O choque entre o presidente Jair Bolsonaro e governadores e prefeitos sobre as medidas de combate à pandemia de covid-19 se acentua enquanto o país bate recordes de mortes diárias e de ocupação de UTIs, com perspectiva de piora nas próximas semanas. Além de discordância sobre normas que restringem a movimentação de pessoas, o embate se dá sobre iniciativas para que os governos locais possam comprar vacinas diretamente dos produtores.
São Paulo, estado mais populoso do país, está na fase vermelha de restrições desde sábado (06/03), que permite apenas o funcionamento de atividades essenciais. Na cidade do Rio de Janeiro, bares e restaurantes devem fechar às 17h desde sexta-feira. Em Santa Catarina, um decreto proibiu serviços não essenciais neste sábado e domingo. Decisões semelhantes foram tomadas em outras regiões do país.
No nível federal, Bolsonaro insiste em uma postura contrária ao isolamento social e negacionista em relação à gravidade da pandemia. Na quinta-feira, um dia após o país bater seu recorde de mortes diárias, com 1.910 óbitos, o presidente disse que fechar o comércio seria "frescura". "Chega de frescura, de mimimi, vamos ficar chorando até quando?", afirmou.
Na sexta-feira, o presidente anunciou que havia pedido a auxiliares que preparassem um projeto de lei para ampliar a lista de atividades essenciais que poderiam seguir abertas durante as restrições aplicadas por municípios e estados. "Atividade essencial é toda aquela necessária para o chefe de família levar o pão para casa", afirmou Bolsonaro.
O presidente também cogita fazer um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão para, entre outros pontos, criticar os prefeitos e governadores que restringiram a circulação de pessoas. O discurso seria transmitido inicialmente na terça-feira, foi postergado para quarta-feira e, depois, adiado novamente por sugestão de seus assessores próximos.
Federalismo de confronto
A estratégia de Bolsonaro de confrontar os prefeitos e governadores é vista como um cálculo político para se isentar da responsabilidade pela gestão da pandemia, e ameaça desestruturar o sistema federativo brasileiro, que deveria se basear na coordenação entre os diferentes níveis de governo.
Já em março de 2020, no início da pandemia, quando o Brasil se preparava para a primeira onda da covid-19 e alguns prefeitos e governadores anunciavam medidas restritivas, Bolsonaro editou uma medida provisória concentrando no governo federal o poder de determinar as regras sobre a movimentação de pessoas.
A iniciativa do presidente não prosperou. Em abril, o Supremo Tribunal Federal derrubou a medida e autorizou governadores e prefeitos a regulamentarem o tema, em decisão recebida de forma indignada por Bolsonaro. Em maio, o presidente editou um decreto incluindo salões de beleza, barbearias e academias no rol de serviços essenciais, mas foi ignorado por parte dos estados e municípios.
O comportamento do governo federal como um todo, porém, tem uma lógica dúbia. Ao mesmo tempo em que Bolsonaro questiona a eficácia dos imunizantes e critica as medidas de restrição, para mobilizar sua base de apoiadores, o Ministério da Saúde faz divulgações pontuais de que vai comprar mais vacinas, como a indiana Covaxin ou a da Pfizer/Biontech. Os anúncios e estimativas da pasta, contudo, costumam ser inflados e os acordos ainda dependem de outros passos para se efetivarem. A Covaxin, por exemplo, ainda não teve aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e o contrato com a Pfizer ainda não foi fechado.
Reação dos estados e municípios
As críticas do presidente às medidas de isolamento social têm efeito negativo na eficácia das decisões de prefeitos e governadores, pois confundem a população e quebram a unidade necessária para o sucesso das regras de isolamento. Mas os governos locais já estão respaldados pela decisão do Supremo para seguir com essas medidas.
O que preocupa os governadores neste momento é a compra de vacinas, que está centralizada no Ministério da Saúde e tem um fornecimento lento, restrito a poucos fornecedores e inconstante. Na quinta-feira, 14 governadores enviaram uma carta a Bolsonaro pedindo providências para aquisição de mais doses. No texto, eles argumentam estarem "no limite de suas forças e possibilidades" e que "nas próximas semanas, talvez meses, a pandemia seguirá ceifando vidas, ameaçando, desafiando e entristecendo todos nós".
Alguns líderes estaduais se preparam para buscar fontes alternativas. Um deles é o governador de São Paulo, João Doria, que já impôs uma derrota ao presidente ao trazer a Coronavac ao país por meio de uma parceria com o Instituto Butantan. Bolsonaro inicialmente havia dito que não compraria o imunizante, mas depois cedeu e o Ministério da Saúde adquiriu toda a produção da vacina pelo Butantan. Na terça-feira (02/03), em reunião virtual com 617 prefeitos do estado de São Paulo, Doria prometeu ir além da Coronavac e comprar 20 milhões de doses da vacina da Pfizer/Biontech e já aprovada pela Anvisa, e outras 20 milhões de doses do imunizante russo Sputnik V, ainda não liberado pela agência, para serem aplicadas em moradores de São Paulo.
Outros governadores também negociam a compra direta de vacinas. No final de fevereiro, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou o remanejamento de verbas para comprar vacinas e o governo local negocia a compra de doses da Pfizer e da Sputnik V. Há iniciativas semelhantes no Espírito Santo e em Santa Catarina, entre outros estados.
O Consórcio Nordeste, composto por nove governadores da região, tem um pré-contrato para comprar 50 milhões de doses da Sputnik V, e entrou com ação no Supremo para poder adquirir e aplicar o imunizante sem a necessidade de aprovação da Anvisa, ainda não julgada pela Corte.
Na sexta-feira, governadores do Consórcio da Amazônia, composto por nove estados, reuniram-se com o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Todd Chapman, para pedir ajuda aos norte-americanos para viabilizar a compra de 10 milhões de doses de vacinas para os moradores da região.
Os municípios têm menos capacidade financeira para negociar a aquisição de imunizantes com os laboratórios, mas também entraram no circuito. A Frente Nacional de Prefeitos lidera um consórcio de cidades para comprar vacinas, que já tem mais de 100 municípios participantes. E a Confederação Nacional dos Municípios divulgou nota na quinta-feira na qual defende que, na ausência de liderança do governo federal, estados e municípios passem a comprar vacinas.
Essas iniciativas de compra descentralizada desagradam o governo federal, que não quer repartir a responsabilidade pela aquisição dos imunizantes com os governos locais e perder o protagonismo na vacinação, como ocorreu no episódio com Doria, fotografado ao lado da primeira pessoa vacinada no país. Segundo o jornal Valor, o Ministério da Saúde informou os laboratórios que negociações para a venda de vacinas diretamente aos governadores, individualmente ou em grupo, não seriam bem recebidas pelo governo federal, que tem os recursos para fazer as compras em maior escala.
Compra descentralizada de imunizantes
Apesar da crescente mobilização, o plano de governadores e prefeitos para comprar vacinas diretamente tem alguns obstáculos. O primeiro é a escassez global do insumo em todo o mundo, que não impede a aquisição, mas pode atrasar as entregas.
Além disso, há o gargalo da aprovação pela Anvisa, que até o momento concedeu registro definitivo apenas para a vacina da Pfizer/Biontech e autorização para uso emergencial para a Coronavac e a vacina de Oxford/AstraZeneca, distribuída no país em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Por fim, há dúvidas sobre a legalidade de os governos assinarem contratos com fornecedores que os isentem de responsabilidade por eventuais efeitos colaterais dos imunizantes.
Há soluções para esses entraves sendo construídas em Brasília. Em 23 de fevereiro, o Supremo autorizou estados e municípios a comprarem e distribuírem vacinas se o governo federal não cumprir o Plano Nacional de Imunização contra a covid-19 ou se as doses forem insuficientes. Na mesma decisão, a corte definiu que a Anvisa tem um prazo de 72 horas para avaliar pedidos de registro de vacinas que governos locais queiram comprar. Após esse prazo, a importação seria liberada se o imunizante já tiver sido aprovado por agências reguladoras da Europa, dos Estados Unidos, do Japão ou da China.
Regra semelhante foi introduzida pelo Congresso em uma medida provisória sobre a adesão do Brasil ao consórcio internacional de vacinas Covax Facility. A norma deu cinco dias para a Anvisa aprovar o uso emergencial de vacinas que já tivessem recebido o aval de pelo menos uma de oito autoridades sanitárias estrangeiras. Esse trecho, porém, foi vetado por Bolsonaro na segunda-feira (1º/03), e cabe ao Congresso manter ou derrubar o veto do presidente.
Outro caminho para a descentralização da compra de vacinas está em um projeto de lei aprovado na terça-feira pelo Congresso. O texto autoriza a aquisição das vacinas por estados e municípios, desde que aprovadas pela Anvisa, e permite que União, estados e municípios assumam a responsabilidade de indenizar cidadãos por efeitos colaterais e contratem seguros para eventuais riscos ligados aos imunizantes. O projeto aguarda a sanção ou veto de Bolsonaro.