CPI da Covid detalha falhas na pandemia e se torna mais um obstáculo para reeleição de Bolsonaro, dizem analistas

Para cientistas políticos, comissão contribui para "cristalizar" avaliação negativa do governo em patamar alto.

24 mai 2021 - 11h28
(atualizado às 11h48)
Pesquisas recentes apontam aumento da rejeição a governo Bolsonaro
Pesquisas recentes apontam aumento da rejeição a governo Bolsonaro
Foto: EPA / BBC News Brasil

Após três semanas de atuação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, o saldo para o governo de Jair Bolsonaro não é nada positivo, avaliam analistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil.

Se por um lado as testemunhas ouvidas não trouxeram revelações bombásticas sobre a atuação federal na pandemia, de outro os depoimentos serviram para detalhar com mais profundidade falhas da gestão Bolsonaro que já eram conhecidas, como a demora para fechar contratos na compra de vacinas e a reação insuficiente ao colapso do sistema de saúde do Amazonas.

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Para os especialistas entrevistados, esse trabalho da comissão tem o efeito de sistematizar e documentar as responsabilidades do governo federal no enfrentamento à crise do coronavírus, aumentando os obstáculos à tentativa de reeleição do presidente Jair Bolsonaro, em outubro de 2022.

O presidente já enfrenta o desgaste do elevado número de vítimas da pandemia (são quase 450 mil mortos no país, dado sempre repetido pelos senadores na CPI), além da crise econômica, com desemprego e inflação altos.

"O efeito que me parece mais concreto (da CPI) é cristalizar uma rejeição alta do governo. Se de fato esse cenário ocorrer, já é suficientemente relevante porque, com a rejeição ao governo em torno de 50% do eleitorado, me parece que é um patamar que sugere transição eleitoral em 2022", analisa do cientista político Rafael Cortes, da Consultoria Tendências.

"A CPI fortalecer essas rejeição (à gestão Bolsonaro) significa diminuir o peso eleitoral de uma eventual retomada da economia ou da tentativa do governo de surfar no avanço da imunização", acrescenta.

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Pesquisa do Instituto Datafolha, que nos dias 11 e 12 de maio realizou presencialmente 2.071 entrevistas no país, apontou que a avaliação negativa do governo Bolsonaro estava em 45%. Já os que aprovam sua gestão eram 24%, enquanto a avaliação regular ficou em 30%.

O mesmo levantamento mostrou que, se a eleição fosse agora, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) derrotaria Bolsonaro no segundo turno presidencial por 55% a 32%.

Já uma pesquisa mais recente do Instituto Ideia para a revista Exame, divulgada na sexta-feira (21/05), indica que 50% dos brasileiros avaliam o governo Bolsonaro como ruim ou péssimo, enquanto 24% consideram a gestão ótima ou boa e outros 22% a julgam regular. A pesquisa ouviu 1.243 pessoas entre os dias 17 e 20 de maio por telefone.

Cemitério em Manaus: covid-19 já matou mais de 440 mil pessoas no Brasil
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Para o fundador do Instituto Ideia, Maurício Moura, o resultado reflete a lentidão da vacinação contra covid-19. Nas ultimas semanas, o ritmo de imunização caiu no país, depois que o Instituto Butantan interrompeu a produção de CoronaVac devido ao atraso na importação de insumos da China.

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"Se tem uma coisa certa na CPI é de que a simples existência dela vai ter impacto na eleição. Os demais desdobramentos, se vai ter punição ou não de ministro, se vai chegar ao presidente da República com processo de impeachment, isso é duvidoso. Mas com certeza vai trazer desgaste ao Bolsonaro no eleitorado que tinha dúvida da conduta do governo na pandemia", acredita também o analista político Antônio Augusto de Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), que acompanha de perto o funcionamento do Congresso.

"A CPI tem um papel de documentar e sistematizar essas evidências (de falhas do governo). Não vai trazer grandes novidades em relação ao que se sabia, mas ela vai documentar a partir de testemunhas tudo aquilo que já se conhecia, com a validação dessa evidência por uma autoridade que participou do processo", reforça Queiroz.

Nas três primeiras semanas, foram ouvidas oito testemunhas: os ex-ministros da Saúde Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello; o atual chefe da pasta, Marcelo Queiroga; o presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres; o ex-secretário de Comunicação do governo Fabio Wajngarten; o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo; e o gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo.

O próximo depoimento, na terça-feira (25/05), é o da secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministerio da Saude, Mayra Pinheiro, grande entusiasta do "tratamento precoce" — um coquetel de medicamentos sem eficácia comprovada contra covid-19 que inclui substâncias como cloroquina, azitromicina e invermectina.

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Com seu depoimento, os senadores querem detalhar melhor as ações do governo na promoção desses remédios ineficazes.

Vacinação lenta

Para Rafael Cortez, uma das principais mensagens da CPI é "simples", mas com potencial muito negativo para Bolsonaro: "a mensagem de que o governo não comprou vacina", resume.

Por isso, ele destaca como um dos momentos mais importantes da CPI até agora o depoimento do gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo.

"O diretor da Pfizer foi um depoimento neutro do ponto de vista mais político e acho que trouxe evidências da opção do governo pela não vacinação logo de início na pandemia", diz.

O executivo da Pfizer detalhou cinco ofertas para a venda de 70 milhões de doses de vacinas feitas ao governo entre agosto e novembro do ano passado, que foram ignoradas pela administração Bolsonaro. Somente em março desse ano, o Ministério da Saúde firmou contrato para compra de 100 milhoes de doses da farmacêutica.

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Pazuello negou à CPI não ter respondido ofertas da Pfizer. Para senador Renan Calheiros, ex-ministro "mentiu muito" em seu depoimento
Foto: Reuters / BBC News Brasil

O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, por sua vez, negou que o governo tenha deixado de responder ofertas da Pfizer no ano passado e culpou as cláusulas do contrato pela recusa às propostas.

Segundo o ex-ministro, o governo não concordava com exigências como a isenção de responsabilidade por efeitos colaterais, transferência do fórum de decisões sobre questões judiciais para Nova York, pagamento adiantado e não existência de multa por atraso de entrega.

No entanto, embora Pazuello negue que não tenha respondido à Pfizer, a CPI teve acesso a dez e-mails enviados pela empresa a autoridades do Ministério da Saúde no ano passado que registravam a falta de resposta às ofertas e insistiam por algum retorno. As mensagens obtidas pela comissão são sigilosas, devido a contrato da Pfizer com o governo, mas foram reveladas pelo jornal Folha de S.Paulo nesta sexta-feira (21/05).

A questão da demora na obtenção das vacinas, nota Cortez, voltará ao foco da CPI com o depoimento do diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas. Ele já foi convocado, mas a data de participação ainda não está confirmada. Por rixa política com o governador de São Paulo, João Doria, Bolsonaro resistiu em assinar a compra da CoronaVac com o instituto, que é um órgão paulista.

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Falta de Oxigênio em Manaus

Para Augusto de Queiroz, analista do Diap, outro momento importante da CPI foi a participação do ex-ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores). Na sua avaliação, seu depoimento evidenciou a falta de atitude do governo para providenciar o transporte de oxigênio a Manaus em janeiro, quando a carência do gás e a falta de leitos levou ao colapso do atendimento aos pacientes de covid-19. Naquele mês, morreram 3.536 pessoas de covid-19 no Amazonas, um recorde para o Estado.

Araújo afirmou à CPI que o governo dos Estados Unidos ofereceu um avião cargueiro para trazer oxigênio ao Amazonas. Segundo o ministro, isso não ocorreu porque o governo estadual não respondeu sobre as especificações do oxigênio necessário.

Ernesto Araújo reconheceu à CPI não ter pedido mais oxigênio para Venezuela
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Ao ouvir o ex-ministro, o senador Eduardo Braga (MDB/AM) disse que a omissão do governo do Amazonas era algo "criminoso", mas frisou que o Ministério da Saúde também teria responsabilidade de fornecer essas informações e viabilizar a vinda de oxigênio dos Estados Unidos. "É mais criminoso ainda: havia o avião e não foi usado para salvar vidas", ressaltou o senador.

Além disso, Araújo foi pressionado sobre a falta de contato do governo brasileiro com o governo venezuelano para trazer oxigênio de lá. Houve uma doação do gás feita por terra pelo país vizinho, mas a gestão Bolsonaro não fez qualquer movimento para viabilizar o transporte aéreo de mais doações ou compras de oxigênio da Venezuela.

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Questionado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), o ex-chanceler admitiu que não fez qualquer contato com a Venezuela, nem mesmo para agradecer a doação.

"O fato de não terem agido no sentido de aceitar a oferta dos Estados Unidos, que colocou avião à disposição, e no caso da Venezuela, que forneceu oxigenio para Manaus, mas que veio por estrada em vez de o Brasil colocar um avião para o transporte, esses acontecimento foram uma omissão objetivamente clara do governo", aponta Queiroz.

"Informações como essa detalhadas na CPI causam desgaste líquido e certo no governo", ressalta ainda.

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