Bolsonaro e Moro "surfam na onda" da redução de crimes

País deve fechar 2019 com nova queda nos indicadores, como ocorreu em 2018. Para sociólogo, é preciso observar as ações dos Estados

2 jan 2020 - 05h11
(atualizado às 08h28)

SÃO PAULO - O ano de 2019 deverá terminar com uma nova queda nos indicadores de criminalidade no País, de acordo com o que apontam prévias dos dados federais. Após um ano recorde de homicídios em 2017, quando cerca de 65 mil pessoas foram assassinadas, o número caiu 10% em 2018, tendência que se manteve no primeiro ano da gestão do presidente Jair Bolsonaro. A interpretação que faz o sociólogo e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública - organização que reúne pesquisadores e policiais com a missão de debater a segurança no Brasil -, Renato Sérgio de Lima, é que Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sérgio Moro, "surfam na onda" da queda dos indicadores, produzida sobretudo por ação local dos Estados.

Ele diz que o ponto positivo do governo federal no primeiro ano foi a capacidade de o presidente ser protagonista de demandas por mais segurança, atendendo a um anseio da população e "gerindo o medo". Todos que antecederam Bolsonaro no cargo, diz Lima, foram coadjuvantes nas discussões na área. "O protagonismo é positivo porque mostra que é possível resolver o problema, que não é uma coisa insolúvel. Por outro lado, o que ele está fazendo diante de todas essas condições favoráveis? Pouca coisa."

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Presidente Jair Bolsonaro ao lado do ministro da Justiça, Sergio Moro  REUTERS/Adriano Machado
Presidente Jair Bolsonaro ao lado do ministro da Justiça, Sergio Moro REUTERS/Adriano Machado
Foto: Reuters

As ações frequentemente citadas por Moro, como a atuação da Força Nacional ou a transferência de lideranças para o sistema penitenciário federal, não representam nenhuma inovação ao que já vinha sendo feito, e, por isso, não são capazes de explicar a continuidade da queda nos indicadores em 2019, sustenta Lima. Para que a melhora na segurança se prolongue de forma sustentável, é preciso identificar com mais profundidade as boas práticas estaduais que têm contribuído para esse cenário. Do contrário, todo o esforço pode vir a ser perdido. Esse é um compromisso que poderia ser assumido por Bolsonaro, junto com a liberação de recursos bilionários para a segurança, que continuam contingenciados, defende o sociólogo. A seguir, leia a entrevista que ele concedeu ao Estado:

Os números apresentados pelo governo Bolsonaro até agora mostram indicadores de criminalidade em queda no País. O que explica isso?

Para entender a segurança pública em 2019 e entender o primeiro ano da gestão Bolsonaro, temos de olhar para três dimensões: a tendência da criminalidade, a gestão do medo e das expectativas e as políticas públicas implementadas.

Quando olhamos para a tendência, percebemos que o Brasil desde 2015 vem num processo de nacionalização da redução dos indicadores. De 2015 para 2016, das 27 unidades da federação, nove já apresentavam queda nos homicídios; de 2016 para 2017, esse número passou para 15; e de 2017 para 2018, isso passou a ser visto em 24 unidades da federação. O que vimos para isso acontecer foi ação local impulsionada pelos governadores, com investimentos que há tempos não ocorria. No Ceará, por exemplo, 10 mil policiais foram contratados. Estados do Nordeste, que estavam vivendo guerras abertas de facções, reverteram o problema. Então, a tendência de queda completou sua nacionalização em 2018 e se acentuou em 2019.

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Ao mesmo tempo, Bolsonaro fez desde a campanha aquilo que sempre falávamos que é uma das questões fundamentais para que a segurança tivesse um ciclo positivo: a Presidência da República assumir o discurso prioritário da segurança. E o Bolsonaro falou sobre isso, o que não quer dizer que está fazendo da melhor forma. Mas assim ele vem se beneficiando de um momento de queda. O discurso do presidente, dizendo eu vou resolver, conseguiu construir uma narrativa política onde ele se coloca como protagonista numa área onde todos os outros presidentes se colocavam como coadjuvantes. Ao contrário dos presidentes anteriores, ele começa a sua gestão não mais a partir de uma crise, porque as crises estão caindo, e sim do benefício do acerto de ações locais e prévias.

O protagonismo é positivo porque mostra que é possível resolver o problema, que não é uma coisa insolúvel. Mas, por outro lado, o que ele está fazendo diante de todas essas condições favoráveis? Pouca coisa. Não há esforço de sistematizar o que está dando certo e o protagonismo termina por ser desperdiçado.

E o que de fato está sendo feito?

No nível federal, houve uma sensibilização da Polícia Federal para a importância do combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro a ele conectado, além do programa Em Frente, Brasil, que tem o piloto ocorrendo em cinco cidades. As transferências de lideranças para penitenciárias federais também continuou ocorrendo. Mas são ações pontuais e nenhuma delas tem a capacidade de reduzir em 20% a violência, mas elas alimentam a inflexão no sentimento de insegurança.

O que aconteceu foi uma enorme inflexão no sentimento de medo e insegurança com medidas incrementais, mas sem medidas de caráter nacional inovador. A Força Nacional está agindo como sempre agiu, não tem mais dinheiro, o dinheiro está sendo de certa forma muito contingenciado, as taxas de ocupação prisional são as mesmas, e até há denúncias de maus tratos e torturas da força-tarefa penitenciária. As ações em si não tem a capacidade de explicar a queda, mas contribuem para falar que 'olha, agora está acontecendo alguma coisa'. No fundo, o que o governo está fazendo é se beneficiar de ações que estavam sendo construídas ao longo dos últimos anos, de integração, de foco em informação e inteligência, de formação policial, que agora estão retroalimentando um momento que a população entende como positivo.

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Diante das ações já demonstradas, o que pode se esperar para o ano de 2020 na área da segurança?

É preciso transformar o discurso em prática. Isso ocorre, por exemplo, com a liberação de dinheiro para os Estados, apoiando efetivamente as ações que vão fazer a diferença, como desenvolvimento de metas e indicadores e o fomento a uma maior integração nacional. O ano de 2020 deveria começar com descontingenciamento de recursos do Fundo Nacional da Segurança Pública para ser gasto naquilo que efetivamente tem dado certo.

Tem de se identificar com mais clareza as razões que estão levando à queda dos indicadores para que eles continuem caindo. Do contrário, ficar só no discurso pode colocar tudo a perder. A mensagem-chave para a população é: o governo está reduzindo a violência. O que não é exatamente o fato. O fato é teimoso porque a tendência veio se nacionalizando e que se sabe muito pouco sobre todas as possibilidades explicativas. O governo soube explorar isso e está surfando na onda.

Diante do poder de agenda de Bolsonaro, o desafio de se pensar segurança pública com cidadania será fugir das armadilhas e platitudes narrativas. Precisamos investir em avaliações robustas e em análises qualificadas da realidade.

O governo parece ter dedicado bastante atenção a tentar facilitar o acesso da população a armas de fogo. Que tipo de impacto pode ser esperado disso?

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Há um esforço liberalizante, onde os efeitos não serão imediatos, seja pelo custo, seja pela insegurança jurídica, quem vai comprar é quem tem dinheiro e quem já está convencido na agenda ideológica. Essa confusão de ele ter baixado oito decretos sobre o tema cumpre o papel de dizer que está deixando o cidadão garantir a sua segurança. É uma mensagem equivocada, mas forte do ponto de vista político. Muitas pessoas acreditam que podem se defender se tiverem armas, mesmo que as evidências mostrem o contrário. Nessa confusão, menos importa o fato, mais importa a mensagem. Mais do que as armas, o ponto mais preocupante é completa descontrole na venda de munições, ao liberar a quantidade e fabricação doméstica.

Em meio a uma redução nacional dos indicadores, persiste a elevação nos registros de mortes por policiais. Será possível observar algum dia a taxa de homicídios e letalidade cair simultaneamente?

Temos um problema sério pela frente que é o controle do uso da força por parte da polícia. A mensagem do atual governo é de descontrole, de liberação, de que os policiais da ponta saberão fazer uso da força, quando em nenhum lugar do mundo se deixa o policial da ponta tomar a decisão. Isso não é saudável para ele, para a corporação, para a sociedade. Temos um número crescente de casos que chamam atenção: os 80 tiros do Exército, os oito mortos pela PM na Paraíba, a comemoração insana do Witzel no caso do sniper, o helicóptero que abre fogo no Complexo da Maré, a morte da Ágatha, a ação da polícia em Paraisópolis. O discurso como o do Bolsonaro vai incentivando um modelo de enfrentamento, um padrão que você vai e resolve independente dos efeitos colaterais, e esse efeito pode ser a morte.

Importante observar que um dos principais discursos do Bolsonaro é de que o policial é perseguido porque se tiver que matar um "vagabundo" vai ser processado por 10 anos e vai ter de pagar seu advogado. No entanto, no projeto anticrime, o Moro e o Bolsonaro não incluíram nenhuma ação para garantir que, enquanto a investigação estivesse em andamento, a assistência jurídica fosse gratuita para o policial. Foi o Fórum Brasileiro de Segurança Pública junto com a Associação de Praças que sugeriram e foi aprovado essa cláusula. Enquanto se investiga se o ato é legítimo, o advogado é público. O Bolsonaro enquanto faz o discurso que vai proteger, nunca tinha feito de fato isso. Há uma distância entre o discurso de querer agradar o policial e o dia a dia da prática.

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Por fim, temos de pensar ações que melhorem a investigação, garantam que ações legítimas sejam reconhecidas como legítimas, e ações abusivas sejam investigadas e punidas. Quando você conseguir separar as duas coisas, pode se chegar num bom termo. Onde mais caem os homicídios no País não é onde crescem as mortes pela polícia. No Ceará, Paraíba, Minas e Distrito Federal, a polícia não mata em proporções elevadas e as taxas estão caindo de forma acelerada.

Outro tipo de crime que destoa da queda nacional é o feminicídio. Quais políticas específicas são demandadas para enfrentar o problema?

Há uma evidência forte de que a violência continua sendo uma das nossas marcas mais profundas em termos de característica de ser brasileiro, marca de identidade. Quando falamos em criminalidade, não estamos falando só do crime organizado, do crime comum que assusta a população. Falta ainda articulação capaz de oferecer soluções críveis e duradouras. O governo conseguiu reverter a sensação de insegurança macro, mas o dia a dia da população continua sendo profundamente inseguro. Se deixei de ter medo quando estou na esquina, quando chego em casa é grande a chance de continuar sendo vítima de violência.

Veja dados e ações do governo federal em 2019

Homicídios

Segundo o Ministério da Justiça, a quantidade de homicídios de janeiro a agosto de 2019 teve queda de 22% na comparação com o mesmo período do ano passado (31,6 mil casos ante 24,6 mil neste ano). Os números se baseiam em dados repassados pelos Estados ao governo federal.

Força Nacional

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A tropa formada por agentes cedidos pelo Estado e treinados pelo ministério atuou em 75 operações neste ano, sendo 16 delas de caráter ostensivo, ou seja, com intuito de realizar patrulhamento nas ruas, como ocorreu no Ceará em janeiro. Em oito oportunidades, a tropa foi deslocada para atuar em operações de caráter ambiental.

Em Frente, Brasil

O programa que foi implementado em cinco cidades do País (Ananindeua, Cariacica, Goiânia, Paulista e São José dos Pinhais) completou 100 dias no início de dezembro. A avaliação que o governo faz é positiva, com redução de indicadores de homicídios e roubos nessas localidades.

Presídios federais

O governo federal destaca o recebimento de 22 presos que integram a cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC) em unidades de segurança máxima do sistema penitenciário federal. A transferência ocorreu a pedido do Ministério Público de São Paulo e por ordem da Justiça. No total, foram 324 inclusões no sistema federal de janeiro a novembro, o que o ministério diz ser um aumento de 93% na comparação com o mesmo período do ano passado.

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