A longa crise política brasileira, que já atravessa três presidentes (Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro), tem levado cada vez mais autoridades a defender uma mudança no regime de governo do País.
Nas últimas semanas, ganhou fôlego em Brasília o debate para substituir o presidencialismo, em que o país é governado por um presidente eleito pela população, pelo semipresidencialismo, em que o presidente eleito diretamente divide o governo com o primeiro-ministro, escolhido por ele em acordo com o Congresso.
Segundo monitoramento da Universidade de Oxford (Reino Unido), é um regime presente em mais de 50 países, entre eles Portugal, França e boa parte das nações do Leste Europeu.
Em um momento em que Bolsonaro está fragilizado por mais de cem pedidos de impeachment, defensores da sua adoção no Brasil dizem que o semipresidencialismo daria mais flexibilidade em momentos de crise, já que permite trocar o primeiro-ministro - o responsável pela gestão do governo - de forma mais simples do que a destituição do presidente.
Além disso, acreditam que por ser um governo formado em acordo com o Congresso, o semipresidencialismo favoreceria uma governabilidade maior no parlamento.
A mudança é defendida hoje pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso.
"Podemos, sim, discutir o semipresidencialismo, que só valeria para as eleições de 2026, como qualquer outra ideia que diminua a instabilidade crônica que o Brasil vive há muito tempo", defendeu Lira na última semana.
Os críticos, por sua vez, argumentam que o semipresidencialismo poderia até trazer mais instabilidade, caso presidente e primeiro-ministro não estejam em sintonia. Apontam também que o número excessivo de partidos do país, que hoje dificulta o presidente a montar uma base no Congresso, continuaria sendo um problema com a mudança de regime, mantendo os desafios de governabilidade mesmo no semipresidencialismo.
Apesar dos padrinhos de peso que o semipresidencialismo conquistou em Brasília, não está claro se a proposta teria apoio popular e adesão suficiente no Congresso para ser aprovada. Uma mudança de regime depende de uma alteração da Constituição, com aprovação da ampla maioria do Parlamento (três quintos dos votos de deputados e senadores).
Opositores da proposta lembram que a população brasileira foi consultada sobre o regime de governo em um plebiscito em 1993, quando votou pela manutenção da República Presidencialista no país, descartando as opções pelo parlamentarismo e monarquia.
O debate gerou especial reação na esquerda, que viu na proposta uma forma de tentar tolher os poderes do futuro presidente, em um momento que o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) lidera as pesquisas de intenção de voto para 2022. Arthur Lira, porém, defende que a mudança só valeria a partir da eleição seguinte, de 2026.
"Semipresidencialismo é outro golpe para tentar evitar que nós possamos ganhar as eleições. Não dá pra brincar de reforma política, isso é coisa que tem que ser discutida com muita seriedade", acusou Lula em sua conta no Twitter na terça-feira (20/07).
Cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil também se dividem sobre a proposta. Entenda a seguir o que é o semipresidencialismo e os argumentos a favor e contra sua adoção no país.
Qual é o modelo de semipresidencialismo proposto?
Não existe um sistema puro de semipresidencialismo, explica o cientista político Christian Lynch, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Na verdade, diz ele, o regime varia em diferentes países, a depender da forma como é distribuído o poder entre presidente e primeiro-ministro e das regras para formação e funcionamento do governo.
Caso o Brasil adote o regime, Lynch defende que seja algo semelhante ao modelo francês, em que o presidente mantém um papel forte.
A proposta de emenda à Constituição (PEC), em debate ainda inicial no Congresso, foi formulada pelo deputado Samuel Moreira (PSDB-SP). Ela prevê que o presidente eleito indique uma pessoa para o cargo de primeiro-ministro, que precisa de aprovação da maioria absoluta do Congresso. O escolhido deverá ser "preferencialmente" um parlamentar.
O primeiro-ministro, por sua vez, aponta quem serão os ministros do governo e, junto com essa equipe, é o responsável pela gestão da máquina pública.
Ainda segundo a proposta de Moreira, o presidente mantém a função de Chefe de Estado, representando o país internacionalmente e sendo responsável por escolher o comando das Forças Armadas e por indicar alguns cargos, como os ministros do STF, que devem ser também aprovados no Senado (como já ocorre hoje).
Segundo a PEC, o mandato presidencial continua sendo de quatro anos, permitida apenas uma reeleição.
A proposta também estabelece que o primeiro-ministro possa ser trocado a partir do segundo ano do mandado presidencial e até seis meses antes da eleição seguinte, caso a maioria absoluta do Congresso aprove a mudança. O novo ocupante do cargo também deve ser indicado pelo presidente.
Como forma de tentar evitar que essa troca ocorra com frequência, a PEC estabelece que o presidente possa dissolver a Câmara dos Deputados se o Parlamento rejeitar o indicado ou destituir o primeiro-ministro três vezes. Nesse caso, uma nova eleição para a Câmara seria convocada em 30 dias.
A proposta acaba com o cargo do vice-presidente. Se o presidente da República sofrer impeachment, renunciar ou morrer, o presidente da Câmara assumiria o cargo até uma nova eleição presidencial, em 60 dias. O novo presidente teria um mandato de quatro anos.
Regime garante mais estabilidade?
As regras para novas eleições propostas pela PEC poderiam provocar um descasamento entre a escolha do presidente e dos membros do Congresso, algo que aumenta o risco de instabilidade no semipresidencialismo, ressalta a cientista política Laura Mesquita, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
"O simples fato de mudar o sistema não necessariamente garante governo mais estável", alerta ela.
Segundo Mesquita, foram feitas reformas na França nas últimas décadas mudando a duração dos mandatos e datas das eleições para que a escolha do presidente e do Congresso coincidissem, com objetivo de aumentar as chances de que a maioria eleita no Parlamento tivesse sintonia com o mandatário escolhido nas urnas.
"Se a gente observar as experiências de governo dividido na França, quando se elege um presidente de um partido e a maioria legislativa de outro partido, e o primeiro-ministro pode ser até de oposição (ao presidente), foram governos de muitos conflitos", ressalta.
"Assim, a França foi ajustando o seu sistema e mudando as datas das eleições e o processo eleitoral para diminuir a frequência de governos divididos porque eles entenderam que isso causaria uma nova crise política", explica.
Na visão da pesquisadora, a crise política do Brasil hoje não está relacionada ao sistema de governo, mas "à falta de valores democráticos do presidente e outras autoridades". Problema que, para ela, pode ser resolvido nas urnas em 2022, caso a população eleja um presidente comprometido com a democracia.
Para ela, momentos de crise aguda não são os melhores para adotar reformas estruturais, já que as soluções buscadas para problemas imediatos podem não fazer sentido à frente. "Eu sou pouco otimista que a mudança de sistema de governo nos traria a solução para a crise institucional que nós estamos enfrentando", afirma.
Presidente mais fraco ou mais forte?
Ao contrário do que apontam alguns críticos do semipresidencialismo, Chrystian Lynch acredita que o sistema não enfraquece o presidente. Na sua visão, ocorre o oposto, já que ele passa a deter o poder de dissolver a Câmara.
"Dizem que no presidencialismo o presidente é mais forte. Só que o presidente pode sofrer impeachment, mas não pode dissolver o Congresso", ressalta.
Na sua visão, a figura do primeiro-ministro também fortalece o presidente ao protegê-lo de desgastes. Funciona como um "anteparo" a crises, diz.
Outro aspecto positivo do semipresidencialismo, acredita Lynch, é que permitiria uma maior responsabilização do Congresso. Ele nota que os últimos presidentes brasileiros têm ficado muito reféns das exigências do Parlamento. Mas, na prática, a população não responsabiliza os congressistas pelo fracasso ou sucesso do governo.
"Com a pulverização partidária do Brasil, o presidente fica muito fraco. Fica objeto de chantagem do Congresso e ele tem que 'comprar' o Congresso para não sofrer o impeachment. Isso aconteceu com Dilma, isso aconteceu com o Temer, isso acontece com o Bolsonaro", afirma o professor.
"Só que o Congresso tem esse poder de chantagem enorme, mas não tem nenhuma responsabilidade efetiva no governo. Então, não tem incentivo externo para eles (os parlamentares) se organizarem, para ter um funcionamento do Congresso mais transparente, republicano, eficiente e representativo. Se você der ao Congresso responsabilidade nas tarefas de governo, vai criar incentivo para situação e oposição se agregarem, se organizarem melhor", acrescenta.
O autor da PEC do semipresidencialismo, deputado Samuel Moreira, também defende que sua proposta traria mais transparência e consistência à coalizão de governo no Congresso. Segundo o texto proposto por ele, "os partidos políticos com representação no Congresso Nacional celebrarão contrato de coalizão, consistente em pontos básicos acerca do programa de governo a ser cumprido pelo Primeiro-Ministro que vier a ser indicado".
"Hoje o presidente fica refém de um núcleo (no Congresso) que ninguém sabe quem é exatamente, quais partidos são, qual o tamanho. No semipresidencialismo, a população vai assistir essa negociação para formação de maioria às claras. E, ao eleger o presidente, dará todo crédito ao presidente para escolher o primeiro-ministro e construir essa maioria", sustenta Moreira.
Apesar de simpático à mudança, Chrystian Lynch ressalta que a adoção do semipresidencialismo não deve ser vista como "panaceia" para resolver os problemas brasileiros, mas como uma tentativa de aperfeiçoar o sistema presidencialista. Ressalta também que seu êxito dependeria do desenho do regime eventualmente adotado.
Por ser um tema complexo, ele defende que a mudança, caso seja aprovada no Congresso, não deveria ser submetida à decisão popular em um plebiscito. O ideal, diz, seria prever um referendo para oito anos depois, em que a população, após testar a nova opção na prática, responda se quer seguir no novo regime ou voltar ao presidencialismo puro.
Falta apoio popular, diz crítico da proposta
Em sua conta no Twitter, o cientista político Fernando Bizzarro, pesquisador da Universidade Harvard, analisou o argumento de que o semipresidencialismo melhoraria a democracia brasileira ao aumentar a responsabilidade do Congresso.
Amorim Netto e Samuels parecem dizer que ela se sentiria bem, pois, uma vez que o deputado mediano se tornasse responsável pelo desempenho do governo suas preferências se transformariam e ficariam muitos mais próximas das preferências da eleitora mediana que estão hoje.
— Fernando Bizzarro (@fbizzarroneto) July 21, 2021
Na sua avaliação, isso pode não funcionar devido à imagem negativa que o Parlamento tem hoje na sociedade, ainda mais se a mudança for adotada sem apoio popular.
"O eleitor já rejeitou explicitamente mudar o sistema de governo duas vezes (em referendo em 1963 e plebiscito em 1993). Mudá-lo à revelia da vontade popular tende a diminuir ainda mais a conta em que os cidadãos têm o Congresso. Se a distância afetiva entre os eleitores e os políticos é grande, tomar dos primeiros o direito auto-concedido de escolher o Presidente deve afastá-los ainda mais", acredita Bizzarro.
Para ele, eleitor escolheu o presidencialismo "talvez porque seja sábio, talvez porque tenha sorte", já que, na sua leitura, o "deputado médio" brasileiro não está alinhado aos anseios e necessidades da maioria dos eleitores brasileiros, pessoas de baixa renda.
"É provável que, para a eleitora mediana brasileira, o Presidencialismo seja vantajoso. Ele é uma maneira eficaz de garantir uma alocação de recursos e políticas públicas mais próximas daquelas que ela prefere que aquelas que ela receberia via representação parlamentar", argumenta.
"Essa discrepância ocorre da distância entre a preferência da eleitora mediana e do deputado mediano, os quais tendem a não se sobrepor perfeitamente devido à desproporcionalidade na representação dos estados, ao sistema eleitoral centrado nos candidatos, e a desigualdade", disse ainda.
Segundo Bizzarro, o país teve quase duas décadas de estabilidade e desenvolvimento quando foi governado por presidentes fortes e capazes de coordenar coalizões no Congresso, durante os governos Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Lula (PT).
"Mesmo diante de crises econômicas de grandes proporções ou escândalos de corrupção, esses dois governos foram capazes de construir e reconstruir um país muito melhor do que aquele deixado pelos militares na sua (agora) penúltima aventura governamental. Consequentemente, é impossível que o Presidencialismo brasileiro seja inerentemente problemático uma vez que sobreviveu vinte anos sem sobressaltos", sustentou o pesquisador.