A fé ultrapassou a pregação do altar para pautar discurso político na campanha eleitoral pelo Planalto - palácio "consagrado a demônios" antes da posse de Jair Bolsonaro (PL), segundo a primeira-dama Michelle. Manifestações da mulher do presidente e de aliados puseram em alerta analistas e políticos para os riscos da intolerância religiosa, enquanto o núcleo de campanha de reeleição de Bolsonaro tenta minimizar o impacto dos episódios.
Em um culto no domingo passado, Michelle afirmou que o Planalto, "hoje, é consagrado ao senhor Jesus". Dois dias depois, em uma rede social, compartilhou um vídeo que mostra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no ano passado, em um ritual do candomblé, o que foi associado às "trevas". "Isso pode, né? Eu falar de Deus, não", escreveu.
Pela Constituição, Michelle pode falar de Deus, assim como os adeptos de quaisquer crenças têm o direito de professá-las. A própria primeira-dama já sofreu preconceito, quando, após aprovação de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal, no ano passado, orou em línguas - uma expressão da fé pentecostal - e foi alvo de comentários pejorativos.
As declarações recentes, no entanto, indicam o uso de um equipamento da administração pública - no caso, o Planalto - com objetivos privados e eleitorais, o que, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, fere o Estado laico. Para o cientista político Vinicius do Valle, diretor do Observatório Evangélico, Michelle pôs a relação entre política e religião em um patamar inédito no Brasil.
"Em matéria de religião, ritualística é tudo", afirmou Valle. "Ela (Michelle) faz um discurso com uma prosódia, um vocabulário, toda a performance de um pentecostal conduzindo o culto", disse. Neste sábado, 13, a primeira-dama foi destaque em evento religioso no Rio. "O Estado é laico, mas eu sou cristã. Nós vamos, sim, trazer a presença do Senhor Jesus para o governo", declarou Michelle ao participar da Marcha para Jesus ao lado de Bolsonaro.
Já o vídeo compartilhado por Michelle, segundo Valle, é uma tentativa de estimular eleitoralmente uma batalha espiritual. Nessa cruzada, ela não esteve só. Aliado do presidente, o deputado Pastor Marco Feliciano (PL-SP), que também replicou a gravação, escreveu que votar em Lula é fazer pacto com o maligno. Procurados, parlamentar e primeira-dama não responderam à reportagem.
Lula na umbanda. Roberto Barroso com João de "deus". Tudo pode. Mas a primeira-dama Michelle Bolsonaro falar em Jesus causa escândalo… Liberdade religiosa seletiva… Mídia asquerosa!
— Marco Feliciano (@marcofeliciano) August 9, 2022
Oscilante entre criticar Bolsonaro e buscar o apoio do presidente na corrida pelo Senado - uma iniciativa já frustrada -, a deputada estadual Janaina Paschoal (PRTB-SP) afirmou discordar dos posicionamentos de Michelle. "Tenho preocupação com o tom que a nossa primeira-dama está dando (à religião na campanha)", disse ela, que é professora licenciada da USP, lecionou a disciplina Direito Penal e Religião e, mesmo em meio a embates com o presidente, disse poder votar em Bolsonaro neste ano.
Aliados, por sua vez, chancelaram o desempenho da primeira-dama, nos púlpitos e nas redes. O senador Guaracy Silveira (Avante-TO), líder da Igreja do Evangelho Quadrangular, afirmou que a liberdade a qualquer culto é garantida constitucionalmente, mas, sobre a declaração de Michelle em relação ao Planalto, disse que "todo obscurantismo não pode ser levado ao palácio". "O palácio tem de ser abençoado por Deus, para que os líderes abençoados por Deus possam abençoar a Nação brasileira."
Entidades religiosas querem retratação. O Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras (Idafro), em relação ao vídeo compartilhado, avalia cobrar responsabilização do caso, cuja competência de investigação é do Ministério Público. "Do ponto de vista jurídico, é inaceitável", disse Hédio Silva Júnior, doutor em Direito e coordenador executivo do Idafro.
Para integrantes do QG de campanha de Bolsonaro, Michelle teria apenas manifestado sua fé. Segundo eles, pesquisas qualitativas mostraram a primeira-dama popular entre as mulheres - segmento no qual o presidente enfrenta dificuldades. Ela atua ainda entre o público evangélico, no qual Bolsonaro tem avançado. De acordo com aliados do presidente, a intenção não é travar batalhas religiosas.
Conselheiro de Lula na comunicação com religiosos, o pastor Paulo Marcelo Schallenberger afirmou temer violência. "A preocupação é virar uma nova intolerância, que vai além da política, e que tragédias como a de Foz do Iguaçu entrem no campo da religião", disse, ao se referir ao homicídio do petista Marcelo Arruda pelo bolsonarista José Guaranho.
O pastor discute com a campanha petista uma reação "urgente" ao avanço de Bolsonaro. Entre as propostas estão a realização de um culto pentecostal em São Paulo e uma live na qual Lula exporia ações em favor da liberdade religiosa.
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As mulheres, hoje, são a maioria no eleitorado, e os evangélicos, cerca de 30% da população. Em Minas Gerais, o presidente reverteu, em um mês, empate técnico com Lula entre evangélicos e, segundo pesquisa Genial/Quaest, está 18 pontos porcentuais à frente.
A cientista política Silvana Krause, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), disse que a questão religiosa é decisiva. "Os neopentecostais têm sido muito mobilizados. Isso fica claro com Michelle Bolsonaro resgatando o bem e o mal, a terra prometida."
3 perguntas para Eduardo Grin, cientista político
Atrelar a gestão pública a uma confissão fere o conceito de Estado laico?
A Constituição garante que a liberdade religiosa é um direito privado de cada pessoa. O papel do Estado é fornecer as condições para que não haja nenhuma restrição à liberdade religiosa. Quando valores religiosos passam a interferir na política pública, a gente passa a perder espaço que deveria ser da diversidade. Quando o Estado atua dessa maneira, passa a ser Estado de facção, porque deixa de atender a todos e passa a atender a sua facção. Um governo de facção é, por definição, contrário ao interesse público. Isso não só é contra o Estado laico, mas contra a democracia.
Qual papel do Estado laico?
O papel é não permitir que esse tipo de discussão, que é privada, seja transformada em algo que o governante, que deveria zelar pela imparcialidade, pela possibilidade de que todos exerçam o culto, passe a criticar e a condenar a prática de outros cultos.
Isso ocorre no ataque a religiões afro-brasileiras?
As acusações feitas por Michelle Bolsonaro associam práticas de religiões africanas ao demônio e são uma distorção daquilo que é a administração pública no Brasil. É uma manipulação da boa-fé das pessoas. / G.Q.