Após manterem na semana passada o veto do presidente Jair Bolsonaro que impedia o Congresso Nacional de controlar a execução de cerca de R$ 30 bilhões do orçamento federal, deputados e senadores devem analisar nesta terça-feira, 10, proposta do próprio governo para devolver parte desses recursos para a gestão dos parlamentares.
De acordo com estimativas da área de Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle da Câmara dos Deputados, cerca de R$ 16 bilhões devem voltar ao controle do Congresso caso projetos de lei enviados na semana passada por Bolsonaro sejam aprovados nos termos sugeridos por seu governo. Já alguns congressistas calculam que esse valor pode variar de R$ 15 bilhões a R$ 19 bilhões.
Na semana passada, para garantir a manutenção do seu veto, Bolsonaro encaminhou três projetos de lei (PLN 2, PLN 3 e PLN 4), propondo novas mudanças na lei orçamentária. Embora o presidente negue que tenha feito acordo com o Congresso, o PLN 4 retorna parte dos R$ 30 bilhões para controle do deputado Domingos Neto (PSD-CE), relator do Orçamento de 2020.
No entanto, devido à reação negativa ao acordo nas redes sociais, mesmo parlamentares bolsonaristas defenderam nos últimos dias a rejeição do projeto de lei. Com isso, até Bolsonaro fez declarações na noite de segunda-feira, durante visita oficial aos Estados Unidos, contra a aprovação do PLN 4. Ele sugeriu que as manifestações convocadas para o dia 15 de março perderiam força caso isso ocorra. A mobilização foi chamada nas redes sociais em apoio ao presidente e contra o Congresso.
"O que a população quer, que está em discussão lá em Brasília: não quer que o Parlamento seja o dono do destino de R$ 15 bilhões do Orçamento. É isso que está em jogo no momento. Acredito ainda que, até o dia 15, os presidentes da Câmara e do Senado anunciem algo no tocante a dizer que não aceitam isso", afirmou o presidente, em referência aos protestos comvocados para domingo.
Controle excessivo
Críticos da devolução da verba ao Congresso dizem que não é correto um único parlamentar ter controle de um volume tão grande de recursos e veem risco de uso eleitoreiro desse dinheiro por Domingos Neto e congressistas aliados dele.
Na visão de alguns parlamentares, Bolsonaro fez acordo com o Congresso para dividir os R$ 30 bilhões por receio de ser retaliado em outras votações importantes. Nesta terça, por exemplo, o Congresso também pode analisar se mantém ou derruba o veto do presidente à ampliação do Benefício de Prestação Continuada (auxílio de um salário mínimo pago a idosos de baixa renda), matéria que teria impacto nas contas públicas.
Segundo a deputada Alê Santos (PSL-MG), vice-líder do governo na Câmara, "existe uma pressão muito forte" para aprovar a transferência de recursos ao Congresso, "ou vão quebrar os cofres da União derrubando o veto do BPC". Ainda assim, ela prometeu aos seguidores no Twitter que vai votar contra a proposta encaminhada pelo presidente.
Já o deputado Ubiratan Sanderson (PSL-RS), outro vice-líder do governo na Câmara, escreveu nesta segunda em sua conta no Twitter que a aprovação do PLN 4 seria "a mais nova facada" em Bolsonaro. "R$ 16 bilhões é o tamanho da mais nova 'facada' em @jairbolsonaro! O PLN4, além de inconstitucional (fere tripartição dos poderes), soa como deboche aos 57 milhões de brasileiros q confiaram a ele (e ñ ao relator do orçamento) a missão de governar o Brasil. #PLN4Não", postou.
Para a cientista política Lara Mesquita, pesquisadora da FGV, as falas de aliados do presidente contra os PLNs é mais um exemplo da "atuação muito desorganizada" do governo Bolsonaro no Congresso.
"Essas manifestações (de parlamentares bolsonaristas contra o PLN4) são sinônimo do caos do governo. Ninguém sabe qual é de fato a posição do Planalto", nota Mesquita.
Opositores se unem a bolsonaristas contra acordo
A previsão é que os projetos de lei sejam analisados pela manhã desta terça-feira por deputados e senadores na Comissão Mista de Orçamento (CMO) e, caso aprovados, sigam para votação no plenário do Congresso na parte da tarde. Além de bolsonaristas, há também parlamentares de partidos de oposição (como PSB e Rede) e independentes (como Novo e Podemos) criticando a proposta do governo.
O deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) disse a BBC News Brasil que seu partido atuará para "obstruir" a votação na CMO, ou seja, vai tentar adiar ou impedir a análise da matéria por meio de pronunciamentos e pedidos de adiamento.
No entanto, embora a rejeição à proposta una bolsonaristas a opositores e tenha mobilizado grupos de pressão nas redes sociais, não está claro se haverá votos suficientes para barrar o retorno dos recursos ao Congresso, já que esse acordo foi costurado pelos presidentes da Câmara (Rodrigo Maia) e do Senado (David Alcolumbre), com apoio de outros parlamentares importantes, como o deputado Arthur Lira (PP-AL).
Líder de um "blocão" de 13 partidos (PL, PP, PSD, MDB, PSDB, DEM, PTB, PROS, PSC, Solidariedade, Republicanos, Avante e Patriota), Arthur Lira defende que o controle de mais recursos do Orçamento pelo Legislativo está em linha com o princípio "menos Brasília, mais Brasil" que Bolsonaro defendeu na eleição de 2018.
"São os congressistas que estão em contato direto com a população, e conhecem a realidade e suas necessidades", disse ele na semana passada.
Já o líder do Podemos na Câmara, deputado Léo Moraes (PODE-RO), acusou publicamente o grupo de Lira de ser o principal interessado no controle do Congresso de parte do Orçamento Federal, com objetivo de destinar investimentos para sua base eleitoral em busca de votos no pleito municipal deste ano. É comum que deputados se candidatem a cargos de prefeito ou apoiem aliados nessas disputas.
"Um recurso a mais, que certamente vai ficar nas mãos dos caciques, dos coronéis políticos que estão há muito tempo no Congresso, muitas vezes encalacrados. Vão colocar (esses recursos) nos seus redutos e, aí sim, (vão) fazer, mais uma vez, curral eleitoral com o dinheiro do povo, da população", acusou Moraes.
Como os projetos de lei dividem os R$ 30 bi entre governo e Congresso?
Deputados e senadores já têm direito a destinar recursos federais para investimentos em sua base eleitoral por meio das chamadas emendas parlamentares individuais e das emendas de bancadas estaduais, que neste ano somam R$ 15,4 bilhões.
Já os R$ 30 bilhões alvos de disputa são recursos que, antes do veto de Bolsonaro, estavam sob controle específico do deputado Domingos Neto (PSD-CE), relator do Orçamento de 2020 aprovado pelo Congresso no final de 2019. O relator é quem centraliza as sugestões de mudanças feitas pelos parlamentares à proposta inicial do governo para o Orçamento federal e redige o texto final que é aprovado pelo Congresso.
Nos anos anteriores, as despesas previstas nessas alterações no texto, chamadas de "emendas do relator", eram executadas pelo governo federal. Dessa forma, se o relator alterava o valor previsto para saúde ou educação, por exemplo, era o ministro da área que decidiria como esses recursos seriam gastos e em que cidades do país seriam aplicados.
Pela primeira vez, os parlamentares aprovaram na lei orçamentária deste ano a previsão de que o relator seria o responsável por determinar como os ministérios fariam os gastos das "emendas do relator". Era esse sistema novo que dava cerca de R$ 30 bilhões para gestão de Domingos Neto. A maior parte dos recursos estava prevista para despesas do Ministério do Desenvolvimento Regional (R$ 8,3 bilhões), Saúde (R$ 8 bilhões) e Educação (R$ 3,5 bilhões).
Depois de vetar essa inovação, Bolsonaro enviou ao Congresso o PLN 3, que remaneja R$ 9,6 bilhões das "emendas do relator" para controle do governo, e o PLN 4, que prevê que Domingos Neto terá o controle apenas sobre os recursos criados pelas "emendas de relator" que significarem acréscimo em relação ao valor inicial proposto pelo governo.
É o resultado do conjunto do PLN 3 com o PLN 4 que deve devolver para controle de Domingos Neto cerca de R$ 16 bilhões, nas estimativas de Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle da Câmara dos Deputados. Já o PLN 2 estabelece que, em caso de arrecadação abaixo do previsto, o governo poderá contingenciar as "emendas do relator" na mesma proporção que cortar os gastos sob sua gestão. Esse projeto de lei também desobriga o governo a executar as despesas determinadas dor Domingos Neto quando houver "impedimentos de ordem técnica", como as ausências de projetos de engenharia ou de licença ambiental prévia.
O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, chegou a dizer em suas redes sociais que não havia acordo algum para retornar recursos para o Congresso porque os PLNs apenas permitiram ao relator determinar como recursos federais seriam gastos caso a arrecadação do governo viesse acima da receita projetada inicialmente na lei orçamentária. Apoiadores de Bolsonaro ecoaram essa versão nas redes sociais, nos últimos dias.
Consultores de Orçamento da Câmara ouvidos pela BBC News Brasil, porém, disseram que isso não está previsto nos projetos de lei. "A proposta do governo prevê que as despesas sob controle do Congresso podem ser contingenciadas se a receita vier abaixo do esperado, mas não precisa haver excesso de arrecadação para que a despesa seja executada", explicou um dos técnicos.
"Não tem história nenhuma de pegar excesso de arrecadação e investir, mesmo porque o maior interesse dos parlamentares na emenda de relator é executar essa emenda antes da eleição para beneficiar os seus candidatos a prefeituras", disse também o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), contestando o filho do presidente.
"Então, não faria sentido esperar até o final do ano para saber se arrecadou mais para depois indicar a emenda de relator como está no vídeo que o Eduardo Bolsonaro está divulgando", disse também o parlamentar, que é contra o repasse de recursos ao Congresso, embora faça parte do mesmo partido de Maia e Alcolumbre.