Com pesquisas sobre a extrema direita brasileira há mais de uma década, a antropóloga Isabela Kalil alertou em dezembro de 2022 que seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) buscavam instigar o caos, num processo de radicalização.
Os fatos deram razão à especialista, que coordena o Observatório da Extrema Direita no Brasil.
Ao invadir as sedes dos três Poderes em Brasília, no domingo (8/1), milhares de militantes radicais bolsonaristas demonstraram uma capacidade de ação ao emular grupos extremistas nos Estados Unidos, apontou Kalil em entrevista à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC para a América Latina.
Ela diz que as semelhanças entre o que aconteceu em Brasília e o ataque ao Capitólio, em Washington por seguidores do então presidente americano Donald Trump, em 6 de janeiro de 2021, estão longe de ser mera coincidência.
A antropóloga também indica que há o risco de que atos semelhantes se repitam em outros países da América Latina.
Confira a seguir os principais trechos da entrevsta com Kalil, que também é professora e pesquisadora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
BBC News Mundo - Qual o significado da invasão dos três Poderes do Estado do Brasil por milhares de bolsonaristas no domingo?
Isabela Kalil - Há duas dimensões: a gravidade deste ato em nível nacional e transnacional. Ou seja, como esse ato coloca a extrema direita brasileira em sintonia com a extrema direita global, principalmente dos Estados Unidos.
Eu diria que o ato é representativo não só para o Brasil, mas para a relação entre diferentes grupos extremistas no Brasil e nos EUA, pelo fato de eles terem quase replicado a invasão do Capitólio.
BBC News Mundo - Qual o objetivo dos extremistas com esses tipos de ataques?
Kalil - Foi um ataque aos três Poderes, mas muito mais virulento contra o Supremo Tribunal Federal (STF).
Esses grupos já esperavam há alguns meses e exigiam que Bolsonaro fizesse algum tipo de intervenção, como eles chamam.
Como isso não aconteceu, eles foram para a frente dos quartéis, esperando que as Forças Armadas brasileiras respondessem, tomassem o que chamam de posição e fizessem uma intervenção.
Isso também não aconteceu. E aí esses grupos, não de forma institucionalizada, mas com a participação de militares reformados e pessoas das forças de segurança pública que lá estavam na qualidade de civis, acabaram por realizar esses atos.
Então, no fundo, acho que fica uma mensagem: eles demonstraram que conseguem se mobilizar, independentemente de terem instituições ou uma liderança política direcionando esses atos com mais clareza.
BBC News Mundo - Quase 1,2 mil bolsonaristas foram detidos nas últimas horas. Os acampamentos que tinham no Distrito Federal e em diferentes Estados do Brasil foram desmantelados na segunda-feira (9/1). Isso pode marcar o fim dessas mobilizações extremistas?
Kalil - É importante notar que as instituições brasileiras toleraram muito.
Após o anúncio da vitória de Lula (PT) e da derrota de Bolsonaro, essas mobilizações começaram. E, desde então, não se desmobilizaram. Eles continuaram nas portas dos quartéis após se mobilizarem nas rodovias.
Acho que agora há realmente uma desmobilização. Isso não exclui que possam ocorrer atos isolados de extremismo e terrorismo, não com o mesmo nível de pessoas ou de mobilização.
BBC News Mundo - Esses grupos têm uma estratégia predeterminada?
Kalil - No caso do Brasil, eles foram mobilizados por muito tempo em torno de um ato semelhante a este.
Então, do ponto de vista dos dirigentes, não havia como desmobilizá-los, mesmo que fosse por um ato que eles considerariam mais simbólico.
Porque o ato foi muito grave, mas não havia atores políticos dentro dos prédios públicos. Eles não atacaram uma pessoa específica. Eles poderiam ter feito um ataque no momento de uma sessão do Congresso Nacional ou de uma atividade do STF com os juízes reunidos, mas não fizeram.
Acho que foi uma tentativa de marcar aquela mobilização, e talvez leve anos para chegar a um novo ato como esse. Segundo o que acompanhamos desses grupos, desde o final de 2019 e o início de 2020 eles estão fazendo apelos desse tipo.
BBC News Mundo - Eles têm líderes?
Kalil - Os atos têm diferentes lideranças. Mas é difícil nomeá-los, porque há uma mobilização digital muito forte que também utiliza robôs e aplicativos de mensagens instantâneas.
Bolsonaro passou anos mobilizando seus apoiadores para isso. Mesmo que ele não tenha dado uma ordem direta agora, acredito que ele seja o responsável por organizar aquele exército de pessoas.
BBC News Mundo - Que nível de organização eles têm?
Kalil - O primeiro estudo que nos ajudou a entender esses grupos mostrou uma forte segmentação.
Há grupos de mulheres mobilizadas em torno de questões de gênero, grupos de homens mais jovens, grupos mobilizados em torno de uma agenda militar... E pode haver uma relação mais ligada ao contexto religioso conservador.
O que torna esses grupos tão difíceis de desmobilizar é que eles não têm uma agenda única. São diferentes grupos mobilizados em torno de agendas distintas.
BBC News Mundo - Então isso vai além de Bolsonaro, mesmo que o ex-presidente seja o líder?
Kalil - Exato. Em determinado momento, esses grupos tiveram uma dependência maior da figura de Bolsonaro para se mobilizarem.
Bolsonaro ainda é o principal líder, um líder importante, e deve ser responsabilizado até por esses atos, mesmo que tenha agido indiretamente.
Mas, de certa forma, os atos mostram que esses grupos ganharam autonomia.
BBC News Mundo - Por que ninguém conseguiu impedir o que aconteceu no domingo em Brasília?
Kalil - Há uma combinação de fatores. Há uma certa clemência de certos agentes de segurança pública, que têm muita simpatia por Bolsonaro.
Isso significa que, mesmo quando o comando de determinadas forças policiais pode dar ordem para reprimir, muitas vezes os próprios agentes apoiam os atos. Portanto, há uma forte penetração do bolsonarismo nas forças de segurança.
Há questões institucionais relacionadas até mesmo à atuação das autoridades do Distrito Federal.
Mas há outra questão: o fato de Bolsonaro ter feito aquela retirada estratégica e viajado para os EUA foi como se ele tivesse tirado a extrema direita de cena. E isso não é verdade. Houve um erro de cálculo.
Como eu disse, é um relacionamento complexo. Mesmo que Bolsonaro dê ou não uma ordem mais explícita, eles podem agir.
BBC News Mundo - Você acha que a extrema direita está infiltrada até nas forças de segurança brasileiras?
Kalil - Não, existem agentes de segurança que simpatizam com esses grupos. Eles apoiam o bolsonarismo e o Bolsonaro.
BBC News Mundo - Mas então o governo Lula e todo o Estado brasileiro vão ter que enfrentar não só esses grupos nas ruas, como também essa simpatia nas Forças Armadas?
Kalil - Exatamente, nas Forças Armadas e nas forças de segurança como a polícia militar, a polícia rodoviária...
Esse é o desafio: atuar do ponto de vista da sociedade civil, mas também institucional, dos agentes do Estado.
BBC News Mundo - Muitos notam as semelhanças entre o que aconteceu em Brasília no domingo e o atentado ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. São coincidências?
Kalil - Eu não acho que é uma coincidência.
Existe uma hashtag, #BrazilianSpring, que começou a ser compartilhada por Steve Bannon [ex-estrategista de Trump].
Na verdade, houve uma espécie de performance para colocar a extrema direita do Brasil em sintonia com a dos EUA, e de certa forma emular a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 por aqui.
BBC News Mundo - Isso significa que a extrema direita está compartilhando forças, ideias e estratégias no continente?
Kalil - Pelo menos há uma tentativa. Não podemos dizer que isso acontecerá em outros países. Mas existe uma estratégia da extrema direita transnacional que é tentar fazer isso na América Latina.
Se ela vai conseguir ou não, isso vai depender muito da mobilização das forças democráticas dos países, das instituições e da capacidade de conter esses grupos.
Há um objetivo de tornar essas estratégias transnacionais e compartilhar diferentes repertórios e táticas.
No caso do Brasil, isso não é exatamente novo. Com minha equipe de pesquisa, já publicamos um artigo que comparou a mobilização da extrema direita no Brasil e nos EUA após a pandemia de covid-19.
Mas, com os acontecimentos de domingo, se consolida a transnacionalização da extrema direita no Brasil.
BBC News Mundo - Existe uma conexão orgânica entre movimentos de extrema-direita nos EUA, Brasil e outras partes do mundo?
Kalil - O que acontece é que existem diferentes lideranças brasileiras que seguem e acompanham certos porta-vozes da extrema direita nos EUA e, de certa forma, fazem uma tradução disso para o Brasil.
Tanto que existem líderes bolsonaristas que, quando têm problemas com a lei, saem do Brasil e vão para os EUA.
Um importante ator da extrema direita brasileira foi Olavo de Carvalho, já falecido, que de certa forma fez aquela espécie de tradução para o Brasil do que acontecia nos Estados Unidos, com a mobilização da extrema direita e outros elementos mais radicais.
Ele criou uma ponte, e tem alunos do Olavo de Carvalho que começaram a consumir essas influências e materiais da extrema direita dos EUA.
BBC News Mundo - Os países da região devem estar atentos a essa vocação transnacional da extrema direita?
Kalil - É preciso evitar as tentativas de replicar a invasão de prédios públicos. O Brasil copiou isso dos EUA. Há risco de tentativas de invasão de prédios públicos de outros países da região.
O Brasil é estratégico no continente, porque a vitória de Lula sinaliza que teremos a consolidação de uma segunda onda de partidos de esquerda e centro-esquerda, e como isso vai se vincular às questões socioambientais e de diversidade, como a luta contra o racismo, as questões de gênero, etc.
O Brasil é estratégico porque, de certa forma, tem uma influência importante na região do ponto de vista político.
Portanto, é preciso estar atento para que não haja tentativas em outros países da região, como o que ocorreu nos Estados Unidos e agora no Brasil.