Massacre de Aracruz mostra que o país está doente

Precisamos falar sobre o ódio que se espalha pelo Brasil.

29 nov 2022 - 07h00
(atualizado às 14h18)

Professora da rede pública do Espírito Santo, Maria da Penha Banhos, a Peinha, encheu as paredes da escola Primo Bitti de poesias. Queria dar aos alunos daquele colégio de Aracruz um pouco do amor com que criou os três filhos. A professora Cybelle Bezerra, sua colega, veio de Pernambuco cinco meses atrás para ensinar os meninos e meninas capixabas. 

Flavia Amoss Merçon Leonardo, a outra professora, tentava fazer um Brasil melhor também fora da escola. Morava na região da nascente do rio Doce, que foi afetada gravemente pela tragédia da Vale em Mariana (MG). Passou a integrar o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) para garantir direitos aos moradores. Selena Sagrillo tinha apenas 12 anos. Poderia ser professora, médica, bailarina. 

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Na sexta-feira (25 de novembro) a jornada dessas três mulheres e da pequena Selena foi brutalmente interrompida. A mãe de Selena, Thais, emocionou todo o país quando resumiu o que aconteceu. "A minha filha sempre foi luz e amor; e eu perdi a minha filha para o ódio.”

O adolescente de 16 anos responsável pelo massacre de Aracruz foi detido em sua casa. Confirmou, friamente diante dos pais, as acusações da polícia. Na sexta-feira, ele vestiu um uniforme camuflado, em que costurou uma suástica, símbolo nazista. Pegou duas armas e o carro do pai, um policial militar, e seguiu para o crime planejado. Ex-aluno da Primo Bitti, entrou na sala de professores e atirou a esmo. Disse ao delegado que não tinha um alvo fixo.

Thaís Pessoti, de 14 anos, foi baleada por atirador em Aracruz e está na UTI
Thaís Pessoti, de 14 anos, foi baleada por atirador em Aracruz e está na UTI
Foto: Reprodução/internet

O nazista agiu assim: apenas com muito ódio pelo mundo. Seguiu da Primo Bitti para outra escola, o Centro Educacional Praia do Coqueiral, onde acabou com a vida de Selena. Naquele colégio ele acertou outra menina, de 14 anos, que até a noite desta segunda-feira lutava para sobreviver: Thaís Pessoti da Silva, cuja imagem ilustra este artigo, internada na UTI de um hospital local em estado gravíssimo. 

Na semana passada, o Terra divulgou com exclusividade um relatório que mostra o crescimento assustador do nazismo na internet brasileira. Em apenas um ano, o número de células de grupos de ódio mais que dobrou. São 1.117 células, atingindo quase 300 municípios, segundo a pesquisadora Adriana Dias (Fiocruz).

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Nos aplicativos de mensagens, como Telegram, proliferam arquivos com literatura nazista. Há alguns dias, um desses grupos nazistas foi desbaratado em Santa Catarina. Um dos presos já usava tornozeleira eletrônica por ser acusado da morte de um judeu. Responder a processo por homicídio não foi impedimento para que cometesse o crime de apologia ao nazismo. É característica desses grupos não só a violência, mas a certeza de impunidade.

Esse discurso de ódio alimenta grupos organizados e os chamados lobos solitários, pessoas que, individualmente, decidem promover ataques e massacres. Ainda não se sabe se o adolescente de Aracruz agiu como um lobo solitário. É cedo para descartar qualquer hipótese. A única certeza é a de que o ódio matou Selena, Peinha, Flávia e Cybelle. Quatro mulheres. O ódio a mulheres, aliás, é também uma característica desses movimentos.

O Brasil, nos últimos anos, passou a colecionar esses atentados em escolas. Há 12 anos, um ex-aluno matou 12 crianças e adolescentes de uma escola de Realengo, no Rio. Das 12 vítimas, 10 eram mulheres. Os alunos contaram que o atirador mirava na cabeça delas e no corpo dos meninos.

Em 2019, em Suzano (SP), dois jovens entraram em uma escola e mataram sete pessoas com faca, arma de fogo e até um equipamento de arco e flecha. Antes, haviam matado o tio de um deles. Foram cinco meninos de no máximo 15 anos e duas funcionárias da escola. A dupla se suicidou quando foi cercada pela polícia.

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Só este ano, foram outros dois ataques em escolas. Um em Barreiras (BA), onde o atirador matou uma menina, e outro em Sobral (CE), em que a arma usada pelo adolescente que cometeu o crime estava registrada em nome de um CAC (Caçadores, Atiradores e Colecionadores). Em julho passado, o número de armas nas mãos de CAC chegou a 1 milhão, quase o dobro do que era registrado em 2018, antes do governo Bolsonaro.

Não se pode mais tratar cada atentado em escola como se fosse um caso aleatório. É uma doença que tem se espalhado, alimentada pelo discurso de ódio, pela violência política e pelo culto às armas. O Brasil tem colocado muitas sujeiras debaixo do tapete: violência de gênero, racismo, violações de toda natureza aos preceitos da democracia. Não pode camuflar mais essa chaga. É como diz um ditado americano de mais de século: a luz do sol é o melhor desinfetante.

Fonte: Tatiana Farah Tatiana Farah é jornalista de política há mais de 20 anos. É repórter da Agência Brasília Alta Frequência. Foi gerente de comunicação da Abraji, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Repórter do BuzzFeed News no Brasil de 2016 a 2020.  Responsável por levar os segredos do Wikileaks para O Globo, onde trabalhou por 11 anos. Passou pela Veja, Folha de S. Paulo e outras redações, além de assessorias de imprensa. As opiniões da colunista não representam a visão do Terra. 
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