Os ataques às bases da UPP em Manguinhos e Mandela, na zona norte do Rio de Janeiro, na noite da última quinta-feira, não apenas colocaram em xeque a política de segurança focada nas unidades de polícia pacificadora por parte do Estado do Rio de Janeiro, como trouxeram a dúvida: quais são os equívocos deste projeto tido como a "menina dos olhos" do governador Sérgio Cabral (PMDB) e que serviu de modelo para outros Estados e até países?
Diante deste cenário de incertezas e com a iminência da chegada das tropas federais, após reunião de Cabral com a presidente Dilma Rousseff, ainda mais em ano eleitoral, o Terra ouviu especialistas em segurança pública, com diversos estudos publicados a respeito, e traçou um panorama em que lista os 10 erros cometidos pelo Estado na opinião de quem entende do assunto.
Falta do lado social
Não é de hoje que a política de segurança pública envolvendo as UPPs carecem do lado social da questão. Muito embora seja importante salientar que a retomada dos territórios seja algo significativo, a ausência de serviços essenciais como saneamento básico, moradia, formação cultural etc., deixaram uma lacuna no processo de pacificação justamente no momento em que o Estado deveria ser a única opção diante da suposta saída dos comandos criminosos.
“O projeto das UPPs foi pensado para ser acompanhado pelas UPPs sociais, que não saíram do papel. O que aconteceu foi que você tirou uma força invasora do território dos traficantes armados, e colocou uma força policial que muitas vezes não se comporta devidamente, e fica intervindo no cotidiano da comunidade”, salienta o sociólogo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) José Augusto Rodrigues.
“Se tivesse ocorrido isso, a quantidade de atores públicos envolvidos no processo de retomada de território seria mais abrangente e seguramente mais democrático, e menos sujeito a uma sensibilidade política”, complementou.
Policiais inexperientes
A tática inicial era clara: formar novos policiais na Acadepol no intuito de que estes profissionais não tivessem os antigos “vícios” de outros PMs para com o relacionamento com a comunidade - vale lembrar da relação promíscua e notória dos que praticavam o "arrego" (propina) com o tráfico, por exemplo. A proposta, no entanto, mostrou-se falha diante da inexperiência destes novos policiais militares sem condição aparente de atuar em antigos redutos de facções, como foram os casos da Rocinha e Complexo do Alemão.
“Hoje eles têm que se formar rapidamente e com uma pressão muito grande nas costas. Eu escuto isso de policiais. Eles relatam esse tipo de situação. Os jovens que estão indo para a UPP não têm uma formação adequada”, analisa Ana Paula Miranda, ex-diretora do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio e professora de antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Na opinião da antropóloga, a questão dos antigos “vícios” dos PMs que atuavam nas comunidades “traz a temática da corrupção, mas, no ponto de vista de quem analisa a política de segurança pública (dentro do governo do Estado), enquanto o sujeito está fora do sistema, ele não é corrompido. É quase ingênuo pensar que a questão se resolve desta forma”.
Condições precárias de trabalho
A cena dos contêineres incendiados na base da UPP da comunidade do Mandela, ao lado de Manguinhos, é apenas uma das provas de que os policiais militares, hoje, dentro das unidades pacificadoras, não trabalham em condições ideais. Em diversas oportunidades, ficou clara a falta de banheiros, ausência de coletes, cenário bem longe de uma sede administrativa, como o projeto propunha.
Na entrada da UPP do morro Santa Marta, por exemplo, por vários dias se pode observar lixo acumulado. Em pelo menos oito bases os PMs estariam trabalhando em situação limite. Isso quando o ar condicionado não funciona, transformando os contêineres em verdadeiras saunas, além da falta abastecimento de água.
Embora a gerência das UPPs alegue que este é um processo que demanda tempo a fim de encontrar terrenos e a própria logística do procedimento pacificador, a ex-diretora do ISP Ana Paula Miranda chama a atenção, porém, “para a crise interna da PM, que ninguém fala. Já faz tempo que os policiais não acreditam no projeto. Ou seja, os principais atores não acreditam, quem há de acreditar”. De acordo com Ana Paula, “isso foi abafado em muitas situações”. “Sem falar na questão salarial. Temos os policiais com os piores salários do Brasil.”
Relação tensa com a comunidade
O episódio de tortura envolvendo moradores da Rocinha, que culminou com o desaparecimento e morte presumida do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, justamente num dos projetos mais ousados da UPP, fragilizou um relacionamento que deveria ter sido reconstruído do zero. O indiciamento de 25 PMs lotados na comunidade, entre eles o comandante local, o major Edson Santos, jogou por terra o objetivo de uma relação mais tranquila.
Por mais que a gerência das UPPs tenha feito tentativas de aproximação, como a realização de bailes de debutantes dentro das comunidades ocupadas, na opinião de Julita Lemgruber, especialista no tema e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, “o episódio da Claudia (Silva Ferreira, baleada e arrastada por uma viatura) minam a confiança da comunidade (mesmo este fato tendo ocorrido em Madureira, onde não existem UPPs instaladas até o momento)”. “Quando isso não acontece, as comunidades ficam insatisfeitas e com isso o tráfico também cresce.”
Expansão desmedida
Quando os primeiros indícios de corrupção surgiram, como foi o caso de um comandante da UPP do Fallet, em Santa Tereza - que foi afastado diante de uma denúncia de que receberia um “mensalão” de traficantes -, nem por isso se reviu em algum momento a forma como o projeto estava sendo implementado.
“É de bom senso que, se um projeto vem apresentando problemas, que ele primeiro seja consertado para que depois seja retomado”, opinou José Augusto Rodrigues, da Uerj. E os problemas continuaram com ataques frequentes no complexo do Alemão, por exemplo, sem que as UPPs continuassem surgindo - a última a ser implementada foi a da Vila Kennedy, na zona oeste.
“Quando você tem um projeto com meia dúzia de UPPs você tem mais condições de gerenciar esse projeto, de mais fácil controle, supervisão, certo? Quando esse projeto cresce, esses controles se tornam mais difíceis. E sem que esse diálogo com a comunidade seja estabelecido de forma consequente, isso se torna ainda mais difícil”, completou Julita Lembgruber.
Resposta a todo custo
Tornou-se algo de praxe: qualquer episódio de violência envolvendo as UPPs sempre foi respondido pelo governador Sérgio Cabral e pelo secretario José Mariano Beltrame, em notas avisando que “o Estado não iria arrefecer de sua polícia vencedora de Segurança Pública, que devolveu território e paz a milhares e milhares de pessoas”.
“Tem que ter mais planejamento, sem querer mostrar que está ganhando o jogo”, opina o coordenador do laboratório de violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Inácio Cano. “Em ano de Copa, os esforços são feitos nesse sentido. Tudo pode voltar a estaca zero. A crise pode ir para muito longe”, completa.
Excesso de marketing
Ainda dentro deste tema de respostas efusivas, a ex-diretora do ISP Ana Paula Miranda acredita também que “durante este tempo todo se tentou construir uma ideia que os problemas do Rio de Janeiro tinham acabado”. “Esse foi o primeiro erro. Excesso de propaganda não dando conta das falhas ao longo do projeto.”
No passado, o Estado do Rio de Janeiro já havia realizado tentativa semelhante de ocupação com o estabelecimento em algumas comunidades dos Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAEs). Pelos mesmos motivos, na opinião da Ana Paula, o projeto não vingou e, ao que tudo indica, a lição não foi aprendida. “A estratégia é muito parecida. Existiu uma falta de percepção de que esses problemas todos aconteceriam mais adiante.”
Ano eleitoral
É notório dentro do Rio de Janeiro e na relação entre a segurança pública e o crime organizado que ano eleitoral mexe com os ânimos e, principalmente, com os interesses políticos. Diante isso, na opinião de Inácio Cano, do laboratório de violência da Uerj, “sempre existe esse histórico, e muitas incertezas com a possível troca de comando”.
Neste caso, ainda de acordo com Cano, a estratégia de segurança pública deveria ser no sentido de que “a reação tem que ser de reduzir a violência, e não dar troco até que um novo governo se estabeleça”. O governo federal já anunciou, por exemplo, o envio de tropas para auxiliar nesse combate.
Já para Ana Paula Miranda, da UFF e ex-diretora do ISP, “há alguns analistas que consideram que houve erro estratégico de inaugurar algumas UPPs por razão eleitoral, com pressão da população nesse sentido, quando na verdade se precisava fortalecer em alguns lugares”.
Fragilidade exposta
Os problemas que a política das UPPs vêm enfrentando necessitava de uma resposta mais imediata no sentido de se corrigir suas imperfeições. É o que acredita o especialista em segurança pública da Uerj José Augusto Rodrigues.
“Ou seja, um projeto que era absolutamente consensual, passou a ser objeto de várias críticas e restrições. Evidentemente que os criminosos não são ingênuos e, percebendo o momento de fragilização do processo de pacificação, tentaram essa ofensiva em diversas frentes”, explica. “Em algumas localidades, acabou redundando numa efetiva retomada de parcelas de poder, e até de parcelas de território por parte do tráfico”, complementa.
Especulação de valores
Desde que a UPP chegou à comunidade Santa Marta, em Botafogo, em 2008, que a realidade dos moradores mudou não apenas em relação a atuação de grupos armados. Tudo ficou mais caro: a conta de luz começou a chegar e não havia mais jeito de praticar os tais “gatos” na energia elétrica.
As casas e demais localidades entraram junto da dita “bolha imobiliária”, inflacionando o mercado, trazendo ainda mais temor aos moradores e incitando o tráfico a perceber que poderia ter novas fontes de renda. Tudo isso sem controle algum. “O morador da Rocinha vai pagar um aluguel que é caro em relação a outras áreas. A cidade passa hoje por um problema de especulação, que isso impacta nas relações comerciais das favelas”, explica Ana Paula Miranda.
“É uma situação de mercado em que o tráfico não está fora disso, ele não está fora dessa realidade. Na medida que você ia ocupando, e promovendo a especulação com preços aumentando, por que diabos se vai achar que o tráfico vai deixar de faturar isso? Não existe hoje uma discussão profunda sobre sobre esse aspecto. É um equívoco”, finaliza.