Agência antiterrorismo de Bolsonaro une policiais e esquerda em oposição

Projeto de Lei prevê criação da Autoridade Nacional Contraterrorista, mas críticos veem risco de uso para perseguição política

15 set 2021 - 08h23
(atualizado às 09h09)
PM prende manifestante em ato contra Bolsonaro; críticos temem que agência antiterrorismo sirva para perseguição política
PM prende manifestante em ato contra Bolsonaro; críticos temem que agência antiterrorismo sirva para perseguição política
Foto: Reuters / BBC News Brasil

A tentativa do presidente Jair Bolsonaro de criar uma espécie de agência antiterrorista no Brasil não sofre oposição apenas de partidos de esquerda, organizações de defesa dos direitos humanos e movimentos sociais - grupos que tradicionalmente se opõem a propostas nesse campo por verem uma tentativa de uso dessas estruturas de repressão para perseguição política. A ideia também desagrada policiais e outros agentes de segurança pública, categorias em que o presidente costuma ter amplo apoio.

Para associações do setor, entre elas a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) e a Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol), o projeto de lei em debate na Câmara dos Deputados para criar uma Autoridade Nacional Contraterrorista apresenta uma "série de inconstitucionalidades".

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Elas argumentam que o texto estabelece uma definição muito ampla de terrorismo e concentra grandes poderes em uma nova agência subordinada ao presidente da República que atuaria de forma "conflitiva" com as instituições já existentes, como as polícias e o Ministério Público.

É o que diz uma nota técnica contrária ao projeto de lei assinada em março por dez associações da área de segurança.

Além da ADPF e da Cobrapol, apoiaram a manifestação a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), o Conselho Nacional de Entidades Representativas dos Profissionais do Sistema Socioeducativo (Conasse), a Federação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (Fenadepol), a Federação Nacional dos Oficiais Militares Estaduais (Feneme), a Federação Sindical Nacional de Servidores Penitenciários e Policiais Penais (Fenasppen), a Federação Nacional de Sindicatos de Guardas Municipais do Brasil (Fenaguardas), a Federação Nacional dos Trabalhadores do Sistema Socioeducativo (Fenasse), e a Associação Brasileira de Criminalística (ABC).

Já a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) divulgou nota própria no início de setembro com críticas semelhantes à proposta.

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"O PL (projeto de lei) estabelece conceitos genéricos relacionados ao crime de terrorismo e desconsidera o papel do Ministério Público no controle externo da atividade policial e na sua própria atuação finalística na formulação de pleitos judiciais com vinculação direta a um ato típico penal, além de promover a sobreposição de competências, em afronta ao pacto federativo", diz o documento.

O projeto de lei para criação da Autoridade Nacional Contraterrorista foi apresentado por Bolsonaro quando ainda era deputado federal. Após a proposta ser arquivada devido a sua eleição para presidente, o deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), um dos mais fiéis aliados de Bolsonaro na Câmara, reapresentou o PL, que está em fase final de análise em uma comissão especial.

Segundo o relator da matéria, o deputado Ubiratan Sanderson (PSL-RS), a proposta deve ser votada pelo colegiado na quinta-feira (16/9). Caso seja aprovada na comissão, será apreciada no plenário da Câmara, em data ainda a ser definida. Se receber o aval dos deputados, segue para análise no Senado, onde agendas bolsonaristas têm sofrido mais resistência.

À BBC News Brasil, Sanderson disse que incorporou ao seu relatório final sugestões das associações policiais e que a resistência desses grupos estaria superada. No entanto, o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Edvandir Paiva, manteve as críticas ao ser entrevistado pela reportagem.

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Definição de terrorismo

Um dos pontos controversos no texto final do PL apresentado por Sanderson é a ampliação da definição de terrorismo.

A Lei Antiterrorismo aprovada em 2016 estabelece que crimes como portar substâncias capazes de provocar destruição em massa, sabotar o funcionamento de meios de comunicação ou transporte, ou atentar contra a vida ou integridade física humana serão considerados terrorismo quando cometidos "por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião" ou "com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública".

Essa lei também veda a possibilidade de pessoas serem consideradas terroristas por sua atuação na cobrança de direitos em "manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional".

Já a proposta de lei em debate na Câmara prevê que atuação antiterrorista visará também "atos que, embora não tipificados como crime de terrorismo sejam ofensivos para a vida humana ou efetivamente destrutivos em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave".

Para Edvandir Paiva, da ADPF, a ampliação da definição de terrorismo vai trazer insegurança na aplicação da lei, abrindo margem para possíveis abusos.

"O projeto de lei deixa a definição de terrorismo muito ampla e isso deixa a gente, os aplicadores do direito, desprotegidos. Nós vamos ter que interpretar de uma maneira muito aberta o que seria esses atos (de terrorismo), o que não seria, e aí vamos resvalar no entendimento político do momento. O direito penal não pode ser assim, tem que ser taxativo, tem que ser exato", argumenta.

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Na sua avaliação, isso não é um risco apenas para movimentos ligados à esquerda, mas para qualquer grupo, já que a nova agência, caso aprovada, ficará sob comando de diferentes governos ao longo do tempo.

Bolsonaro apresentou projeto de lei que cria agência antiterrorismo quando era deputado
Foto: Presidência da República / BBC News Brasil

Segundo o projeto de lei, a Autoridade Nacional Contraterrorista será nomeada pelo Presidente da República e subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional. A previsão é que ela tenha agentes militares e civis.

Entre os pontos polêmicos, está a previsão de "excludentes de ilicitude" para os agentes dessa agência, ou seja, condições em que ficariam impedidos de sofrer punição por crimes.

O texto do PL prevê, por exemplo, essa proteção para "o infiltrado que pratique condutas tipificadas como crime quando a situação vivenciada o impuser, especialmente, se caracterizado risco para sua própria vida".

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Na visão da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), "com previsão excessivamente ampla, como a ideia de 'quando a situação vivenciada o impuser', há o risco de o PL legitimar violações de direitos fundamentais por parte dos agentes públicos, mediante a disseminação de uma atuação ostensiva e violenta".

Outro trecho controverso altera a Lei de Acesso à Informação para permitir que as autoridades responsáveis pela execução de ações contraterroristas tenham acesso irrestrito às informações de infraestrutura e a informações classificadas como sigilosas.

Para o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), o projeto cria uma instituição semelhante à KGB, a polícia secreta da extinta União Soviética.

"O projeto tem tipos penais abertos, é genérico e perigoso. A autoridade terá acesso a toda informação sigilosa que precisar. Ela pode não só investigar crimes, mas prevenir. O que é prevenir? É espionagem. Este projeto está dentro de um contexto de escalada autoritária de um presidente da República que ameaçou os poderes no último 7 de setembro", afirmou, durante debate na comissão especial.

Objetivo é melhorar coordenação antiterrorista, diz relator

Sanderson nega que a proposta criminalize movimentos sociais e defende a criação da agência com o argumento de que hoje o combate ao terrorismo carece de uma coordenação centralizada no país.

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Ao justificar a necessidade de melhorar isso, ele lembra que existe um diagnóstico entre as autoridades americanas de que o atentado sofrido pelos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001 pela Al Qaeda poderia ter sido evitado se houvesse uma melhor comunicação entre diferentes órgãos de segurança do país.

Na sua visão, a oposição de associações policiais teria um viés corporativo. "Existe uma guerra de vaidade entre Polícia Federal, Abin e Forças Armadas", criticou.

Já Edvandir Paiva, da ADPF, diz que a coordenação poderia ser aperfeiçoada com medidas administrativas, como a criação de protocolos para atuação coordenada das diferentes instituições, como Polícia Federal, polícias estaduais, Forças Armadas e Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

"Já temos lei para combater o terrorismo. Nós precisamos muito mais de protocolos de atuação do que uma autoridade que se sobrepõe a todas as outras. É uma questão procedimental que pode ser resolvida sem um longo debate no Congresso", diz Paiva.

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Para críticos do presidente, proposta se insere em escalada autoritária do seu governo
Foto: Reprodução/Facebook / BBC News Brasil

O Brasil precisa de uma agência antiterrorismo?

Outro ponto levantado por críticos da proposta é a real necessidade de criar uma agência antiterrorismo em um país como o Brasil, que não tem histórico de ameaças terroristas.

Autor do livro "As Origens da Lei Antiterrorismo no Brasil", fruto de seu mestrado pela Fundação Getúlio Vargas, o consultor em transparência Guilherme France questiona a real motivação por trás do PL em debate na Câmara.

Ele explica que a lei aprovada em 2016 refletiu uma pressão internacional para que o Brasil se adequasse ao arcabouço legal antiterrorismo, em um contexto em que havia grandes eventos internacionais ocorrendo no país, como as Olimpíadas realizadas no Rio de Janeiro. Na sua visão, essas questões já foram equacionadas com a legislação aprovada há cinco anos.

"Ao meu ver, o que acaba motivando a apresentação de novos projetos de lei sobre tema foi a o sucesso da lei antiterrorismo em evitar ser abusada por atores estatais para perseguir movimentos sociais e grupos reivindicatórios", afirma.

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"A partir do momento que a lei não se mostra suficientemente ampla ou aberta pra ser utilizada por promotores, delegados, juízes e forças de segurança para perseguir esses grupos, esses políticos, especialmente de direita, começam a manifestar uma insatisfação com a legislação atual e apresentam esses projetos", acrescentou.

Sanderson nega qualquer motivação contra movimentos sociais e diz que a proposta deve olhar "o futuro".

"É um texto técnico, não é ideológico, e é uma matéria que se preocupa não com o passado, se preocupa com o futuro. Não é porque o Brasil nunca teve um atentado terrorista que nós não precisamos ter uma legislação que dê capacidade operativa ao Estado (para evitar ataques). Hoje nós não temos", defendeu.

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