Damares Alves está à frente de um ministério cujo eixo principal, os direitos humanos, já foi descrito pelo presidente da República e seus filhos como "esterco da vagabundagem".
Figura mais popular do governo entre a fatia mais pobre da população, segundo o Datafolha, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos contradiz um dos principais mantras de Jair Bolsonaro e de boa parte de seu eleitorado — "direitos humanos são para humanos direitos" — ao afirmar que eles são "para todos".
Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, a ministra mostra posições mais contundentes do que a imagem às vezes caricata com que é descrita. Entre uma série de compromissos que incluíram uma audiência com o papa Francisco, em Roma, Damares diz que as travestis (usando sempre o feminino) são o público mais vulnerável entre os LGBTs e têm violência e desemprego como principais ameaças.
Também diz se dedicar à segurança da população LGBT em geral, com foco especial nos grupos que estão fora dos grandes centros — ribeirinhos, indígenas e quilombolas. O discurso coaduna com a pauta do movimento LGBT, forte opositor do governo, e contradiz falas do próprio presidente, que já declarou que "gays não são semideuses" e a "maioria é fruto do consumo de drogas".
"Eles devem ter exagerado no discurso", alega a ministra.
Damares chega a fazer coro com feministas ao afirmar que mulheres são chamadas de "histéricas" quando defendem seus pontos de vista e são frequentemente interrompidas por homens ao tentar completar seus raciocínios. A desigualdade de gênero na política preocupa Damares, também pastora, pedagoga e advogada: "Nós ainda temos mais de 2 mil municípios sem uma mulher sequer na Câmara de Vereadores".
https://youtu.be/cf-YR41reuE
No entanto, quando é questionada sobre o gabinete de Bolsonaro, que tem apenas duas ministras em meio a 22 ministérios (e órgãos com status de ministério), desconversa: "Ele escolheu pelo perfil técnico e trouxe pessoas que ele conhecia. Mas, no segundo escalão, ele pode escolher com mais calma."
Damares chora mais de uma vez ao narrar, em detalhes, a série de estupros que sofreu entre os 6 e 8 anos de idade. "O homem que me estuprou interrompeu meu sonho de morar no céu", diz, alertando que crianças alvo de abusos devem pedir ajuda e não podem se sentir culpadas.
"Tem abuso que é prazeroso para a criança, porque o pedófilo sabe como tocar, onde tocar", diz. "Eu encontro adultos, especialmente mulheres, que se sentem culpadas por isso. Eu digo que não se sintam culpadas, eram crianças e não tinham controle sobre seus corpos."
Todo tempo, ela reforça um compromisso pessoal com áreas remotas do país. "Eu vou para a região ribeirinha e lá a gente encontra a lenda do boto. Mas o boto que engravidava a menina era o pai, que botava a culpa no boto. O incesto é de verdade no Brasil e vamos enfrentar isso."
Ela não economiza frases polêmicas — que costumam gerar manchetes. "Tem criança que conversa com duende. Tem crianças que falam com fadas. Tem crianças que falam com pôneis. Eu não posso falar com Jesus?", diz.
Também afirma que é "a ministra mais bonita do Brasil".
"E já estou concorrendo também a mais bonita do Mercosul, e mais bonita do Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)."
Oscilando entre discurso hiper-religioso e posições que poderiam se associadas a vozes progressistas, Damares provoca a esquerda: "Você não pode usar certas palavras como empoderamento, porque é da esquerda. Espera aí. Tem mulher mais empoderada no Brasil do que eu? Uma menina que vem lá de baixo, que não tem sapato para estudar, vai a uma escola, sofre violência, é discriminada e chega a ser ministra? Isso é empoderamento da mulher."
Leia os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - O que explica sua boa avaliação entre os pobres?
Damares Alves - A pauta. A nossa pauta é extraordinária. O ministério tem oito secretarias e todas falam diretamente com o povo. O ministério que fala diretamente com a população é o nosso. E nós estamos cuidando de crianças — todo mundo quer ver crianças bem cuidadas. Estamos enfrentando a violência contra a mulher — todo mundo quer a erradicação dela. Acredito que a popularidade é por conta da pauta e fico muito feliz com isso. Está todo mundo falando em direitos humanos no Brasil.
BBC News Brasil - Esse anúncio gera curiosidade sobre seu futuro político. Como se vê depois dessa gestão? Pensa em se candidatar a cargos públicos?
Damares Alves - Pelo amor de Deus, não. É muito trabalho. Quando acabar o meu período, tudo o que quero é uma rede na praia deitada apenas lendo as boas notícias do Brasil. Com certeza, nenhuma pretensão política. Não dá nem para pensar nisso agora. Não tenho nenhum interesse político, nenhum interesse em cargo eletivo.
BBC News Brasil - Dá para dizer que nunca vai se candidatar?
Damares Alves - Hoje eu digo nunca. Nunca, nunca, nunca, nunca. Não quero passar pela urna. Falo inclusive que a urna é muito cruel. Eu quero morrer feliz acreditando que as pessoas gostam de mim. Já pensou se você vai para a urna e descobre que as pessoas não acreditam e gostam de você? Então deixa eu morrer acreditando. Urna, jamais. Cargo eletivo, jamais.
BBC News Brasil - A senhora disse que todo mundo está falando sobre direitos humanos no Brasil. Pergunta simples: direitos humanos são para humanos direitos?
Damares Alves - Olha, direitos humanos são para todos. Para todos. O que está acontecendo hoje no Brasil é que estamos falando dos direitos humanos que são indissociáveis, interligados e interdependentes. Nós universalizamos os direitos humanos e o discurso. Estamos indo para a origem, a fonte, que é a Declaração (Universal dos Direitos Humanos) e conversando com o Brasil. Proteger mulher é direitos humanos? É. Proteger criança é direitos humanos? É. E os idosos? Então, nós começamos a falar para o Brasil o que é de verdade direitos humanos.
Por um período, as lutas ficaram muito segmentadas. As pessoas achavam que direitos humanos eram só as minorias ou a população carcerária. A gente está falando com todo mundo: gente, alimentação, acesso a educação é direitos humanos.
BBC News Brasil - Pergunto porque boa parte dos apoiadores do governo e do presidente têm esse discurso, inclusive os filhos e o próprio presidente, que dizem que direitos humanos são "coisa para bandido".
Damares Alves - Eu entendo que o que eles querem dizer é que foi segmentada a luta dos direitos humanos no Brasil, ao ponto em que pessoas se perguntavam se há necessidade de um ministério de direitos humanos no Brasil. Porque houve uma segmentação. Os grupos que se apresentavam defensores de direitos humanos...
BBC News Brasil - Quais grupos?
Damares Alves - Mais os grupos de esquerda. Apresentavam aí a bandeira LGBT, minorias e população carcerária. Por exemplo, a gente nunca viu lá atrás movimentos indo à rua defender saneamento básico à luz dos direitos humanos. Nunca ouviu grupos falando que corrupção é violação de direitos humanos. O que eles queriam dizer lá atrás era: 'vamos falar que direitos humanos são para todos'. E é exatamente o estavam querendo dizer e o que estamos tentando fazer, essa conversa.
BBC News Brasil - Eles falaram isso de uma outra forma, né...
Damares Alves - Mas é isso. Eles devem ter exagerado no discurso. Mas é exatamente isso, direitos humanos de forma universal.
BBC News Brasil - A senhora citou mulheres, idosos, crianças...
Damares Alves - Povos tradicionais. Todos eles. Por exemplo: nós estamos trazendo à luz os que estavam invisibilizados no Brasil. Nunca se falava dos povos ciganos no Brasil. Eles são 1,2 milhão. Nós temos no Brasil muito mais ciganos do que índios e estes povos estavam à margem. Estamos falando de mulher cigana, da violência no dia a dia na rua contra ela, da evasão escolar das crianças ciganas, do preconceito contra ciganos no Brasil e fazendo este enfrentamento. Outro povo: as marisqueiras, que são consideradas povo tradicional, os seringueiros, os ribeirinhos. Estamos trazendo à luz os que estavam invisibilizados. Isso não é ideia da ministra, não, é ordem do presidente da República.
BBC News Brasil - A senhora contou o que está sendo feito por grupos que, nas palavras da senhora, estavam invisibilizados. O que está sendo feito pelos grupos que, na avaliação da senhora, eram os preferidos: LGBTs, negros e...
Damares Alves - Em relação à população LGBT: fizemos uma discussão sobre qual é a prioridade do segmento. Enfrentamento à violência. Então vamos priorizar isso. Como estão os membros da comunidade na região ribeirinha? Vamos pegar um barquinho e vamos lá na comunidade ribeirinha saber como está o menino gay. Descobrimos que a política pública não chegou para ele. Cadê os gays indígenas? Onde estão as meninas lésbicas indígenas? Por que não se falou nisso no Brasil?. Nós descobrimos que eles são hostilizados em algumas comunidades e precisamos cuidar deles.
Os direitos, que na área urbana foram tão reivindicados, em algumas regiões não foram garantidos. Então estamos indo lá. Como estão os gays nos quilombos? Como essa população é tratada nos povos tradicionais? E isso tem sido uma inovação e uma revolução: eu pegar um barco e ir a uma cidade como São Gabriel da Cachoeira para saber como está a comunidade LGBTi lá. Quer que eu diga para você?
BBC News Brasil - Sim.
Damares Alves - Precisando ser cuidada, amparada, e estamos fazendo isso.
BBC News Brasil - Como, na prática?
Damares Alves - Deixa eu voltar para o centro urbano. No centro urbano, percebemos que o grupo que mais sofre violência são as travestis. Começamos a conversar com elas: por que sofrem tanta violência? Esse público é caro para mim. É um público que eu amo e acompanho há muito tempo. Por muito tempo na minha vida eu fui para as ruas de madrugada abraçar as travestis, cuidar delas, enquanto ativista de direitos humanos, pastora, amiga, mãe, mulher.
A grande reivindicação delas é empregabilidade. Existe preconceito para empregar uma travesti. É fácil uma lésbica, um transexual, um gay estar bem inserido no mercado no trabalho, mas as travestis ficaram à margem. Então, estamos cuidando desse público especificamente: trazendo programas de capacitação, empregabilidade, conversando com o setor empresarial. Eu encontro professoras travestis nas ruas, meninas especiais, matemáticas na rua se prostituindo. Elas alegam que o mercado não as absorve.
O presidente Bolsonaro tem como bandeira o combate à violência em todos os segmentos. Então, o violência contra travestis e gays estão dentro deste pacote. E está dando certo. A nossa diretoria voltada à comunidade LGBTi nós herdamos do passado e permanece intacta. A própria diretora que veio do outro governo continua, uma mulher extremamente sensata, a professora Marina, uma transexual extremamente sensata, e tem me ajudado a conduzir as políticas para o segmento.
BBC News Brasil - Este é um segmento que fez muita oposição ao governo na campanha. Muitas pessoas podem estar surpresas com os comentários citando as travestis, por exemplo. A senhora defende as chamadas terapias de conversão, a chamada "cura gay" faz sentido?
Damares Alves - Eu defendo o direito à liberdade de expressão. Se alguém disser que vivenciou a homossexualidade e hoje não a vivencia mais, ele tem o direito de falar isso. Esse grupo me procurou para dizer que não consegue falar isso sem ser perseguido. Nosso ministério tem que garantir o direito à liberdade de expressão.
E é possível, sim, alguém não querer mais vivenciar a homossexualidade, como alguém não querer mais vivenciar a bissexualidade ou a heterossexualidade. Essa transição é normal, ela acontece. Então por que não vou reconhecer que houve pessoas que deixaram de vivenciar a homossexualidade? Elas existem, precisam ser respeitadas, e uma das coisas que reclamaram muito foi a liberdade de escrever suas histórias. Então esse grupo existe e me procurou.
Agora, a cura gay é outra coisa. Inclusive é um termo pejorativo para algumas pessoas que querem deixar de vivenciar a homossexualidade. Vou lidar com esse tema com muita maturidade, respeitando a condição em que ele está vivendo, se está feliz agora porque deixou a homossexualidade, ele vai continuar feliz. Se quiser voltar a ser homossexual, vai voltar.
BBC News Brasil - Pode haver, portanto, política pública nesse sentido, para as pessoas que…
Damares Alves - O que pode haver no nosso ministério: se estão sendo vítimas de violência, terão o direito de denunciar e nós vamos ter a obrigação de fazer esse recorte e ouvir. Eles estão sendo perseguidos porque estão deixando de vivenciar a homossexualidade. Nós vamos protegê-los também.
Eu não vou fazer nenhuma campanha com um cartaz dizendo deixe de ser gay, deixe de ser bi, deixe de ser hétero. Não, isso não existe, não existe política pública para isso. Existe política para garantir a todos segurança e direitos.
BBC News Brasil - Mulheres, claro, são parte importante da sua pauta e violência é uma das bandeiras principais. A senhora pessoalmente já sofreu violência por ser mulher?
Damares Alves - Acabei de sofrer e pela imprensa. Temos que falar de todos os tipos de violência contra a mulher — existe a violência física, que todo mundo vê, o soco no rosto, a marca, os sinais e cicatrizes, mas existe a violência psicológica e emocional contra a mulher, que se fala muito pouco no Brasil. Existe a violência patrimonial contra a mulher e a violência política. Estamos ousando em trazer o debate da violência política contra a mulher no Brasil. Ela existe? Claro que existe.
BBC News Brasil - O que aconteceu?
Damares Alves - Quando um parlamentar sobe na tribuna e começa a esbravejar por direitos, todo mundo aplaude e fala que este homem é guerreiro e valente. Se uma parlamentar sobe na tribuna e grita por direitos, é histérica. É muito comum uma mulher estar em um debate, conduzindo uma discussão, e ser interrompida o tempo todo. Isso é uma violência contra a mulher. Tem mulheres que não conseguem colocar até o final as suas ideias e sua posição porque são interrompidas.
Até mesmo o respeito dos partidos às candidaturas das mulheres. Elas não têm que vir para partido apenas para cumprir uma cota. O partido tem que entender que elas são necessárias no processo político. E estamos lutando muito por isso: nosso ministério ousa agora fazer um grande desafio — nós ainda temos mais de 2 mil municípios sem uma mulher na Câmara de Vereadores.
Nosso alvo é no mínimo uma mulher em todas as câmaras de vereadores do Brasil. Inclusive eu também quero participar da campanha como garota propaganda. Tipo: toda mulher pode. Olha eu aqui: uma mulher dos bastidores, assessora, que ralou muito, que veio da pobreza, não tinha nem sapato, lutei e saí dos bastidores a ministra. O recado vai ser; lugar de mulher é onde ela quiser.
Hoje, no governo Bolsonaro, nós temos muitas mulheres no quadro, no segundo, no primeiro escalão, muitas mulheres. Ele inclusive fez uma reunião para colocarmos os nomes de mulheres tomando decisões no Brasil. Ele disse: "que coisa mais extraordinária". Por exemplo, DataPrev, é uma mulher liderando. IBGE, uma mulher extraordinária. Inmetro, mulher. Secretárias nacionais, temos muitas. Inclusive mulheres diversas.
Nós temos a primeira surda no Brasil a ocupar um cargo de alto escalão. Duas indígenas no alto escalão: a secretária nacional da Igualdade Racial e a da Saúde Indígena. Temos também uma secretária surda no Ministério da Educação. Mulheres com deficiência: a secretária nacional de Políticas Públicas para a Mulher é uma mulher com deficiência.
Então, todas as mulheres estão no governo Bolsonaro no alto escalão tomando decisões e conduzindo a nação. Quer que eu diga uma coisa? É por isso que está dando certo.
BBC News Brasil - E os ministérios, ministra? Só lembro da senhora e de Teresa Cristina (Agricultura).
Damares Alves - Duas ministras, né?
BBC News Brasil - Não está faltando mulher?
Damares Alves - Ele escolheu pelo perfil técnico e o presidente trouxe pessoas que ele conhecia. Isso não significa que outras mulheres não poderão ocupar outros ministérios. Mas, no primeiro momento, essas duas mulheres estavam muito próximas dele, então ele trouxe as duas. Mas, no segundo escalão, ele pode escolher com mais calma. Porque o ministério precisa ser apresentado de imediato. Mas, no segundo escalão, ele teve mais tempo para pensar e trouxe mulheres extraordinárias e o Brasil está dando certo porque estamos lá.
BBC News Brasil - Mas isso não contradiz o seu discurso, ministra? A senhora está falando do segundo escalão, mas defendia que mulheres ocupem…
Damares Alves - Na próxima reforma administrativa, com certeza eu acredito que mais mulheres virão para os ministérios. Eu tenho certeza.
BBC News Brasil - A senhora dá essa dica ao presidente?
Damares Alves - Ele tem dito isso de trazer mais mulheres para o primeiro escalão.
BBC News Brasil - Como eu disse no começo da entrevista, a senhora é a segunda ministra mais popular desse governo...
Damares Alves - E a mais bonita do Brasil, tá? E já estou concorrendo também a mais bonita do Mercosul, a mais bonita do Brics.
BBC News Brasil - É possível que parte da nossa audiência não conheça a senhora tão bem. A senhora citou sua infância, falou que…
Damares Alves - Uma infância difícil, dura, família pobre. Meu pai era missionário e pastor. Estivemos com os oprimidos, pobres e excluídos no interior do Nordeste. Então, venho dessa família vocacionada a cuidar dos pobres, vivenciando também a pobreza. Faço minha primeira faculdade, pedagogia, acredito na educação como instrumento arrebatador e de inclusão, mas estou em sala de aula dando aula desde os 12 anos e lidando com temas bem delicados como mulheres camponesas.
Eu conheço a realidade, por isso meu ativismo com as marisqueiras, a mulher do campo. Em seguida vou trabalhar com os meninos de rua, sou uma das fundadoras do Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua e logo vou trabalhar com os povos tradicionais. Eu tenho uma história voltada aos excluídos e minorias no Brasil. Depois de pedagogia, eu faço direito em São Paulo, me formo advogada em 1991 e vou para a advocacia no dia a dia. E me especializando em direito constitucional. Em 1998, sou chamada para ser assessora jurídica no congresso. Fiquei de 1998 a 2018 trabalhando dentro do Congresso Nacional. Essa é a minha trajetória.
BBC News Brasil - Poderia contar sobre o caso dos dois pastores na sua infância? A história que ficou conhecida como o caso da goiabeira. O que houve e como se sentiu com a repercussão.
Damares Alves - Aos 6 anos, eu fui vítima do abuso do estupro. Meu pai, esse homem generoso, acreditava em todo mundo. Estávamos em uma comunidade e recebíamos missionários para ajudar a fazer o trabalho. A gente recebe este pastor em casa. Ele era um falso pastor, porque não existe pastor pedófilo. Existe pedófilo fingindo que é pastor. Não existe padre pedófilo. Existe pedófilo fingindo que é padre. Assim como professor pedófilo não existe, eles buscam essas áreas para estar próximos de crianças.
Este homem entra na nossa casa, abusa da confiança de meu pai e me estupra aos 6 anos de idade. E continuou em casa depois desse ato, foram dois anos de abusos seguidos. Depois outro pastor também se aproximou e abusou de mim.
Então, aos 6 anos de idade, eu passei pelo calvário, eu passei pelo holocausto. O abuso de crianças não destrói só a criança, ele destrói a mulher ou o homem. Foi tão ruim que aos 10 anos eu quis me matar por causa das dores que trouxe. Tenho feito no Brasil um enfrentamento à violência sexual contra crianças. Eu não sou ministra porque fui estuprada. Eu sou ministra porque tenho uma luta de defesa das crianças. Eu fiz da dor a minha bandeira, a minha luta. No momento em que decidi não me matar e desci do pé de goiaba, eu decidi: eu não vou morrer e nenhuma criança perto de mim será machucada.
Sou sobrevivente, mas não sou a única, somos milhões de mulheres sobreviventes no Brasil. Há uma projeção de que uma a cada três mulheres no Brasil são abusadas sexualmente até os 18 anos. Então nós somos um terço de sobreviventes e falar disso é, para mim, libertador e para muitas mulheres que não tiveram a coragem de admitir que foram vítimas do abuso.
A pedofilia no Brasil é de verdade, ela é apavorante, ela mata, destrói corpo, alma e espírito e a gente vai ter que fazer esse enfrentamento. E eu quero falar de abuso sexual de meninos. Não se fala de abuso sexual de meninos no Brasil. De cada 10 meninas abusadas, 3 denunciam. Mas de cada 100 meninos abusados, só um denuncia. Existe de verdade e eles sofrem tanto quanto a menina.
Mas agora estamos diante de outra tragédia, que é o estupro de bebês no Brasil. Essa modalidade de violência sexual estourou nos últimos 5 anos e está nos deixando muito preocupados. Quando falo bebês, estou falando de crianças de dias, meses. Eu vi a imagem de uma bebê de 22 dias sendo estuprada. Foi a mais nova que eu vi, mas temos no ministério registro de uma menina de 8 dias, e em São Paulo de um menino de 7 dias.
A produção de imagem de estupro de bebês está crescendo muito. Já encontramos imagens de pais que não são abusadores, mas produz imagens de abuso para vender. Tem vídeos de estupro de bebês que podem custar de R$ 60 mil a R$ 100 mil reais. É um mercado que está crescendo muito. Então, um pai, por tentação de dinheiro, acaba abusando de bebês para produzir imagens.
BBC News Brasil - Há algum tipo de estatística sobre isso? Como essas informações chegam até a senhora e o que na prática está sendo feito?
Damares Alves - O estupro de bebês chega por notificação das unidades de saúde, quando uma criança é atendida. Essa é a maior fonte. Mas temos as imagens, muitas imagens circulando de bebês que não foram atendidos em hospitais. Comparando as imagens, esse comércio de imagens e as crianças chegando aos hospitais, temos a conclusão de que o estupro de bebês explodiu no Brasil. Há fóruns na deep web de pais divulgando imagens de bebês sendo abusados. E os pais trocam imagens. Eu recebo inúmeras imagens de estupros de bebês no meu celular. Compartilhar imagem de abuso é crime. Arquivar é crime. Produzir é crime. Portanto, se receber uma imagem, delete.
BBC News Brasil - A senhora recentemente fez um comentário que gerou controvérsia e críticas. A senhora se referia aos abusos na ilha de Marajó e disse que as meninas não usavam roupas de baixo e…
Damares Alves - Não fui eu que disse isso. É o que acontece com essa ministra polêmica. Pegam uma frase dela fora de contexto. Eu estava dizendo que, na Ilha de Marajó, o estupro de meninas é tão grande e que fica todo mundo justificando: dizem que se estupra meninas no Marajó porque lá há fome. Então, eu disse: vamos levar comida. Disseram que estupram meninas porque elas não usam calcinha. Então vamos levar calcinhas, vamos construir uma fábrica de calcinha. O que eu estava dizendo: o estupro não se explica, o abuso não se relativiza ou minimiza. Eu estava dizendo isso, mas pegaram essa frase. Vir dizer que menina é estuprada porque deu mole? Ah, para com isso.
O cara que abusou de mim aos seis anos olhou nos meus olhos e disse que o seduzi, que eu era culpada, e me fez sentir culpada por anos. A culpa me levou à tentativa de suicídio. Ele dizia que eu era suja, imunda e pecadora. Você sabe o que é dizer isso a uma menina cristã, que sonha um dia morar no céu com Deus e sabe que para morar com Deus ela não pode pecar e tem que ser pura?
Ele não tinha o direito de dizer aquilo para mim. Porque aos 6 anos de idade, quando ele falou aquilo, eu achei que não iria mais para o céu. Ele roubou o céu de mim. Ele interrompeu meu sonho de morar no céu. É isso que eles fazem, o abusador destrói sonhos, interrompe o destino. E hoje, no Brasil, fica-se culpando meninas e meninos. A criança não é culpada.
E tem outro detalhe com relação ao abuso: há adultos, que, quando olham para trás no abuso, sentiram prazer no abuso. Nem sempre o abuso é como no meu caso, com dor, com sangue, com violência. Tem abuso que é prazeroso para a criança, porque o pedófilo sabe como tocar, onde tocar, e às vezes desperta prazer. O nosso corpo foi feito pelo prazer. Eu encontro muitos adultos, especialmente mulheres, que se sentem culpadas porque sentiram prazer. Eu digo que não se sintam culpadas, eram crianças e não tinham controle sobre seus corpos.
Foi ruim a minha exposição. Foi ruim porque foram cruéis comigo, riram da minha história. Só Damares quis se matar aos 10 anos? Não. Estamos assim de crianças no Brasil pensando em suicídio. O suicídio entre crianças é de verdade no Brasil. Na hora de me matar, eu fui para cima do pé de goiaba. Na verdade, eu não queria me matar, eu queria aliviar a dor. Peguei veneno, veneno de rato e quando estava em cima do pé de goiaba chorando eu comecei a conversar com meu amigo imaginário e o meu amigo imaginário tem nome. Se chama Jesus Cristo. As crianças conversam com amigos imaginários. Tem criança que conversa com duende. Eu não posso falar com Jesus? Tem crianças que falam com fadas, que falam com pôneis. Eu não posso falar com Jesus? Foi uma experiência extraordinária: falem como quiser, mas eu sei a experiência que tive lá.
BBC News Brasil - Eu conversei com pessoas próximas à senhora que me disseram que a senhora tem pautas muito próximas às da esquerda. Isso faz sentido? A senhora tem alguma afinidade com a pauta feminista, por exemplo?
Damares Alves - Eu quero dizer à esquerda que ela não é pai e mãe dos direitos humanos. Eles têm o discurso, é um discurso bom, eles têm o discurso, mas eu tenho discurso e tenho prática. 'Você não pode usar vermelho porque é a cor da esquerda'. Por que não? Você não pode usar certas palavras como empoderamento, porque é da esquerda. Espera aí. Tem mulher mais empoderada no Brasil do que eu? Uma menina que vem lá de baixo, que não tem sapato para estudar, que vai a uma escola, sofre violência, é discriminada e chega a ser ministra? Isso é empoderamento da mulher. Eu falo a palavra nesse sentido: dar voz e oportunidade à mulher. Não é que minhas pautas são iguais às da esquerda. É que, por algum tempo, a esquerda falou que era dona dos direitos humanos. Não tem pai e mãe essa bandeira, ela é de todos nós.
BBC News Brasil - Muita gente diz também que o feminismo não é uma pauta da esquerda, é algo maior e de todas as mulheres. A senhora concorda?
Damares Alves - Claro. O que questiono no feminismo é o ativismo radical. A forma de alguns protestos delas. Sabia que estou conquistando muita coisa no Brasil só com o diálogo? É possível dialogar. Esse feminismo exagerado tinha uma pauta no Brasil: a marcha pelo aborto. Eu tenho tanta coisa no Brasil para proteger a mulher, porque eu vou à rua pedir só aborto. Nós temos uma legislação no Brasil que garante à mulher em caso de estupro fazer o aborto, em risco de vida para a mãe e em caso de anencefalia. A legislação está lá, isso é bandeira do Congresso Nacional, eu não vou fazer ativismo contra ou pró-aborto, vou cuidar de mulheres, levar comida e capacitação profissional.
BBC News Brasil - A senhora está em Roma para, entre outros compromissos, se encontrar com o papa. Isso pode surpreender muita gente, a senhora é uma liderança evangélica forte e isso acontece dois meses depois da canonização da Irmã Dulce, quando nem o presidente, nem a primeira-dama, nem a senhora vieram para cá. Como vê esse encontro?
Damares Alves - Eu sou apaixonada por esse papa. Gosto demais dele. O Brasil é um país católico, um país de maioria católica, nós respeitamos demais a comunidade católica, trabalhamos em parceria. Estar com o papa é uma honra e um orgulho para qualquer ser humano, independente da sua religião. Eu vou estar com uma das figuras mais impactantes e impressionantes da nossa era, que é o papa Francisco.
BBC News Brasil - Parte dos seus apoiadores não deve gostar desse seu comentário, chamam esse papa de comunista. O que a senhora acha disso?
Damares Alves - Algumas pessoas acham esse papa demasiadamente progressista, outros acham conservador. O que conheço do papa Francisco? Um homem que se preocupa com educação, com família. Eu só tenho que admirar esse homem. Então, é a minha posição. Eu gosto do papa. Tem pessoas que o criticam. Eu gosto demais dele.