'Prometi ao meu filho que ia até o fim', diz mãe de soldado morto pela PM em operação no Guarujá (SP)

Laudo indica tiros à queima-roupa, e testemunha cita que ele foi confundido com traficante; caso foi arquivado pela Justiça a pedido do MP

17 dez 2024 - 17h42
(atualizado às 18h03)
Marcos Muryllo de Sousa Costa era soldado do Comando de Defesa Antiaérea em Guarujá
Marcos Muryllo de Sousa Costa era soldado do Comando de Defesa Antiaérea em Guarujá
Foto: Arquivo Pessoal

Faltavam apenas 20 dias para Francisca de Sousa Neta celebrar um dos sonhos de seu filho, Marcos Muryllo de Sousa Costa: a formatura como cabo do Exército. Mas um telefonema que ela recebeu no dia 12 de junho de 2023 mudou tudo. Marcos, com apenas 20 anos, foi morto a tiros de fuzil por policiais militares. Testemunhas da comunidade da Vila Baiana, em Guarujá (SP), acreditam que ele tenha sido confundido com um traficante que havia divulgado vídeos dias antes exibindo armas e debochando dos agentes. 

"Quando eu cheguei no lugar que meu filho tinha sido morto, um PM falou para eu ficar de canto e eu ouvi ele dizer: "quem fez a merda não está mais aqui". Acho que nesse momento eles já tinham visto os documentos no bolso do meu filho que comprovavam que ele era do Exército. Ali eu já fiquei sem chão", conta a mãe. 

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O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decidiu arquivar o inquérito policial sobre a morte de Marcos Muryllo, atendendo a um pedido do Ministério Público, que alega que a decisão foi baseada nos elementos colhidos no inquérito, principalmente a prova pericial. Já a PM afirma que os policiais militares envolvidos "agiram em legítima defesa própria e de terceiros". 

A mãe do jovem, no entanto, afirma que continuará buscando respostas e Justiça. “Eu não me conformo com isso. Nunca que um ser humano igual ele, que só ajudava, merecia isso”, desabafa.

“Eu prometi para o meu filho que eu ia até o fim. E por mais que toda essa situação tenha acabado com a nossa família, vou atrás de Justiça.”

O Terra teve acesso ao inquérito que investigou o caso. Como consta nos documentos, uma testemunha protegida relatou à Polícia Civil que, enquanto estava nas imediações, observou quatro indivíduos na área. Dentre eles estava um conhecido por envolvimento com o tráfico de drogas, um segundo rapaz, e Marcos, que estava ao lado de uma motocicleta, conversando com um quarto homem cuja identidade não foi reconhecida.

Marcos Muryllo estava prestes a se formar cabo do Exército
Foto: Arquivo Pessoal

O que as testemunhas relataram? 

A testemunha relatou ter visto três policiais com uniformes camuflados e toucas que cobriam completamente o rosto surgirem repentinamente, aparentemente vindos da mata. Segundo relatou, durante a abordagem, os policiais jogaram dois suspeitos para longe, enquanto Marcos foi derrubado, imobilizado no chão, e pisoteado no peito. Ele gritava de dor, identificando-se como integrante do Exército, mas ainda assim foi agredido, conforme o depoimento. Após ser liberado, Marcos foi orientado a correr, e em seguida tiros foram disparados.

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Essa mesma testemunha acrescentou que os policiais estiveram na região outras vezes, buscando um homem chamado de "Jeffinho", conhecido traficante que portava armas e já havia sido visto em um vídeo segurando um fuzil e debochando dos agentes.

Nesse vídeo, é possível ver um grupo de homens marchando em direção à câmera. Quatro deles aparecem com armas de fogo à mostra. No fim do vídeo, eles falam: "Se liga! Olha os caras vindo. Os parceiros. Pesadão! Falou que pode embicar, [Tropa de] Choque", disse um dos homens que aguardava a chegada do grupo. As imagens tiveram muita repercussão e foram destaque na mídia dias antes da morte de Marcos. A testemunha acredita que ele tenha sido confundido com Jeffinho, o que poderia ter motivado a abordagem violenta. Jeffinho foi preso em agosto, durante a Operação Escudo. 

Em vídeo que viralizou na internet em junho, "Jeffinho" aparece exibindo um fuzil em plena luz do dia, junto com outros comparsas armados
Foto: Reprodução/Cidade Alerta/Record TV

Um dos detidos pela PM no dia da morte de Marcos também corroborou o depoimento da testemunha. Em documento elaborado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que o representou, consta o testemunho prestado em juízo pelo preso. Ele relatou que estava retornando da visita ao filho quando ouviu gritos de "para, para, para" e foi questionado sobre quem havia corrido e quem eram as pessoas no vídeo que lhe mostraram.

Segundo seu depoimento, ele foi jogado no chão, agredido, e outras pessoas foram jogadas ao seu lado e também agredidas. De acordo com ele, um dos agredidos se identificou como militar do Exército e afirmou que sua identificação funcional estava em sua carteira. Conforme relatou, essa vítima foi separada dos outros e levada até um ponto escuro no final da praça.

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A Polícia Militar alegou que o jovem foi baleado após entrar em luta corporal com um policial e tentar pegar um fuzil para disparar contra os agentes, que alegam ter agido em legítima defesa. Segundo o inquérito, quatro PMs participaram da ação, mas apenas dois efetuaram os disparos --um deles foi responsável por 10 dos 13 tiros de fuzil. De acordo com o laudo, seis deles atingiram Marcos.  

A perícia apontou que o exame residuográfico realizado pelo soldado morto deu negativo para ambas as mãos e que não foi possível determinar a dinâmica do ocorrido, pois o local não estava idôneo para a realização de uma análise precisa. No inquérito, consta que o Exército confirmou à polícia que o jovem era integrante da corporação e que não havia nenhum registro de problemas relacionados a ele.

Jovem fazia parte do Exército e estava com identificação em seu bolso no dia que foi morto
Foto: Arquivo pessoal

Luta por Justiça

O luto pela morte de Marcos está longe de ser superado por sua mãe, Francesca, que se sente também injustiçada após o arquivamento do caso envolvendo a morte do filho.

Ao Terra, ela conta que o jovem estava em um momento crucial de sua carreira militar. "O sonho dele era ser cabo. Faltavam poucos dias e eles acabaram com a vida dele", lamenta, com a voz embargada. "Ele estava indo ver a filha, porque ia ficar uma semana na mata, fazendo o curso de cabo", conta ela, se referindo ao momento da abordagem policial que resultou na morte do filho.

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Emocionada, ela não consegue segurar as lágrimas ao recordar o momento em que soube da morte do filho.

"Ele foi atingido nas costas, em todo lugar. Estava também com o olho bem roxo, porque foi agredido. É difícil falar isso, sabe? É muito difícil.", diz, chorando. 

Francesca [ao meio da foto], sua filha e Marcos, morto pela Polícia Militar
Foto: Arquivo Pessoal

Em nota, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) afirmou que o arquivamento se deu com base nos elementos colhidos no inquérito, principalmente a prova pericial, e foi mantido pela Procuradoria-Geral de Justiça após recurso. Segundo o MP, há a possibilidade de reabertura da investigação caso surjam novas provas ou indícios.

Questionado sobre os aspectos do laudo pericial levados em consideração para o arquivamento do caso, o Ministério Público não respondeu.

O que apontam os laudos periciais 

O laudo necroscópico descreve as lesões causadas por disparos de arma de fogo e os mecanismos que levaram à morte de Marcos. Segundo a perícia foram identificadas as seguintes características:

  • Ferimentos por arma de fogo: foram identificados seis ferimentos de entrada causados por projéteis de arma de fogo.
  • Olho roxo: Marcos apresentava hematomas nos olhos, o que pode indicar possível agressão.
  • Zona de esfumaçamento: alguns ferimentos apresentaram essa característica, que ocorre quando o disparo é feito a curta distância, indicando proximidade entre o atirador e a vítima.
  • Causa da morte: a morte foi causada por anemia aguda interna e externa traumática, resultante da perda intensa de sangue devido aos ferimentos.

Direções dos tiros:

  • Três disparos foram de frente para trás, sugerindo que a vítima estava de frente para o atirador.
  • Um disparo veio de trás para frente, indicando que a vítima estava de costas ou em movimento.
  • Um disparo foi de baixo para cima, o que pode sugerir que o atirador estava em um nível inferior ou a vítima estava inclinada.
  • Um disparo foi de cima para baixo, indicando que o atirador estava em uma posição elevada ou a vítima em posição rebaixada.

Perito e advogados questionam arquivamento

O perito forense Sérgio Hernandez Saldias explicou ao Terra que a preservação do local é responsabilidade da polícia, principalmente da Polícia Militar, que é a primeira a estar na cena. Caso o perito constate que o local não foi preservado, ele deve registrar isso no laudo, indicando que o local estava "inidôneo" -- como ocorreu no caso de Marcos.

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De acordo com ele, isso significa que, provavelmente, houve interferência de terceiros, como pessoas mexendo no local, nos vestígios ou no cadáver, o que compromete a análise forense. "O caso normalmente é arquivado caso comprovado que os policiais reagem para se defender perante uma agressão injusta atual ou iminente, e isso deve ser provado através das provas, comprovando-se, por exemplo, uma troca de tiros". 

Bruno Bottiglieri, advogado que representa a família de Marcos, acredita que as provas periciais não foram consideradas no arquivamento do caso. Segundo ele, também foi solicitado o acesso à localização do celular do soldado do Exército na data da morte, para demonstrar que ele havia ido visitar a filha e mostrar seu trajeto, mas o pedido não foi apreciado.

"Na realidade, o único fundamento para o arquivamento deste caso específico foi o relato dos policiais. Somente isso. Durante o processo, a decisão de arquivar foi tomada com base na ideia de que a palavra dos policiais teria um valor probatório superior ao de testemunhas ou outras provas nos autos. Isso desvalorizou completamente a prova pericial. A prova pericial juntada não foi analisada adequadamente, e não foi dada a devida atenção à palavra da família sobre a vítima, que não pôde ser ouvida devido à fatalidade", disse Bottiglieri.

Guilherme Andrade, também advogado da família, afirmou que a defesa está tentando um deslocamento de competência, ou seja, transferir o caso de São Paulo, onde os fatos ocorreram, para a competência federal. "A ideia é que a Polícia Federal investigue o caso. Desde a morte de Marcos até a operação Escudo, houve muitos excessos por parte da polícia e é preciso que as autoridades reconheçam isso. Não é um caso isolado", afirmou.

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Apesar dos disparos de 13 tiros de fuzil, o oficial da PM responsável pelo inquérito policial militar concluiu que os policiais militares envolvidos "agiram em legítima defesa própria e de terceiros, de forma moderada, proporcional e adequada à situação, demonstrando profissionalismo da equipe". Com base nessa avaliação, recomendou que os PMs não fossem indiciados no caso. Além disso, foi informado que, na época dos fatos, o 4º Batalhão de Choque ainda não utilizava câmeras corporais.

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) afirmou que o caso foi investigado pelas polícias Civil e Militar. A 3ª Delegacia de Homicídios da Deic de Santos coletou provas técnicas e testemunhais visando apurar e esclarecer todas as circunstâncias da ocorrência. O inquérito policial foi relatado à Justiça em abril deste ano e, após análise das provas, o Ministério Público pediu o arquivamento do processo.

Operação Escudo

A morte de Marcos ocorreu cerca de um mês antes do início de operações policiais consideradas as mais letais da Polícia Militar de São Paulo desde o massacre do Carandiru, em 1992. A primeira foi a Operação Escudo, deflagrada na Baixada Santista, litoral de São Paulo, após o assassinato do policial militar da Rota, Patrick Bastos Reis, em 28 de julho de 2023. Em 40 dias, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), a operação resultou em 958 prisões e 28 mortes, que a PM atribuiu a confrontos. No entanto, moradores denunciaram abusos, execuções e violência policial, e alguns policiais foram denunciados e se tornaram réus por homicídio.

Na sequência, teve início a segunda fase da Operação Escudo, também conhecida como Operação Verão, que começou em dezembro e se intensificou em fevereiro, após a morte de outro soldado da Rota. Juntas, as duas operações resultaram em pelo menos 84 mortes até 1º de abril, quando a última foi encerrada.

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Fonte: Redação Terra
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