Promotor processa Estado por mortes em operações policiais

Alta letalidade policial faz com que governo estadual responda a ação civil pública; MP cobra medidas que reconheçam situação

19 jul 2019 - 07h12
(atualizado às 08h01)

SÃO PAULO - Uma diligência policial que termina em morte não tem como ser classificada como bem sucedida, defende o promotor Eduardo Ferreira Valerio, que está processando o Estado de São Paulo. Os pedidos feitos à Justiça dizem respeito a uma "profunda reforma da instituição (policial)", como classificou a juíza responsável pelo caso ao receber a Ação Civil Pública. O promotor quer que seja reconhecida a alta letalidade como uma afronta à Constituição e, a partir disso, sejam providenciadas medidas que vão desde a instituição de uma comissão para acompanhar os casos até a instalação de câmeras junto à farda dos agentes.

Dois criminosos ficaram gravemente feridos após assalto a banco em Santo André, no ABC paulista no dia 01/07/2019
Dois criminosos ficaram gravemente feridos após assalto a banco em Santo André, no ABC paulista no dia 01/07/2019
Foto: GONCALVES/SIGMAPRESS / Estadão

A ação foi proposta no fim de maio e deve ter um longo caminho pela frente, em razão da complexidade dos pedidos. Em meio a um momento em que as ações policiais violentas parecem ser cada vez mais chanceladas pela opinião pública, o promotor diz que o momento não poderia ser mais oportuno. Quem defende a prática, reforça Valerio, está na "contramão da história".

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O Estado de São Paulo registrou ao longo do ano de 2017 940 mortes decorrentes de supostos confrontos com forças policiais. O número foi o maior de toda a série histórica da Secretaria da Segurança Pública paulista. Ao longo do ano de 2018, esses registros caíram, mas os dados do primeiro trimestre de 2019 voltaram a apontar alta, com mais de duas mortes por dia.

Em 11 de abril deste ano, policiais mataram 11 pessoas consideradas suspeitas de atacarem agências bancárias em Guararema, na região metropolitana de São Paulo, no que foi uma das ações mais letais da história da Polícia Militar. Nesta quarta-feira, 17, agentes da Rota mataram quatro suspeitos após perseguição. A Corregedoria e a Ouvidoria acompanham o caso.

Valerio falou ao Estado sobre o que pretende com a ação. Leia:

Por que o Ministério Público deu início a essa ação?

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O inquérito civil é o instrumento que temos para fazer investigações de casos que envolvam violação a direitos difusos ou coletivos. O inquérito foi instaurado a partir das notícias recorrentes de letalidade policial, os índices apurados pelos institutos de pesquisa. Então, começamos a reunir esses dados, submetemos a uma avaliação de uma socióloga técnica do Ministério Público, ouvimos alguns especialistas e fomos trabalhando modos de propor uma ação que resultasse em providências efetivas por parte do Estado para reduzir o número de policiais que morrem e o número de policiais que matam. Isso demorou um bom tempo, ficamos alguns bons meses, ou alguns poucos anos, reunindo todas as informações até chegar numa peça que tivesse essa proposta alentada de várias medidas factíveis.

A ação cita a relação entre o período da ditadura militar e como a polícia age atualmente. Como isso se expressa?

Um dos marcos jurídicos que utilizamos na ação é a chamada Justiça de transição, que é relativamente pouco conhecida no Brasil, inclusive pelos operadores do direito, e que talvez seja uma das explicações para a fragilidade das nossas instituições democráticas. A justiça de transição é uma construção internacional baseada sobretudo na experiência de países que passaram de uma ordem jurídica e política autoritária ou ditatorial para uma ordem política democrática. Há portanto a necessidade de fazer a transição de maneira a garantir que as violações de direitos humanos promovidas no tempo do regime anterior não fiquem impunes, as vítimas sejam satisfeitas em seus anseios de justiça e sobretudo as instituições sejam reformadas e adequadas aos parâmetros democráticos para que aquelas situações anteriores não se repitam.

Há toda uma doutrina em torno disso, há observações e construções teóricas muito fortemente aplicadas nos países do cone sul, mas também na África do Sul pós-apartheid, há uma demanda por isso na Espanha pós-franquismo, até hoje não plenamente satisfeita. É um conhecimento muito rico e aqui no Brasil muito pouco se fez, em boa parte por conta da lei de autoanistia que foi consagrada pelo Supremo Tribunal Federal e nos faz o único país das ditaduras latinoamericanas em que os violadores de direitos humanos não foram punidos e as instituições acabaram ficando viciadas pelas práticas da ditadura.

Um dos exemplos que os estudiosos apontam, e trago isso na ação, são exatamente as instituições policiais porque, na verdade, aparentemente substituiu-se o inimigo ao tempo da ditadura, que era o subversivo, pelo criminoso dos tempos democráticos, como o traficante. Então se faz uma mudança da doutrina de segurança nacional, da época da ditadura, pela doutrina de guerra às drogas que é uma maneira de aplicar a doutrina policial tendo o próprio cidadão do país não como alguém a ser protegido pela polícia, mas alguém a ser combatido. A ideia do combate e do enfrentamento justificando as violações de direitos humanos cria um modelo de polícia muito mais para o confronto do que para a composição. Isso é muito mais estimulador da violência e da criminalidade do que inibidor, e falha na própria essência, na própria razão de ser da polícia que é a de prevenir crimes.

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O policial vê a resposta dura, e por vezes violadora de direitos, como necessária?

Não tenho dúvidas de que o policial é uma vítima dessa maneira de ser compreender a polícia. É preciso que a sociedade como um todo reaja e demonstre que a segurança pública não pode ser feita na base da violência e não pode está baseada exclusivamente em critérios de atuação policial e do sistema de justiça criminal. É preciso ampliar a garantia de direitos, as alternativas e oportunidades de vida para a juventude e a partir daí se constrói uma noção de segurança pública que vai muito além da polícia e do encarceramento.

Como fazer isso em um período em que parte do País parece chancelar esse tipo de comportamento violento?

Essa é uma grande dificuldade. Não instauramos isso a partir dessa conjuntura política. Então, mais do que nunca o momento é oportuníssimo porque precisamos reagir.

Quando uma pessoa me diz que a intervenção policial adequada é a que no final mata os bandidos, digo que, se o Estado tem como função garantir a vida e não importa de quem, uma diligência que acabe em morte é uma diligência fracassada porque o aparato de justiça está sendo alimentado e mantido para que os criminosos sejam presos, processados, respeitados nos seus direitos e punidos.

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Um dos pedidos da ação diz respeito a um reconhecimento sobre o estado de coisas inconstitucional, semelhante ao que foi feito pelo STF sobre a situação do sistema carcerário do País. Quais são os efeitos práticos de uma declaração como essa?

Primeiro porque conseguiríamos uma decisão judicial declarando um estado jurídico de inconstitucionalidade e, portanto, tornaria o Estado obrigado a tomar providências para resolver o problema. O efeito de uma declaração judicial é limitado, simplesmente diz que a situação existe e hoje está reconhecida pelo judiciário. Isso dará em cada condição concreta de atuação a possibilidade de os operadores do direito, sejam promotores, defensores, advogados, de atuar no sentido de corrigir essas distorções e de responsabilizar os casos concretos. Não falo na minha ação em nenhum caso concreto especificamente, e isso é proposital porque estou discutindo a política pública. Os casos individuais estão aí e os operadores, diante de uma declaração como essa, passam a ter um instrumento de atuação muito mais efetivo.

Hoje, o Estado tem capacidade de investigar e oferecer a resposta devida aos casos em que há excessos e crimes?

Alguns pedidos nossos têm como objetivo aprimorar a capacidade de investigação e produção de prova para facilitar aos promotores que atuam em júris a maneira adequada de conseguir punições e condenações. Em geral, é muito díficil. Os colegas relatam que as provas são muito mal feitas até por ter um viés corporativo evidente.

O governador Doria, desde o período de campanha eleitoral, assume o discurso de que, se houver reação, "(a polícia) vai atirar para colocar no cemitério". Que tipo de influência declarações como essa exercem sobre a atuação dos agentes?

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O que diria é que a posição que estamos defendendo na ação, baseada em estudos, é exatamente o oposto do que ele diz e do que tem feito. O governador que acena com a violência e que acha que o policial termina uma diligência com o autor do crime morto merece ser condecorado ele está, na visão do que compreendemos como política de segurança pública e de direitos humanos, na contramão da história.

A ação cita outras dezenas de medidas necessárias para reduzir o patamar de letalidade. Quais são elas?

Os recursos tecnológicos, como GPS, gravação de som ambiente, da impossibilidade de edição dos vídeos, são formas de se preservar o máximo possível os instrumentos de prova para apuração de eventuais abusos e irregularidades e de preservar essas provas junto à instituições que sejam externas à polícia. Ao mesmo tempo, esses mecanismos servem como forma de dissuadir os abusos por parte dos policiais porque sabem que estão sendo observados no peito que não pode ser suprimida.

Nós também voltamos nossa preocupação ao policial que morre, que tem sido um número crescente. Os agentes morrem sobretudo no bico, de cada quatro, três morrem fora do exercício da função pública. Para isso, pedimos a disponibilização de coletes balísticos para os que desejarem, dando proteção maior. Estamos tentando preservar a vida do policial.

Mortes são devidamente investigadas, diz Secretaria da Segurança

Quando a ação do MP foi divulgada, em maio, a Secretaria da Segurança Pública se posicionou por nota. A pasta declarou que, em São Paulo, todas as ocorrências com morte decorrente de intervenção policial são rigorosamente investigadas. "A Resolução SSP 40/2015 garante total eficácia nas investigações, com o comparecimento das Corregedorias e dos Comandantes da região, além de equipe específica do IML e IC e integrantes do MP. Paralelamente à investigação criminal, todas ocorrências são analisadas administrativamente para verificar o cumprimento dos protocolos existentes."

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