A concessão da cidadania honorária do vilarejo italiano de Anguillara Veneta ao presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, se tornou o mais recente símbolo da disputa histórica entre a extrema direita e a extrema esquerda na Itália. Manifestações foram marcadas para o mesmo dia (1º/11) em que o mandatário será homenageado, logo após o encontro do G20 (20 maiores economias do mundo) em Roma.
A prefeitura de Anguillara Veneta, comandada por políticos considerados de direita e de extrema direita, acabou depredada por um grupo ambientalista como "resposta" à homenagem a Bolsonaro, que conseguiu atrair críticas de diversos grupos de esquerda na Itália por outros motivos, como o desmatamento da Amazônia e as acusações da CPI da Covid contra sua gestão da pandemia, todas refutadas pelo presidente.
Mas o que Bolsonaro tem a ganhar com todo esse imbróglio? Segundo David Magalhães, professor de relações internacionais da PUC-SP e da Faap e coordenador do Observatório da Extrema Direita, "receber uma homenagem de uma liderança política conservadora, por menor que seja a importância, ajuda a energizar a base radical interna de Bolsonaro, que de tempos em tempos precisa de combustível para manter sua militância engajada, principalmente nas redes sociais, enquanto constrói-se uma narrativa de que o presidente não está isolado, que ele é admirado e que quem o rejeita é uma elite progressista nacional e internacional".
Para o cientista político italiano Fabio Gentile, professor da Universidade Federal do Ceará especializado em fascismo, a homenagem ao presidente brasileiro por causa de seu bisavô também é cercada de laços simbólicos e históricos relacionados a uma bandeira tradicional da direita e da extrema direita na Itália: a concessão de cidadania italiana a descendentes nascidos em outros países.
"Numa lógica de propaganda política, Bolsonaro seria o valor simbólico de uma italianidade no mundo, de um nacionalismo italiano que se espalhou há muitas décadas, e esse é um dos grandes temas da direita italiana. Tanto que ela criou há muitos anos as organizações dos italianos no mundo. Isso passa pela ideia de uma suposta raça italiana, como se eles tivessem herdado pelo sangue uma suposta raça italiana, seus valores e sua capacidade", afirma Gentile.
Segundo ele, não é uma coincidência que a prefeita que concedeu a homenagem, Alessandra Buoso, seja filiada ao partido Liga, liderado por Matteo Salvini, senador nacionalista de direita próximo da família Bolsonaro. Essa sigla herdou a bandeira política da italianidade sanguínea defendida por outros partidos de direita e de extrema direita a partir dos anos 1980, como o Movimento Social Italiano, fundado por ex-integrantes do regime fascista liderado por Benito Mussolini.
A cidadania italiana é regulamentada por uma lei de 1992. Baseia-se no princípio do jus sanguinis - termo em latim para direito de sangue - e pode ser transmitida a todos que têm ascendência italiana em todas as gerações. Podem ser filhos, netos, bisnetos ou mesmo descendentes de gerações mais distantes.
Por outro lado, não há o princípio do jus soli, ou direito de solo, em que a nacionalidade é concedida de acordo com o lugar de nascimento. Filhos de estrangeiros que nasceram na Itália podem pedir cidadania após completarem 18 anos, mas precisam atender a diversos pré-requisitos. Em geral, são políticos de esquerda que defendem cidadania mais ampla para esses imigrantes, como o deputado ítalo-brasileiro Fausto Longo (Partido Democrático).
Gentile afirma que esses dois princípios de cidadania estão na raiz da relação entre o identitarismo racista dos últimos anos contra imigrantes (em especial da África e do Oriente Médio) e a defesa de uma suposta raça italiana se espalhando no mundo, mesmo que o povo italiano seja um dos mais miscigenados da Europa em sua origem.
Segundo o pesquisador, o partido nacionalista Liga, que chegou a adotar um lema de raiz fascista para se defender das críticas à sua posição anti-imigratória ("muitos inimigos, muita honra"), conseguiu mobilizar a seu favor a insatisfação racista de parte da população italiana contra o conflituoso processo de integração de cidadãos de ex-colônias, agravado pela recente crise dos refugiados.
Esse tema, aliás, foi tratado em encontro na Itália entre Salvini e o deputado federal Eduardo Bolsonaro. Questionado pelo filho do presidente sobre os dois princípios de cidadania, o italiano respondeu que os únicos imigrantes que interessam à Itália são os descendentes de italianos que vivem em outros países, como Brasil e Argentina.
Essa reunião foi intermediada pelo deputado ítalo-brasileiro Luis Roberto Lorenzato (Liga), que apoia o presidente Bolsonaro e a concessão do título de cidadão honorário a ele e critica o uso do termo "extrema direita" para caracterizar políticos de seu partido.
O parlamentar defende o direito de sangue e refuta o direito de solo porque "se nasce italiano".
"A verdadeira riqueza da Itália são os 60 milhões de italianos por direito de sangue (jus sanguinis), que vivem particularmente no Brasil, e são bem qualificados na classe média brasileira e que devem poder criar um verdadeiro relacionamento com a pátria mãe nossa Itália investindo, realizando negócios e até o sonho de ter a 'prima casa' na Itália e assim garantir de forma perene a identidade cultural e histórica do povo italiano", disse em sua campanha eleitoral.
Para se ter uma ideia, a grande imigração italiana no final do século 19 levou para o Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 1,2 milhão de pessoas no período de 1876 a 1920. Um deles foi Vittorio Bolzonaro, que nasceu em Anguillara Veneta e emigrou para o Brasil em abril de 1888, aos dez anos, na companhia do pai, da mãe e de outros dois irmãos.
Angelo, filho de Vittorio nascido no Brasil anos mais tarde, casou-se com uma brasileira descendente de alemães, e em 1927 o casal teve Percy Geraldo. Vinte e oito anos depois, nascia o terceiro dos seis filhos de Percy, Jair Messias Bolsonaro.
Protestos de movimentos de esquerda e extrema-esquerda ao título de Bolsonaro
A homenagem a Bolsonaro tem gerado fortes reações de grupos de esquerda e representantes da Igreja Católica desde que foi anunciada pela prefeita Alessandra Buoso e aprovada pela Câmara Municipal. A mandatária negou motivações políticas no ato, mas isso não foi suficiente para desmobilizar os opositores.
O episódio serviu de estopim para aglutinar diversos grupos de extrema esquerda críticos do presidente. Outros dois combustíveis para movimentos contra ele foram as acusações da CPI da Covid, que repercutiram muito na imprensa italiana, e a ausência de Bolsonaro na COP26, cúpula do clima na Escócia que discute medidas e metas concretas contra o aquecimento global.
"Sua presença nesta cidade é indesejável; basta lembrar a gestão criminosa da pandemia realizada pelas autoridades brasileiras, e a comissão parlamentar de inquérito que pediu que ele fosse julgado por crimes contra a humanidade. Nos últimos anos, Bolsonaro se tornou um dos principais baluartes da negação - tanto pandêmica quanto climática - do racismo mais vulgar, colonialismo e sexismo", afirma um grupo que convoca protestos contra Bolsonaro em Pádua e em Anguillara Veneta, no norte da Itália.
Segundo Luca Dall'Agnol, representante do sindicato ADL Cobas, sua entidade participará dos protestos contra Bolsonaro e a decisão da prefeitura de conceder o título honorário a ele como um ato de solidariedade a todos que tem se mobilizado no Brasil contra o presidente nos últimos anos. "Suas políticas levaram à aceleração do desmatamento da Amazônia e a uma escalada de ataques contra comunidades indígenas, e sua resposta negacionista à pandemia de covid-19 levou à perda de muitas vidas."
Para o sindicalista, Bolsonaro é um "fascista de nosso tempo". "Fica claro pelo seu desprezo pela democracia que a única coisa que o impede de assumir poderes autoritários é o equilíbrio social de poder existente hoje e a resistência que vem sendo feita pelos cidadãos brasileiros".
Fabio Gentile, da Universidade Federal do Ceará, afirma que o antifascismo permeia a Constituição italiana desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. "Existe uma cultura antifascista dentro da formação do Estado italiano republicano contemporâneo, que se tornou também uma rede de associações que, a partir das décadas de 1940, 1950, estão defendendo os valores antifascistas da Constituição italiana. A maior delas é a Anpi (Associação Nacional de Partidários da Itália, que também protestará contra Bolsonaro)."
Segundo o pesquisador, a luta entre fascismo e antifascismo se arrasta há décadas no país, mas "é claro que existe um uso bastante ideológico desses conceitos, porque nem tudo que a extrema-esquerda está combatendo é fascismo".
De todo modo, Gentile avalia que os atos contra Bolsonaro também possam estar sendo usados como uma resposta desses movimentos à invasão da sede da Confederação-Geral Italiana do Trabalho, o principal sindicato italiano, no início de outubro.
O local foi invadido em ato liderado pelo partido de extrema direita Força Nova e por manifestantes antivacina, que criticavam o sindicato por não ter lutado contra a obrigatoriedade de vacina para todos os trabalhadores do país. "A meu ver, o que os movimentos antifascistas estão pensando? É realmente uma coisa absurda dar uma cidadania para um cara como Bolsonaro, que é contra vacina, associa vacina à Aids e fala outras coisas sem embasamento científico que acabam incentivando e mobilizando movimentos negacionistas e antivacinas."
Bolsonaro foi o único líder do G20 que declarou não ter se vacinado contra a covid-19.
*Com colaboração de Giovanni Bello, da BBC News Brasil em Londres