Em convenção do PSL que antecedeu as eleições de 2018, o general Augusto Heleno, hoje ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), quebrou o decoro para cantarolar uma paródia do sambista Bezerra da Silva criada pelo militar: "Se gritar 'pega Centrão', não fica um, meu irmão." A postura do general estava alinhada à retórica da nova política que o presidente Jair Bolsonaro defendeu em sua campanha eleitoral e também no início do mandato, quando tentou governar sem construir pontes com o Congresso.
No entanto, após sucessivas crises em seu governo, Bolsonaro tem se aproximado do grupo satirizado por Heleno, oferecendo cargos ministeriais a políticos do bloco pluripartidário. Embora o apoio do grupo fragmentado não assegure maioria no Congresso, vide a derrota na votação do Fundeb por 492 votos a seis, o objetivo do governo é blindar-se de um eventual pedido de impeachment.
A estratégia, porém, é questionável, aponta Fabiano Santos, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp). "Se vierem elementos incontornáveis a respeito do impeachment, o Centrão não tem nenhum problema em estar no governo e votar a favor", avalia.
Santos lembra que parlamentares do grupo votaram a favor do processo que destituiu a ex-presidente Dilma Rousseff mesmo ocupando ministérios naquela gestão. Em entrevista à DW Brasil, o cientista político analisa as origens do grupo, criado na Assembleia Constituinte, e seu papel ao longo da Nova República.
DW Brasil: Enquanto cientista político, como você definiria o Centrão?
Fabiano Santos: Esse termo foi criado no período da transição democrática, mais especificamente na Assembleia Constituinte de 1988. Naquele processo, havia a Comissão de Sistematização, que tinha um poder de agenda fenomenal: aceitava os capítulos e artigos propostos pelos parlamentares que vinham de comissões específicas e propunha para votar aquilo que considerava importante. A Comissão era presidida por Mário Covas, um liberal com inclinações progressistas que tinha criado o PSDB em oposição à aproximação do PMDB com o PFL, partido herdeiro das máquinas políticas ligadas ao regime militar. O texto constitucional que vinha sendo construído era mais à esquerda que o Congresso. Isso motivou uma revolta do plenário, liderada pelo deputado do PTB Roberto Cardoso Alves, conhecido como Cardosão.
Ele percebeu que a Constituição elaborada ali não tinha a cara do parlamento. Era um deputado experiente, ligado anteriormente à Arena, e anticomunista. O Cardosão criou o nome Centrão para designar o grupo liderado por ele com o objetivo de forçar a votação dos textos que vinham da Comissão de Sistematização, parágrafo por parágrafo. Eles fizeram uma série de modificações no regimento da Constituição a fim de permitir que, com com um certo apoio, os deputados pudesse colocar para votação os artigos, capítulos e frases formuladas. Os líderes mais importantes da Constituinte, formadores de opinião, tiveram que refazer o regimento criando, por exemplo, colégios de líderes.
As coisas só iam a voto depois de haver consenso entre uma maioria consistente de lideranças partidárias, as quais passam a ter muita importância, porque perceberam, naquele momento, que essa revolta do plenário poderia produzir um caos, uma entropia dentro do Congresso. Então, passou a ser mais discutido com os conservadores a Constituinte e toda a agenda do Congresso dali por diante. O Centrão nasce ali, como reação de uma parcela conservadora do Congresso a um foco de poder de agenda visto como mais à esquerda. O Cardoso Alves consegue um apoio pluripartidário, com parlamentares do PMDB, do PFL e do PDS (ex-Arena) que estavam reagindo àquele modo de fazer a Constituição centrado em poucas lideranças: Nelson Jobim, Mário Covas, Miro Teixeira, Ulysses Guimarães, todos políticos com inclinação liberal-progressista, além da influência importante do PT, com poucos parlamentares que faziam barulho.
A marca fisiológica do Centrão já aparece nesse início?
O Cardosão usava abertamente a expressão franciscana "é dando que se recebe" - ou seja: "Por que a gente vai votar? Política é troca". Ele queria que o Executivo compensasse eventuais perdas ideológicas nas quais eles estavam incorrendo. Nós estamos votando nessas coisas aqui, mas temos que receber parcelas de poder para continuar a fazer política. Nasceu ali.
Algum traço ideológico acompanha o Centrão desde a Constituinte?
Eles têm uma pauta de valores muito conservadora e, no âmbito econômico, têm uma certa paranoia anticomunista, de achar que a máquina pública está sendo aparelhada pela esquerda e, portanto, a liberdade individual, a nacionalidade, podem estar sendo comprometidas por essa "invasão". Entre os conservadores brasileiros, você não encontra um radical defensor do mercado contra qualquer ação do Estado. Eles transam bem a ação do Estado, gostam de ocupar a máquina pública, mas sempre têm um pé atrás com relação a uma política redistributiva agressiva e uma ação mais heterodoxa do Estado no âmbito econômico. E costumam ser mais dóceis em termos de política externa, principalmente com os EUA.
Há desdobramentos importantes no campo econômico, mas sem uma ideologia mais fechada como, em geral, os liberais têm, com uma aposta dogmática no mercado e uma definição do Estado como sendo fonte de problemas para o funcionamento da economia. Mesmo assim, o grupo é ideológico, sobretudo no anticomunismo e conservadorismo. Quando se elegeu presidente da Câmara, o Eduardo Cunha falava claramente: nossa pauta é conservadora, antipetista e antiesquerda. E a Câmara acompanhou. Hoje, a Câmara tem um número robusto de conservadores, uma minoria de esquerda e uma parte importante do centro-liberal. Mas essa facção conservadora cresceu bastante em 2014 e, mais ainda, em 2018.
Até voltar a ter projeção, sob a liderança do Eduardo Cunha, o Centrão desaparece do jogo político na Nova República?
O Centrão fica amortecido. A coisa muda de figura com a eleição da Dilma. O Eduardo Cunha passa a ser o líder do PMDB, e o partido adota uma postura mais de oposição. Começa a disputar eleitoralmente nas localidades, a ter articulação com os evangélicos neopetencostais. Então, a pauta de costumes começa a pesar. O Eduardo Cunha não sai formalmente do PMDB, mas começa a liderar outros partidos e articular o Centrão. Passa a haver uma fragmentação partidária importante, principalmente no campo conservador, que amplia seu espaço em partidos pequenos com vínculos neopetencostais. Durante o primeiro governo Dilma, eles começam a ter uma postura agressiva nos valores, nos costumes e na pauta econômica. Na eleição de 2014, aumenta a força desse grupo. O Congresso estava dizendo: temos um governo mais à esquerda que a gente, e não vamos permitir que governem assim porque quem vota as coisas aqui somos nós.
É um episódio análogo ao da Constituinte. O Eduardo Cunha tinha sido parlamentar lá atrás e trazia todo esse histórico do Centrão. Por senioridade, ele passa a ser a peça mais importante do segmento conservador do Congresso, que começa a ter uma inclinação mais à direita a partir de 2002. Cunha retoma o conceito do Centrão e a prática desse grupo: é importante rever todo o regimento. Ele não seguia o regimento, fazia da sua cabeça, sempre para dar vantagem aos seus interesses, de viés conservador. Ele se dizia conservador nos costumes e na economia, além de antipetista, e falava claramente na importância de atender aos favores específicos dos parlamentares, o que denota a fisiologia. Novamente, há o viés pluripartidário, em um cenário de fragmentação muito maior que o da Constituinte.
Acho que a definição de Centrão está mais na parlance política do que propriamente como um conceito. É mais uma peça de luta política do que algo que, empiricamente, possa produzir algo novo com relação ao governo Bolsonaro. Não se tem um ator político à esquerda impondo uma agenda que exija reação. O uso do conceito está deslocado. A gente pode pensar em outras coisas para entender o que está acontecendo, pois esse conceito deixa tudo escorregadio.
Como você observa a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de se aproximar desse grupo?
Após ganhar a eleição e iniciar o mandato, Bolsonaro decide não articular com o Congresso. O desempenho do governo na Câmara e no Senado só é pior que o segundo governo Dilma, considerando vitórias nas votações. Começam as crises do governo, a economia não vai bem, e a popularidade cai. Quando isso acontece, você começa a ter problemas no Congresso. Os políticos começam a sentir essa queda de popularidade nas suas bases. Passam a não querer aderir, colar sua imagem ao governo, e cobrar mais caro. Essa dimensão franciscana do Centrão aparece: está difícil ficar com você, eu preciso de recursos para apresentar outras coisas. O lado pluripartidário aparece também, mas não há o viés ideológico desta vez, porque não há contraposição clara a ser feita. Também não tem revolta de plenário, porque está estruturado em torno do Rodrigo Maia. Eles não têm força para mudar a agenda como é feita no Congresso.
Por isso, é escorregadio dizer que o Centrão vai mudar o jogo. A única coisa que pode fazer, de forma orgânica, é impedir o impeachment. Mas não é um apoio capaz de definir pauta no Congresso e ganhar votações, porque os liberais menos conservadores articulados em torno do Rodrigo Maia têm número para competir, inclusive para ganhar a sucessão à presidência da Câmara, derrubar aquilo que é muito extremado pelo Bolsonaro e aprovar o que lhes parece mais interessante, como o Fundeb, a demonstração mais cabal disso, com a derrota acachapante do governo (492 votos a 6). O Centrão, que diziam estar rearticulado, teve que votar junto para não ficar mal no filme. Na votação das fake news no Senado, DEM e MDB votaram contra a posição do governo. Quem votou a favor foram PSL, Podemos e o PSDB, que não são partidos do Centrão. O Centrão se dividiu, enquanto DEM e MDB ficaram majoritariamente contra o governo na matéria. O Bolsonaro é radicalmente contra o projeto, e parte do Centrão votou contra o governo. O grupo tem autonomia suficiente para saber o que quer, não precisam do governo.
O apoio do Centrão não seria, então, garantia contra o avanço de um processo de impeachment?
No impeachment da Dilma, o Centrão estava alojado no Executivo. Quem saiu do governo foram os partidários do Temer, vide Moreira Franco, Eliseu Padilha e Romero Jucá. Eles foram para a oposição de uma hora para outra. Mas o Gilberto Kassab (PSD) continuou ministro, e vários outros, como Agnaldo Ribeiro (Progressistas). Parte do MDB continuou no Executivo e votou contra o impeachment, como o Marcelo Castro, do Piauí, e o Celso Pansera, que depois foi para o PT. O MDB continuou dividido, mas o Centrão seguia no governo e votou a favor do impeachment. Se vierem elementos incontornáveis a respeito do impeachment, o Centrão não tem nenhum problema em estar no governo e votar a favor.