Como o negacionismo ajudou a matar 4.500 agentes de saúde na pandemia

Pesquisa revela que, no Brasil, dois terços dos profissionais da linha de frente mortos pela Covid não tinham sequer direitos trabalhistas

13 out 2022 - 02h16
(atualizado às 02h20)

Sem insumos básicos, muitas vezes até sem máscaras, 4.500 profissionais de saúde morreram de Covid-19 na primeira grande onda da pandemia no Brasil, entre março de 2020 e dezembro de 2021. Dois terços dessas vítimas sequer tinham relações formais de trabalho. E 80% eram mulheres: enfermeiras, atendentes e técnicas de enfermagem, cuidadoras, médicas. Estes são os dados inéditos divulgados hoje pela Internacional de Serviços Públicos (ISP, e PSI, da sigla em inglês), organização que atua na área de saúde e serviços do poder público em 154 países.

O Brasil foi um dos quatro países escolhidos pelo ISP para falar dos momentos mais intensos e tensos da pandemia. Organização sindical internacional, o ISP produziu um documentário mostrando as dificuldades dos profissionais de saúde do Brasil, Tunísia, Zimbábue e Paquistão, “Por detrás da máscara/Behind the mask”, lançado hoje no país. A pedido do ISP, a pesquisa sobre as mortes no Brasil foi feita pelo estúdio de inteligência de dados Lagom Data, com base nos microdados do governo federal.

Publicidade
Enfermeira Graciete Mouzinho, de Manaus
Enfermeira Graciete Mouzinho, de Manaus
Foto: Divulgação/ISP / Divulgação/ISP

O momento mais dramático para os profissionais de saúde, sobretudo para os que trabalhavam diretamente com os pacientes, como auxiliares e técnicos de enfermagem foram os meses de março a junho de 2021. Nesse período, o número de mortes de agentes de saúde por covid foi superior a todo o ano de 2020, início da pandemia.

Quem acompanhou o noticiário naquele período viu que, passado o impacto inicial da pandemia, que pegou todo o mundo de surpresa, no Brasil, a falta de estrutura e amparo para esses trabalhadores se aprofundou. O governo federal adotou o negacionismo como regra, diluindo a relevância da doença na saúde pública e criticando qualquer medida de contigenciamento da pandemia, criticando o “fique em casa”.

Foto: Divulgação/Lagom Data / Divulgação/Lagom Data

O mais perverso em todo esse quadro é que os profissionais que perderam a vida tentando salvar a dos pacientes não tinham a mínima segurança trabalhista. O número de agentes de saúde mortos que não tinham direitos trabalhistas é 67% maior do que as mortes do trabalhadores com emprego formal. Esses trabalhadores sem vínculos empregatícios tinham menos garantias, menos acesso a atendimento de saúde e suas famílias têm mais dificuldade de amparo na morte do provedor.

Rosa Pavanelli, secretária-geral da ISP e integrante da Comissão de Alto Nível do Secretário-Geral da ONU sobre Emprego em Saúde e Crescimento Econômico, vê a falta de apoio a esses profissionais como um elemento importante nessa taxa de mortalidade. “Faltaram equipamentos de proteção, oxigênio, vacinas, medicamentos. Sobraram mensagens falsas e desaforadas do governo brasileiro sobre a Covid-19, chocando o mundo. E até hoje os profissionais da linha de frente seguem desvalorizados no Brasil”, disse ela.

Publicidade

Enquanto o presidente da República dizia que estava sendo “superdimensionado o poder destruidor desse vírus”, o estado do Amazonas era o mais sacrificado pela pandemia.

O documentário “Detrás da Máscara” se concentra sobretudo naquela região, onde a falta de oxigênio, leitos e medicamentos deixou o estado em colapso. A enfermeira Graciete Mouzinho, de Manaus, que colheu depoimentos de colegas para documentar como desmandos dos governos foram cúmplices da doença, é a personagem principal do documentário, que pode ser visto neste link.

“No dia 4 de janeiro [de 2021], o governo sabia que o estado do Amazonas ia colapsar. Mas ele não fez nada para ajudar essa população. Tanto que chegou o caos e [houve] tantas pessoas que nós perdemos, não só os profissionais da saúde, como nossos familiares, nossos amigos, por uma irresponsabilidade do governo”, diz ela no documentário.

A diferença entre morte e vida: sem EPI e com vacina
Foto: Divulgação/Lagom Data / Divulgação/Lagom Data

“Mesmo com dados ainda incompletos, é possível ver o quanto os profissionais da saúde foram atingidos no começo da pandemia por estarem mais expostos. Com a prioridade dada a eles na vacinação, os dados também mostram como vacina-los mais cedo derrubou as mortes antes do resto da população”, explica Marcelo Soares, jornalista pesquisador do Lagom Data.

Publicidade

A queda na mortalidade a partir da vacinação prioritária do profissional de saúde contrasta com a letalidade da Covid-19 para essa mesma categoria no período mais crítico da primeira onda da pandemia, quando faltavam equipamentos de proteção individual (EPIs), oxigênio e leitos e enquanto o presidente Jair Bolsonaro minimizava o impacto da doença que, até agora, matou quase 690 mil brasileiros. 

A pesquisa da IPS nos mostra que, se deixarmos cair no esquecimento as dores da pandemia, estaremos sujeitos a constantes e crescentes tragédias na saúde. 

Fonte: Tatiana Farah Tatiana Farah é jornalista de política há mais de 20 anos. É repórter da Agência Brasília Alta Frequência. Foi gerente de comunicação da Abraji, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Repórter do BuzzFeed News no Brasil de 2016 a 2020.  Responsável por levar os segredos do Wikileaks para O Globo, onde trabalhou por 11 anos. Passou pela Veja, Folha de S. Paulo e outras redações, além de assessorias de imprensa. As opiniões da colunista não representam a visão do Terra. 
Fique por dentro das principais notícias
Ativar notificações