Sem insumos básicos, muitas vezes até sem máscaras, 4.500 profissionais de saúde morreram de Covid-19 na primeira grande onda da pandemia no Brasil, entre março de 2020 e dezembro de 2021. Dois terços dessas vítimas sequer tinham relações formais de trabalho. E 80% eram mulheres: enfermeiras, atendentes e técnicas de enfermagem, cuidadoras, médicas. Estes são os dados inéditos divulgados hoje pela Internacional de Serviços Públicos (ISP, e PSI, da sigla em inglês), organização que atua na área de saúde e serviços do poder público em 154 países.
O Brasil foi um dos quatro países escolhidos pelo ISP para falar dos momentos mais intensos e tensos da pandemia. Organização sindical internacional, o ISP produziu um documentário mostrando as dificuldades dos profissionais de saúde do Brasil, Tunísia, Zimbábue e Paquistão, “Por detrás da máscara/Behind the mask”, lançado hoje no país. A pedido do ISP, a pesquisa sobre as mortes no Brasil foi feita pelo estúdio de inteligência de dados Lagom Data, com base nos microdados do governo federal.
O momento mais dramático para os profissionais de saúde, sobretudo para os que trabalhavam diretamente com os pacientes, como auxiliares e técnicos de enfermagem foram os meses de março a junho de 2021. Nesse período, o número de mortes de agentes de saúde por covid foi superior a todo o ano de 2020, início da pandemia.
Quem acompanhou o noticiário naquele período viu que, passado o impacto inicial da pandemia, que pegou todo o mundo de surpresa, no Brasil, a falta de estrutura e amparo para esses trabalhadores se aprofundou. O governo federal adotou o negacionismo como regra, diluindo a relevância da doença na saúde pública e criticando qualquer medida de contigenciamento da pandemia, criticando o “fique em casa”.
O mais perverso em todo esse quadro é que os profissionais que perderam a vida tentando salvar a dos pacientes não tinham a mínima segurança trabalhista. O número de agentes de saúde mortos que não tinham direitos trabalhistas é 67% maior do que as mortes do trabalhadores com emprego formal. Esses trabalhadores sem vínculos empregatícios tinham menos garantias, menos acesso a atendimento de saúde e suas famílias têm mais dificuldade de amparo na morte do provedor.
Rosa Pavanelli, secretária-geral da ISP e integrante da Comissão de Alto Nível do Secretário-Geral da ONU sobre Emprego em Saúde e Crescimento Econômico, vê a falta de apoio a esses profissionais como um elemento importante nessa taxa de mortalidade. “Faltaram equipamentos de proteção, oxigênio, vacinas, medicamentos. Sobraram mensagens falsas e desaforadas do governo brasileiro sobre a Covid-19, chocando o mundo. E até hoje os profissionais da linha de frente seguem desvalorizados no Brasil”, disse ela.
Enquanto o presidente da República dizia que estava sendo “superdimensionado o poder destruidor desse vírus”, o estado do Amazonas era o mais sacrificado pela pandemia.
O documentário “Detrás da Máscara” se concentra sobretudo naquela região, onde a falta de oxigênio, leitos e medicamentos deixou o estado em colapso. A enfermeira Graciete Mouzinho, de Manaus, que colheu depoimentos de colegas para documentar como desmandos dos governos foram cúmplices da doença, é a personagem principal do documentário, que pode ser visto neste link.
“No dia 4 de janeiro [de 2021], o governo sabia que o estado do Amazonas ia colapsar. Mas ele não fez nada para ajudar essa população. Tanto que chegou o caos e [houve] tantas pessoas que nós perdemos, não só os profissionais da saúde, como nossos familiares, nossos amigos, por uma irresponsabilidade do governo”, diz ela no documentário.
“Mesmo com dados ainda incompletos, é possível ver o quanto os profissionais da saúde foram atingidos no começo da pandemia por estarem mais expostos. Com a prioridade dada a eles na vacinação, os dados também mostram como vacina-los mais cedo derrubou as mortes antes do resto da população”, explica Marcelo Soares, jornalista pesquisador do Lagom Data.
A queda na mortalidade a partir da vacinação prioritária do profissional de saúde contrasta com a letalidade da Covid-19 para essa mesma categoria no período mais crítico da primeira onda da pandemia, quando faltavam equipamentos de proteção individual (EPIs), oxigênio e leitos e enquanto o presidente Jair Bolsonaro minimizava o impacto da doença que, até agora, matou quase 690 mil brasileiros.
A pesquisa da IPS nos mostra que, se deixarmos cair no esquecimento as dores da pandemia, estaremos sujeitos a constantes e crescentes tragédias na saúde.