidas de prevenção, como a inclusão de conteúdos de equidade de gênero, raça, etnia e violência doméstica nas escolas, nas universidades e nas comunidades. Prevenir requer pensar em ações voltadas para a sociedade, ainda mais uma sociedade machista, violenta, homofóbica e racista como a nossa. Por isso, há de se pensar no assunto muito mais amplamente e estrategicamente, e contar com o apoio de todos”.

*Nome alterado para preservar a identidade da vítima

Fonte: Redação Terra
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