Não é o comunismo que nos ameaça. É outra coisa.

Quem dá a César o que é de Deus?

19 out 2022 - 13h18
(atualizado às 13h34)
Padre McEnroe, do filme Machuca (2004)
Padre McEnroe, do filme Machuca (2004)
Foto: Reprodução / Reprodução

No filme Machuca, sobre a ditadura no Chile, o padre McEnroe entra na igreja no meio da missa depois da invasão militar, abre o sacrário e engole todas as hóstias. “Este lugar não é mais sagrado. Deus não está mais aqui.” Altivo, deixa a igreja e o colégio aos quais havia dedicado grande parte de sua vida.

No dia 12 de outubro, em Aparecida, um grupo de bolsonaristas tumultua a cerimônia dedicada à Padroeira, com cerveja na mão e dedos em riste. No Paraná, uma mulher tenta expulsar, aos gritos, o padre a quem chama de comunista.

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Nesta mesma semana, o cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, recebe inúmeras ofensas porque suas vestes são vermelhas. Tem de ir a público explicar que o vermelho da batina dos cardeais representa o sangue e o martírio dos cristãos.

O Twitter de Dom Odilo
Foto: Reprodução/Twitter / Reprodução/Twitter

“Parece-me reviver tempos da ascensão do fascismo”, lamenta o cardeal. E lamentamos todos. O fascismo não aceita o que lhe é diferente. E não lhe serve apenas travar um embate, ele quer aniquilar os diferentes. Em algumas igrejas pentecostais, fieis que não professam da mesma preferência política de seus pastores relatam que têm sido alijados da comunidade, ameaçados de expulsão. O fascismo se veste de religião, de crenças e preceitos religiosos, para atacar a religião. Primeiro, as religiões alheias. Depois, os fieis de sua própria casa que pensem minimamente fora do esquadro.

O ex-presidente que sancionou a lei da Marcha Para Jesus em 2009, uma lei do bispo político Marcelo Crivella, teve de escrever uma carta aos evangélicos nesta quarta-feira para garantir que não vai fechar nenhuma igreja. Lula tenta, assim, conter a assustadora fake news de que fecharia templos e perseguiria os religiosos, apesar de nada disso ter acontecido em 14 anos de governo petista.

Um misterioso e desconhecido Padre Kelmon anuncia em debate na TV que a esquerda no poder perseguirá padres, pastores e freiras. Alguns acreditam nele. Mas quem está perseguindo padres não é gente da política. É gente como a gente. O perigo não é o comunismo, algo distante de nós. O perigo, acreditem, é o fascismo, esse, sim, espreitando nossas casas. 

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Benito Mussolini dizia que seu regime visava “reconstruir o homem, seu caráter, sua fé”. “Para atingir esse objetivo, o fascismo conta com a autoridade e disciplina capazes de penetrar no espírito das pessoas e aí reinar completamente”, afirmou ele.

O Estado Laico não é apenas um Estado sem domínio de uma religião. É também a garantia da religião sem domínio do Estado.

Jesus disse: dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus (Está em Marcos e em Lucas). Que as coisas de Estado fiquem nas disputas do Estado e que Deus possa continuar morando nas igrejas sem que os padres McEnroe da vida real tenham de devorar as hóstias de seu altar porque nele não caberia mais a presença de Deus.

Não sejamos instrumentos do ódio, mas resistência a ele. Ninguém é obrigado a pensar como nós e a querer o mesmo futuro. Deponha as armas, mesmo as imaginárias. Para os que se fiam na Bíblia, outro ensinamento, desta vez de Moisés, sobre o livre arbítrio: “Podes escolher segundo tua vontade, porque te é dado”. Se para Deus essa liberdade é importante, que seja também para todos.

Fonte: Tatiana Farah Tatiana Farah é jornalista de política há mais de 20 anos. É repórter da Agência Brasília Alta Frequência. Foi gerente de comunicação da Abraji, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Repórter do BuzzFeed News no Brasil de 2016 a 2020.  Responsável por levar os segredos do Wikileaks para O Globo, onde trabalhou por 11 anos. Passou pela Veja, Folha de S. Paulo e outras redações, além de assessorias de imprensa. As opiniões da colunista não representam a visão do Terra. 
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