O discurso do presidente Jair Bolsonaro nesta terça-feira, 22, na abertura dos debates da 75ª Assembleia Geral das Organizações das Nações Unidas (ONU) passou por ajustes para, na visão de seus auxiliares, ter um tom menos beligerante do que em sua estreia naquele palanque, no ano passado. Com as mudanças, as críticas à atuação da ONU, o posicionamento contra o aborto e a defesa da liberdade de expressão na internet ficaram de fora. As críticas ao socialismo também perderam espaço. Em 2019, a palavra foi citada cinco vezes, mas nenhuma neste ano.
Pressionado tanto pela política ambiental quanto pela condução da pandemia do coronavírus, Bolsonaro decidiu, junto com assessores, que era o momento de fazer um discurso de defesa do governo e não de ataque, como ocorreu no ano passado. De acordo com auxiliares, em 2019 Bolsonaro precisava se apresentar ao mundo e mostrar as convicções de sua administração. Neste ano, porém, ao se ater a questões pontuais, quis evitar que o caldo de críticas engrossasse ao falar de outros temas.
Não foi o suficiente. O discurso foi criticado por opositores e entidades ligadas aos Direitos Humanos e Meio Ambiente por negar a gravidade da pandemia e do desmatamento. Na conferência, Bolsonaro repetiu sua narrativa contra o isolamento social e citou a hidroxicloroquina, medicamento sem eficácia comprovada para o tratamento da covid. Minimizou os incêndios em áreas protegidas, atribuiu a "índios e cablocos" queimadas florestais e disse que o Brasil tem políticas de "tolerância zero" com o crime ambiental.
Um dos motivos para os ajustes foi justamente as cobranças diante de queimadas recordes nas florestas, que ameaçam acordos comerciais. Bolsonaro evitou fulanizar os críticos de sua política ambiental como fez no ano passado, quando citou França e Alemanha, mas não deixou de contra-atacar, dizendo que o Brasil é vítima "de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a destruição ambiental da Amazônia e do Pantanal".
"A Amazônia brasileira é sabidamente riquíssima. Isso explica o apoio de instituições internacionais a essa campanha escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o governo e o próprio Brasil", disse o presidente.
No início deste mês, foi lançada uma campanha mundial chamada "Defund Bolsonaro", que alertou para a destruição na Amazônia e cobrou países e empresas a retirar financiamento ao governo Bolsonaro como meio de evitar queimadas. Um vídeo com áudio e legenda em inglês mostra imagem das florestas em chamas e diz que incêndios na Amazônia são "atos criminosos apoiados pela administração Bolsonaro e pelos grandes negócios". A campanha, que tem a participação de ONGs brasileiras, irritou o Palácio do Planalto.
O presidente aproveitou para defender a manutenção de acordos comerciais e disse que eles reforçam o compromisso com o meio ambiente. "Seguimos comprometidos com a conclusão dos acordos comerciais firmados entre o Mercosul e a União Europeia e com a Associação Europeia de Livre Comércio. Esses acordos possuem importantes cláusulas que reforçam nossos compromissos com a proteção ambiental", disse.
No fim de agosto, o vice-presidente Hamilton Mourão, coordenador do Conselho da Amazônia, afirmou que o acordo União Europeia-Mercosul "parece começar a fazer água." Em entrevista ao Estadão, em setembro, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), concordou com a avaliação de Mourão, atribuindo a ameaça ao que chamou de "propaganda negativa que estão fazendo da Amazônia."
Com as mudanças, foram deixadas de lado críticas mais fortes à Venezuela, Cuba, Nicarágua e ao Foro de São Paulo. O país governado por Nicolás Maduro foi citado duas vezes, lembrando as manchas de óleo no litoral brasileiro, em 2019. "O Brasil foi vítima de um criminoso derramamento de óleo venezuelano, vendido sem controle, acarretando severos danos ao meio ambiente e sérios prejuízos nas atividades de pesca e turismo", destacou Bolsonaro.
Em outro momento, o presidente foi sucinto na menção ao regime de Maduro ao enfatizar a atuação do Brasil no campo humanitário e dos direitos humanos, citando o apoio aos refugiados venezuelanos. "A Operação Acolhida, encabeçada pelo Ministério da Defesa, recebeu quase 400 mil venezuelanos deslocados devido à grave crise político-econômica gerada pela ditadura bolivariana", disse.
No ano passado, Bolsonaro usou a ironia sobre a situação do país vizinho. "A Venezuela, outrora um país pujante e democrático, hoje experimenta a crueldade do socialismo. O socialismo está dando certo na Venezuela! Todos estão pobres e sem liberdade!".
Em 2019, o presidente também disse que o Brasil "esteve muito próximo ao socialismo" e que seu governo tinha a missão de "reconquistar a confiança no mundo". Na ocasião, usou tom ainda mais duro: "O Foro de São Paulo, organização criminosa criada em 1990 por Fidel Castro, Lula e Hugo Chávez para difundir e implementar o socialismo na América Latina, ainda continua vivo e tem que ser combatido." Embora constasse da primeira versão do discurso, o tema não apareceu neste ano.
A menção à tecnologia do 5G foi considerada no governo como o recado ideológico mais direto. O leilão do 5G no Brasil, previsto para 2021, é palco de disputa tecnológica entre Estados Unidos e China. "O Brasil está aberto para o desenvolvimento de tecnologia de ponta e inovação, a exemplo da indústria 4.0, da inteligência artificial, nanotecnologia e da tecnologia 5G, com quaisquer parceiros que respeitem nossa soberania, prezem pela liberdade e pela proteção de dados", afirmou o presidente.
Sem citar a China, Bolsonaro disse que "a pandemia deixa a grande lição de que não podemos depender apenas de umas poucas nações para produção de insumos e meios essenciais para nossa sobrevivência." A crise sanitária expôs a dependência mundial de itens de saúde chineses, mas Bolsonaro evitou crítica direta.
Em um texto-base para o discurso, ao qual o Estadão teve acesso, havia uma defesa contra o aborto. Neste rascunho, havia uma sugestão para que o presidente exaltasse a Parceria para as Famílias, iniciativa conservadora de Brasil, Hungria, Polônia e Estados Unidos, com o objetivo de modificar o debate sobre educação sexual e gênero em organizações internacionais. Os assuntos, porém, foram suprimidos da versão final.
No material produzido como guia para o pronunciamento na ONU, havia uma sugestão para que Bolsonaro mencionasse que "a pandemia demonstrou o papel central e primário que cabe aos Estados Unidos na solução de problemas mundiais", mas o trecho também foi retirado.
Em discurso na ONU, Bolsonaro faz aceno a Trump
Entretanto, a 42 dias das eleições americanas, o brasileiro não deixou de fazer um aceno ao presidente Donald Trump, que tenta um segundo mandato. E elogiou a iniciativa lançada pelo líder americano como solução para o conflito entre Israel e a Palestina. "O Brasil saúda também o Plano de Paz e Prosperidade lançado pelo Presidente Donald Trump, com uma visão promissora para, após mais de sete décadas de esforços, retomar o caminho da tão desejada solução do conflito israelense-palestino", disse Bolsonaro no vídeo exibido nesta terça-feira na Assembleia-Geral.
A perda de espaço de auxiliares ligado ao guru Olavo de Carvalho no governo também contribuiu para que temas mais ideológicos tivessem peso menor no discurso do presidente. Em 2019, o assessor de Assuntos Internacionais, Filipe Martins, teve participação maior no resultado final. Neste ano, porém, o auxiliar teve uma colaboração menor no texto construído pelos ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Fernando Azevedo (Defesa), além do secretário especial de Assuntos Estratégicos, o almirante Flávio Rocha. O ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, também foi chamado a opinar.
O enxugamento do discurso ocorreu, ainda, por uma questão de tempo. Na estreia, Bolsonaro falou por 31 minutos na sede da ONU. Dessa vez, por causa da pandemia do coronavírus, enviou um vídeo de cerca de 15 minutos.
Nesta manhã, o presidente assistiu à transmissão do seu discurso pela TV Brasil, no Palácio do Planalto, acompanhado de ministros e parlamentares. Estiveram presentes os ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Paulo Guedes (Economia), Fábio Faria (Comunicações) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), além do assessor de Assuntos Internacionais, Filipe Martins.
Os líderes do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR); no Senado, senador Fernando Bezerra (MDB-PE), e no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO), também assistiram ao discurso, junto com Bolsonaro. Ao lado dele estiveram também o deputado Arthur Lira (PP-AL), um dos líderes do Centrão, e o senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator do Orçamento. O grupo já estava em reunião no Planalto pouco antes do discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU.