Quase um ano depois da tragédia ocorrida na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), deputados conseguiram nesta quarta-feira avançar com uma proposta que pode unificar normas de segurança e regras de funcionamento para estabelecimentos como casas noturnas, bares, cinemas, teatros, prédios públicos, salões de festas, restaurantes, hotéis, hospitais, escolas, creches, circos e instalações temporárias. Integrantes da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) aprovaram o texto (PL 2020/07) que obriga municípios a editarem normas especiais para prevenir e combater desastres.
O texto estabelece uma série de regras que vão desde a obrigação de donos de estabelecimentos permitirem a entrada de bombeiros e outros agentes do poder público para vistoria nos locais (independente das perícias técnicas obrigatórias) até a contratação de seguro de acidente pessoal em nome dos clientes e usuários do local.
A proposta proíbe o sistema de comandas para pagamento de entrada e consumo e determina ainda que a responsabilidade por seguir normas técnicas definidas por órgãos como a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) é obrigação tanto de autoridades dos estados e dos municípios, como de engenheiros, arquitetos, bombeiros, proprietários dos estabelecimentos e promotores de eventos.
O projeto ainda precisa passar pelo plenário da Câmara que, desde outubro do ano passado, está com pauta de votação trancada por projetos que tramitam com urgência constitucional, como o do Marco Civil da Internet. Pelo menos nas comissões, os parlamentares que voltaram esta semana do recesso do carnaval, conseguiram avançar com alguns projetos.
Com mais de 140 itens na pauta de votações, entre requerimentos e projetos, a CCJ conseguiu aprovar ainda o projeto (PL3888/12) que altera parte da Lei Maria da Penha para garantir que crimes como violência contra a mulher não possam ser abrandados por medidas conhecidas como institutos despenalizadores. A ferramenta, criada por lei em 1995, estabelece que os crimes possam ser tratados por juizados especiais cíveis e criminais, podendo ter dispensa da fiança ou tentativas de acordo.
O colegiado também decidiu alterar um ponto do Código Penal, previsto no PL 4665/12, para evitar que casos de estupro de pessoas menores de 14 anos sejam descaracterizados por casos de relações sexuais anteriores. A ideia da proposta, que seguirá para o plenário, é eliminar a possibilidade de que ocorrências consentidas no passado impeçam que, no caso de estupro, o criminoso deixe de ser punido ou tenha penas reduzidas.
A CCJ aprovou ainda mudanças feitas pelo Senado ao texto que trata de um programa de vacinação promovido por empresas. O texto cria condições para que empresas fechem convênios para fornecer vacinas aos funcionários. Com as mudanças aprovadas hoje, foi derrubada a previsão de que os empregados tenham de pagar até 20% do custo. A contrapartida só poderá ser cobrada nos casos de vacinas que não sejam oferecidas pela rede pública.
Incêndio na Boate Kiss
Na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.
Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.
Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.
Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.
Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.
A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.
No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.
Indiciamentos
Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.
O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.
Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.
Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissandro - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.
Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.