Denúncias na Petrobras: entenda a delação premiada

Apesar de dominar o noticiário recente no Brasil, as origens da delação premiada remontam à história antiga e longe do território tupiniquim

28 out 2014 - 07h43
<p>Na atualidade, o debate sobre a delação premiada envolve os nomes do doleiro Alberto Youssef (à esq.) e do ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa</p>
Na atualidade, o debate sobre a delação premiada envolve os nomes do doleiro Alberto Youssef (à esq.) e do ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa
Foto: Reprodução

Um rumoroso caso de corrupção e lavagem de dinheiro, dois réus principais e um mesmo desejo: revelar detalhes do esquema e entregar comparsas para, em troca, receber benefícios penais. A medida que desperta polêmica moral - por incentivar um ato de traição - está prevista no ordenamento jurídico brasileiro e ficou conhecida como “delação premiada”. Apesar de dominar o noticiário recente no Brasil, suas origens remontam à história antiga e longe do território tupiniquim.

Na atualidade, o debate sobre a delação, ou colaboração premiada, envolve os nomes do doleiro Alberto Youssef e do ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa. As denúncias apareceram na Operação Lava Jato, deflagrada pela Polícia Federal, em março. O esquema de lavagem de dinheiro pode ter movimentado cerca de R$ 10 bilhões de forma ilegal.

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As investigações revelaram que Costa ajudou empresas de fachada, mantidas por Youssef, a fechar contratos superfaturados com a estatal, incluindo obras na refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. Na posição de delatores, os réus podem ser recompensados, tendo as suas penas reduzidas ao final do processo, por exemplo.

Delação ou traição premiada?

A aplicação da delação premiada desperta um conflito moral: seria correto oferecer uma recompensa a quem faz o papel de dedo-duro, traindo quem até então lhe destinava confiança? O cerne da questão aparece na Bíblia: Judas Iscariotes teria recebido 30 moedas de prata para delatar Jesus e entregar-lhe aos soldados romanos.

Num passado mais recente, outro personagem marcante é Joaquim Silvério dos Reis. Em troca da sua liberdade e do perdão de dívidas com Portugal, ele delatou os até então colegas de Inconfidência Mineira e viu Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, ser sentenciado à morte por isso.

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Apesar de importantes, os dois exemplos não servem de parâmetro para criticar o instrumento jurídico da delação premiada, porque há na figura do delatado uma pessoa do bem, avalia o promotor de Justiça Gustavo dos Reis Gazzola, pós-doutor em Direito e professor de Direito Penal. “Os delatores, Silvério dos Reis e Judas, é que se colocariam numa posição execrável”, diz.

Instrumento pode mudar o rumo da história

Seja para o bem ou para o mal, como nos casos de Jesus e de Tiradentes, a delação premiada tem o poder de mudar a história. De forma legal, o instrumento passou a ser utilizado com sucesso pelos Estados Unidos, na década de 60, e possibilitou à Itália desmantelar organizações criminosas ligadas à máfia. Já no Brasil, passou a ser aplicado a partir de 1999 e teve seu ápice entre 2005 e 2006, quando explodiu no país o Mensalão, escândalo de corrupção política envolvendo de parlamentares a ministros.

O então deputado Roberto Jefferson, o delator do Mensalão, integrava a prática de compra de apoio político no Congresso, mas recebeu sentença diferenciada: condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, teve a pena abrandada e se livrou do regime fechado. Embora considerado criminoso pela Justiça, Jefferson sempre alegou que, não fosse por sua delação, talvez o Brasil nunca descobrisse o esquema que envolveu os poderes Executivo e Legislativo na capital federal.

Com a ressalva de não poder comentar detalhes do caso, Gazzola vê a participação de Jefferson no Mensalão como um exemplo claro da relevância da delação premiada. “Supondo que as informações dele foram eficazes e importantes, faz jus ao benefício”, afirma.

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A delação na lei brasileira

A colaboração premiada é aplicada no Brasil para casos de crimes considerados hediondos, como latrocínio e sequestro, ou para delitos financeiros. As regras de uso do instrumento constam em seis leis específicas: Código Penal, Lei dos Crimes Hediondos, Lei do Crime Organizado, Lei Antitóxicos, Lei de Lavagem de Capitais e Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas.

De forma geral, a delação é acertada em acordo com o réu, que aceita entregar detalhes da prática criminosa, incluindo demais nomes envolvidos nela, em troca de benefícios penais. Tais benefícios só são concedidos no momento do julgamento, que é quando o juiz decide se o delator trouxe contribuições relevantes à investigação. Gazzola explica que está previsto ainda o reconhecimento de ofício da delação, ou seja, mesmo sem haver acordo prévio. “Ao analisar as provas e perceber que há um réu colaborador, o juiz pode conceder os benefícios”, diz.

A redução da pena a ser concedida em caso de delação varia de 1/3 (33%) a 2/3 (66%) do total. Gazzola lembra ainda que está previsto em lei o chamado perdão judicial, que seria a absolvição total do delator em casos especiais - algo ainda não registrado no Brasil.

Três possíveis falhas da delação premiada no Brasil

1 - Fragilidade da delação

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Fechado o acordo, o réu deve revelar durante os depoimentos informações que irão facilitar as investigações. Podem ser nomes de comparsas e detalhes sobre o funcionamento de um esquema ilícito, por exemplo. Ele não precisa apresentar provas, mas tudo o que diz deve ser confirmado posteriormente. Se isso não ocorrer, ainda que por falhas da investigação, o preso não receberia “recompensa” alguma. “Caso a polícia e o Ministério Público trabalhem mal, a informação que ele prestou vai resultar num vazio e não é por culpa dele. Nesse caso, pela lei, ele perderia o direito ao benefício”, explica Gazzola.

2 - Penas desproporcionais

Ainda que o delator tenha exercido papel de protagonista na prática criminosa, com o benefício da redução da pena, ele pode ficar menos tempo na cadeia do que cúmplices menos ativos no esquema. Isso também ocorre em casos de mesma responsabilidade criminal, ou grau de culpabilidade: apesar das condutas criminosas idênticas, o delator receberá uma pena menor. Segundo Gazzola, isso contraria uma das diretrizes do Direito Penal, de que a sanção corresponda à responsabilidade penal do réu.

“No episódio da Petrobras, em hipótese, vai que o indivíduo que hoje é delator tenha tido uma posição proeminente no esquema e se beneficiado dele. A responsabilidade penal é grande, mas como ele colabora, a resposta do Estado para ele é menor do que será para alguém que tenha participado menos”, diz.

3 - Vulnerabilidade do delator

Diferente do que ocorre em outros países, no Brasil, tanto o delator quanto a testemunha de um crime carecem de proteção do Estado para garantir a sua integridade física. “Um colaborador na Itália ou nos Estados Unidos tem o amparo do Estado para mudar o nome, de cidade e de profissão, tem apoio financeiro, a família é protegida e isso efetivamente ocorre”, exemplifica Gazzola.

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O promotor diz já ter atuado em casos nos quais o réu prefere não colaborar com as investigações e ser acusado de falso testemunho para segurar a própria vida. “Não temos a estrutura que EUA e Itália têm. Ela funciona mal e isso compromete a colaboração premiada, não tenho dúvidas”, conclui.

Cinco famosos delatores

Roberto Jefferson

Ex-deputado federal, foi o responsável por escancarar o esquema do Mensalão, em 2005. Contou como a prática funcionava, indicou comparsas e entregou o empresário Marcos Valério, acusado de orquestrar a arrecadação de dinheiro junto ao governo para compra de apoio no Congresso Nacional. Como benefício pela delação, teve a pena reduzida em 1/3: de 10 anos e meio para pouco mais de sete anos. A diminuição da pena acabou permitindo ainda que ele a cumprisse em regime semiaberto.

Tommaso Buscetta

O mafioso italiano foi preso em São Paulo, em outubro de 1983. É considerado como peça-chave para o desmonte da máfia na Itália, pois entregou mais de 300 pessoas envolvidas na prática ilícita. Era integrante da famosa Cosa Nostra, da região da Sicília e revelou detalhes e nomes até então desconhecidos. Extraditado para os Estados Unidos, conquistou nova nacionalidade e passou a fazer parte de um programa de proteção de testemunhas. Morreu em 2000, aos 71 anos, vítima de câncer.

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Ivan Boesky

Especulador na Bolsa de Nova York, Ivan Boesky se valia de métodos ilícitos para adquirir empresas e ganhou centenas de milhões de dólares de forma fraudulenta. Era um ganancioso assumido, mas que viu sua fortuna começar a desaparecer após ser preso e ter que investir pesado em sua defesa. Para reduzir sua pena para um ano e meio de cadeia, entregou às autoridades outro fraudador do sistema financeiro americano: Michael Milken, que recebeu o dobro da pena. Personagem clássico dos anos 80 nos EUA, foi citado por Brad Pitt no filme “Onze Homens e um Segredo”.

Jordan Belfort

O ex-magnata americano fez fortuna de forma rápida com a manipulação do mercado financeiro. Estima-se que seu patrimônio tenha alcançado 8 bilhões de dólares. Na mesma velocidade, acabou falindo devido a noitadas, drogas e outros gastos descontrolados. Preso pela acusação de fraudar investidores, fez um acordo de delação premiada e entregou todos os demais envolvidos no esquema. Ainda assim, sua pena foi de 22 meses de prisão e um mês de reabilitação. Nesse período, as informações de Belfort foram usadas para aumentar o controle na Bolsa de Valores dos EUA.  Sua autobiografia, “O Lobo de Wall Street”, virou filme de sucesso dirigido por Martin Scorsese e tendo Leonardo de Caprio em seu papel.

Henry Hill

É outro personagem de um filme de Scorsese, o consagrado  Goodfellas (Os Bons Companheiros), no qual foi interpretado por Ray Liotta. O mafioso era membro da Família Luchese e praticou uma série de roubos, incluindo um ataque à companhia aérea Lufthansa, no aeroporto John F. Kennedy de Nova York, em 1978, que rendeu 5 milhões de dólares - até então o maior roubo dos EUA. Detido dois anos depois por narcotráfico, virou informante do FBI e sua delação possibilitou a prisão de vários membros da máfia. Hill morreu em 2012.

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