O número de mortes por causas naturais no sistema penitenciário de São Paulo cresceu 14,5% de 2015 a 2017. Se for computado o total de óbitos, incluindo suicídios e homicídios, a variação foi de 10,6% no período. Os relatórios anuais do governo estadual mostram que houve contenção quase constante nos investimentos da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) nos últimos cinco anos, apesar de o gasto geral ter aumentado.
O total liquidado em investimentos, de acordo com os números dos relatórios do governo paulista, caiu de R$ 285 milhões em 2013 para R$ 203 milhões em 2017, sem contar as perdas causadas pela inflação de 30% do período — o cálculo foi feito com base no IPC-A, considerando 31 de dezembro de 2013 e 31 de dezembro de 2017.
O valor nominal mais baixo nos últimos anos foi registrado em 2015, quando R$ 167 milhões foram investidos. Segundo os mesmos documentos, o total liquidado pela SAP subiu de R$ 2,85 bilhões em 2013 para R$ 3,97 bilhões em 2017. Variação positiva de 39,4%.
Mesmo com a diminuição dos investimentos, a superlotação dos presídios do Estado teve leve queda nos últimos anos. De 2016 para 2017, houve aumento no número de vagas ao mesmo tempo em que a quantidade de presos recuou. Devido às audiências de custódia, implantadas recentemente, mais pessoas presas em flagrante têm sido liberadas — pelo menos até o julgamento. Ainda não é possível saber se o número continuará a cair.
Os dados sobre a mortalidade nos presídios foram obtidos pelo Terra por meio da Lei de Acesso à Informação. Foram 482 mortes em 2014 e 532 em 2017. Em cada ano, a quantidade de óbitos foi dividida pelo número total de presos no sistema carcerário estadual da época. A variação de até 14,5% é do número relativo.
De 2014 para 2015 houve uma queda no total de óbitos. Os números de 2017, porém, atingem patamares superiores aos de 2014, antes da queda, tanto em termos absolutos como relativos.
Nas cadeias paulistas, é muito mais fácil morrer por doença que atingido por tiros, estocado por faca ou outras causas violentas. Em 2017, dos 532 detentos falecidos no sistema prisional de São Paulo, 484 foram por “causas naturais”, na classificação do governo, enquanto 29 cometeram suicídios e 19 foram assassinados.
O Terra perguntou à Secretaria de Administração Penitenciária se gostaria de comentar os números e outros dados levantados, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. A SAP já havia fornecido algumas informações e explicações por meio de sua assessoria de imprensa em momentos iniciais da produção deste texto, meses atrás.
Doenças e mais doenças
As condições dos cárceres, como a superlotação, favorecem o alastramento de enfermidades. “Tuberculose você tem em toda a população, mas enquanto na população não-prisional temos em torno de 30 a 40 casos por 100 mil habitantes, nas penitenciárias são mais de 900 por 100 mil”, explica o pesquisador Péricles Alves Nogueira, ex-professor da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Ele conduz pesquisas sobre a incidência de tuberculose nos presídios. Forneceu à reportagem alguns números: em 2017, havia 3.712 casos notificados da doença em detentos no Estado. Desses, 16 morreram em decorrência da enfermidade, e 24 perderam a vida por outras causas.
A quantidade de presos por vaga nas cadeias paulistas teve ligeira queda entre 2014 e 2017, mas continua bastante acima da capacidade. Passou de 1,673 presos por vaga para 1,609. O Terra calculou esses números com base em dados fornecidos pela SAP.
Segundo a plataforma Geopresídios, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o déficit de vagas no sistema prisional do Estado é de 59,99%. Em comparação com o resto do País, o quadro não é dos piores.
São Paulo é a nona unidade da Federação com cadeias menos superlotadas. Pernambuco, local em pior situação segundo a plataforma, tem 208,47% de déficit. Faltam vagas em todos os Estados. A consulta ao Geopresídios foi feita em 3 de agosto.
Outros problemas além da superlotação podem prejudicar a saúde da população carcerária. O professor Nogueira explica que era comum o extravio de prontuários médicos de detentos transferidos de presídio. A perda causava, por exemplo, interrupção de tratamentos. A falha foi resolvida pelo governo do Estado.
A assistência à saúde, segundo o coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Thiago de Luna Cury, é ruim dentro dos presídios. “Em quase todas as unidades não tem equipe de saúde completa”.
Eventualmente, policiais militares “criam dificuldades”, nas palavras do defensor público, na hora de escoltar presos doentes até hospitais — postura que também seria observada inclusive em estabelecimentos de saúde.
Ele contou a seguinte história: “Já ouvi de preso: ‘ah, fui atendido na porta da viatura porque não quiseram me levar para dentro do hospital. Então fui atendido algemado, o médico olhou para minha cara e esse foi meu atendimento’.”
O Terra perguntou por e-mail à assessoria de imprensa da Polícia Militar se gostaria de se manifestar sobre a declaração do defensor público. A mensagem não foi respondida até a publicação desta reportagem. Por telefone, porém, disse que o caso contado é abstrato e só se manifesta em situações específicas. Também afirmou que a PM segue as leis.
Outra dificuldade foi apontada pela assessoria técnica da Secretaria de Administração Penitenciária, em resposta a pedido de acesso a informação respondido em março deste ano: “A grande maioria das pessoas que dão entrada no sistema penitenciário são oriundas de comunidades carentes, sem o hábito de procurar assistência preventiva de saúde”.
O órgão também afirma que muitos dos detentos ingressam nos presídios com AIDS, tuberculose, câncer, hepatite, entre outras doenças. Em 2017, 9.286 pessoas foram encarceradas a cada mês no sistema estadual, em média.
Onde (e como) morrem os presos
Dos 532 presos e presas que perderam a vida nas cadeias estaduais de São Paulo em 2017, 435 já estavam em algum hospital quando a morte foi constatada. Entre essas mortes, foram 430 por causas naturais, uma por homicídio e quatro suicídios.
O segundo local onde mais se morreu naquele ano foram as enfermarias das unidades prisionais: 20 por causas naturais, 7 suicídios e nenhum homicídio.
Também foram registradas mortes nas celas, pátio, em trabalho externo e até no banho.
Nos quatro anos em que os dados estão disponíveis, suicídios foram mais comuns que homicídios. Em 2017, por exemplo, 19 pessoas foram assassinadas nos presídios paulistas, enquanto 29 tiraram a própria vida, nas contas do governo estadual. Fora das cadeias, assassinatos são mais numerosos que mortes auto infligidas.
O promotor do Ministério Público Estadual Paulo de Palma faz vistorias mensais em presídios. Perguntado sobre o que impulsiona o número de suicídios nas cadeias, disse: “Talvez a privação da liberdade, ou o modo como a privação de liberdade esteja sendo executada no Brasil, porque ainda é algo que inspira cuidados, pode estar entre os fatores”.
Ele disse, porém, que não acredita ser esse o único motivo. “Tem uma série de fatores, problemas sociais.” Durante a entrevista, citou o aumento dos suicídios de pessoas livres nos últimos anos.
Sobre a quantidade de homicídios dentro das cadeias paulistas, disse que há um processo de “harmonização” do sistema. “A disciplina tem aumentado”, o que, segundo ele, diminui as chances de assassinatos. Ele trabalha na área há mais de dez anos, e afirma que houve grandes avanços no período.
Em janeiro de 2017, uma rebelião comandada pela facção Família do Norte deixou 56 mortos em um presídio de Manaus (AM), entre eles membros do Primeiro Comando da Capital (PCC). O PCC nasceu em São Paulo, e é hegemônico nos presídios paulistas.
Perguntado se a predominância da facção, e consequente inexistência de guerra entre organizações criminosas, ajuda a pelo menos diminuir o número de tentativas de homicídio das cadeias paulistas, Palma respondeu: “Não vou negar que o PCC tem seus mecanismos de controle”. Em seguida, voltou dizer que as autoridades competentes são os principais atores de manutenção da ordem no cárcere.
Limbo informativo
De acordo com a resposta da SAP ao pedido de acesso à informação feito pela reportagem, não é possível saber ao certo os números de anos anteriores a 2014.
A Secretaria explicou que não tem um órgão para coleta de dados e produção de estatísticas. O primeiro levantamento com informações sobre mortes de presidiários no sistema estadual foi feito em 2014.
Devido à ausência de uma série histórica com os números de mortes, é impossível saber se o aumento registrado é uma tendência.
Procurando alguma evidência empírica sobre a situação dos presídios de SP, a reportagem perguntou ao defensor público Thiago de Luna Cury se foi detectada piora recente nas condições. “É complicado pensar o que piorou porque, desde sempre, desde que comecei a trabalhar com a temática, a situação é caótica no sistema inteiro”, respondeu ele.
No Brasil, há uma deficiência de informação acerca os presos. A principal fonte de dados sobre o assunto é o Infopen, com registros relativos ao País e aos Estados individualmente. Os números são organizados pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional), tradicionalmente ligado ao Ministério da Justiça e que passou para o Ministério da Segurança Pública.
As informações contidas nas edições do Infopen são precárias. O Rio de Janeiro, por exemplo, não respondeu ao levantamento em dezembro de 2015 e junho de 2016, segundo a assessoria do Ministério da Justiça – quando esta reportagem começou a ser produzida, o Ministério da Segurança Pública ainda não existia.
Além disso, o Terra identificou um ano (2009) em que os números de mortos nos presídios de São Paulo eram maiores na edição de junho do Infopen, relativa ao primeiro semestre, do que na de dezembro, relativa ao acumulado do ano.
Questionado sobre a qualidade dos dados relativos a São Paulo, o Depen disse que quem forneceu as informações foi a SAP. “O Departamento Penitenciário Nacional somente faz a consolidação desses dados”.
A SAP disse que não se responsabiliza pelos números do Infopen “por discordar de alguns critérios utilizados”. As informações, explica, eram prestadas diretamente pelas unidades prisionais, “o que pode gerar inconsistências”.
Uma fonte que dá assistência à população carcerária contou ao Terra que, certa vez, ouviu o seguinte de um diretor de presídio sobre o levantamento do Infopen: “Eu não tenho nem acesso à internet [na unidade que dirige], como vou mandar os dados?”.
A página onde os levantamentos do Infopen estão disponíveis mostram, ainda, que desde a primeira edição, em 2005, até a última, em 2016, não houve uma periodicidade clara. Alguns anos tiveram apenas uma edição, em vez de duas.
Houve uma mudança recente na coleta de dados do Infopen. Agora, é usada uma plataforma chamada Sisdepen. As informações continuam sendo prestadas pelas unidades prisionais, e depois devem ser validadas pelos governos dos Estados.
Outra mudança relevante veio com a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, de junho de 2018. O texto determina que “o não fornecimento ou atualização dos de dados e informações poderá impedir o recebimento de recursos ou celebração de parcerias com a União”, nas palavras do Depen.
A próxima edição do levantamento deverá ser publicada no fim deste ano, e é relativa ao primeiro semestre de 2017. Atualmente, está em fase de coleta de dados.