A relação entre Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão vive mais um desgaste. Causa incômodo no presidente o comportamento do vice, que voltou a dar declarações diárias à imprensa, comentando e até contrariando suas palavras. A avaliação no Palácio do Planalto é a de que Mourão está usando o cargo e até o Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido por ele, para se projetar na disputa eleitoral de 2022.
A aliados, Bolsonaro já deu sinais de que não pretende manter o general como vice na corrida pela reeleição. Para interlocutores da Presidência, Mourão passou a se posicionar no jogo eleitoral quando percebeu que ficaria fora da chapa. O vice já chegou a admitir, em algumas ocasiões, que pode se candidatar a senador, daqui a dois anos.
O mal-estar entre os dois aumentou após o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro citar o general como uma opção de candidatura de centro nas próximas eleições ao Planalto. A declaração, feita em entrevista ao jornal O Globo, foi vista por integrantes do governo como uma evidência de que o vice e o ex-ministro continuam se falando.
Mourão disse, por meio de sua assessoria, que isso não tem sentido e que, portanto, não iria se manifestar. Moro também não quis falar sobre o assunto. Os relatos sobre as desconfianças foram feitos ao Estadão por quatro auxiliares do presidente.
A tensão nos bastidores do governo ficou explícita ao longo desta semana. Foi nesta quinta-feira, 12, que Bolsonaro chamou de "delírio" a existência de um plano, por parte do governo, para criar mecanismos de expropriação de propriedades, no campo e nas cidades, com registros de queimadas e desmatamentos ilegais.
A medida consta de documento do Conselho Nacional da Amazônia Legal, revelado pelo Estadão. "Mais uma mentira do Estadão ou delírio de alguém do Governo. Para mim a propriedade privada é sagrada. O Brasil não é um país socialista/comunista", escreveu o presidente nas redes sociais.
"Se alguém levantar isso, eu demito. A não ser que seja indemissível"
Horas depois, em conversa com apoiadores, Bolsonaro negou a proposta e disse que "ou é mais uma mentira ou alguém deslumbrado do governo resolveu plantar essa notícia aí." O presidente não poupou críticas à medida. "A propriedade privada é sagrada. Não existe nenhuma hipótese nesse sentido. E se alguém levantar isso aí, eu simplesmente demito do governo. A não ser que essa pessoa seja indemissível", afirmou.
No início da tarde desta quinta, após a bronca pública, Mourão disse que o documento ao qual o Estadão teve acesso era apenas um estudo. "Se eu fosse o presidente, também estaria extremamente irritado porque isso é um estudo, é um trabalho que tem que ser ainda finalizado e só depois poderia ser submetido à decisão dele", argumentou o vice. "Eu me penitencio por não ter colocado grau de sigilo nesse documento porque, se eu tivesse colocado grau de sigilo, a pessoa que vazou o documento estaria incorrendo em crime previsto na nossa legislação".
Ao admitir o vazamento, Mourão afirmou que "alguém mal intencionado pegou e entregou o documento completo para um órgão de imprensa". Observou, ainda, que ali havia ideias para planejamento estratégico. Antes, no entanto, o vice havia dito que o estudo estava "totalmente fora de contexto".
Na segunda-feira, 11, Bolsonaro já tinha dado sinais de seu incômodo. Em declaração à CNN, desautorizou Mourão afirmando que não conversa com ele sobre Estados Unidos nem sobre qualquer outro assunto. O vice havia dito que "na hora certa" o presidente falaria sobre o resultado das eleições americanas. Bolsonaro ainda não se manifestou sobre a vitória de Joe Biden para a Casa Branca e segue na posição de aguardar o fim das ações judiciais movidas pelo presidente Donald Trump, seu aliado.
"O que ele (Hamilton Mourão) falou sobre os Estados Unidos é opinião dele. Eu nunca conversei com o Mourão sobre assuntos dos Estados Unidos, como não tenho falado sobre qualquer outro assunto com ele", disse o chefe do Executivo.
Bolsonaro deixou de dar declarações diárias a repórteres diante do Palácio da Alvorada no fim de maio, quando veículos pararam de frequentar o local, que ficou conhecido como "cercadinho do Alvorada", por falta de segurança. Desde o fim de junho, Mourão, por sua vez, voltou a atender jornalistas diante do gabinete da Vice-Presidência, localizado no prédio anexo do Planalto. O general também intensificou entrevistas e videoconferências.
Embora frequentemente encerre suas declarações dizendo que a palavra final é do presidente, Mourão costuma expor opiniões divergentes de Bolsonaro. O vice, por exemplo, se coloca a favor da tecnologia 5G da chinesa Huawei. Na terça-feira, 10, em live promovida pelo Itaú, ele voltou a falar em aprofundar a relação com a China na área tecnológica.
"Vejo com muito bons olhos a oportunidade de aprofundar a cooperação dos outros setores, principalmente na questão de ciência, tecnologia e inovação, onde os chineses estão avançando muito", afirmou Mourão no mesmo dia em que o governo Bolsonaro aderiu aos princípios de um acordo tecnológico com os Estados Unidos contra o avanço do 5G chinês.
O general também confrontou Bolsonaro ao dizer que o governo brasileiro vai comprar a vacina produzida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan. Segundo Mourão, a resistência era movida por uma disputa com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).
"Essa questão da vacina é briga política com o Doria. O governo vai comprar a vacina, lógico que vai. Já colocamos os recursos no Butantan para produzir essa vacina. O governo não vai fugir disso aí", disse o vice à revista Veja. Bolsonaro rebateu em declaração ao portal R7: "A caneta Bic é minha".
Diante da reação de Bolsonaro, Mourão já passou a demonstrar incômodo com perguntas sobre declarações do presidente. Na quarta-feira, 11, ele repetiu ao menos três vezes que não comentaria assuntos assim. "Eu já falei que eu não comento as coisas do presidente. Mais uma vez eu digo: eu sou vice-presidente, ou seja, existe uma relação aqui ética e de lealdade que eu não passo, eu não cruzo essa linha", observou.
Um integrante do governo tentou minimizar o estremecimento nessa relação marcada por altos e baixos e disse que os dois estiveram juntos, batendo papo e rindo, na segunda-feira, 9, no Planalto, momentos antes do evento do programa Pátria Voluntária, organizado pela primeira-dama Michelle Bolsonaro. Bolsonaro, de acordo com esse interlocutor, só reage quando Mourão "extrapola" em determinados assuntos. O vice, porém, não se incomodaria em "consertar a informação".
Para o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), aliado do governo, Mourão pode dar opiniões, mas, no fim, só a ordem do presidente é cumprida. "Ele é o vice-presidente, mas quem manda é o presidente, que determina as diretrizes", afirmou Silveira. "A fala do vice atrai pensamentos que corroboram suas ideias, mas isso não significa que vai ganhar votos. As pessoas que votaram na chapa (Bolsonaro/Mourão) votaram para presidente", completou Silveira.
Declarações de Mourão incomodam Bolsonaro desde a campanha de 2018
As declarações de Mourão à imprensa causam incômodo a Bolsonaro desde a campanha. Durante a transição de governo, no final de 2018, o vice foi aconselhado a adotar uma posição mais discreta. No início da gestão em 2019, no entanto, ele passou a falar com a imprensa diariamente. Com posicionamentos públicos diferentes de Bolsonaro, o general passou a ser alvo do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) nas redes sociais, que o acusava de conspirar contra seu pai.
Com a crise instalada, Mourão diminuiu as entrevistas e fez mudanças em sua assessoria de comunicação. Em julho do ano passado, o presidente chegou a parabenizar o vice por ter parado de falar com a imprensa. "Parabéns ao Mourão porque faz uma semana que ele não dá declarações a vocês", disse o presidente, aos risos, após participar de um evento na Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Na ocasião, o chefe do Executivo disse que se dava "muito bem" com o vice.
No último mês de abril, Carlos se voltou mais uma vez contra Mourão. Nas redes sociais, criticou o encontro do vice com governadores dos Estados que integram a Amazônia Legal, entre eles Flávio Dino, do Maranhão, filiado o PCdoB. A reunião fazia parte das atividades do Conselho Nacional da Amazônia, colegiado para o qual Mourão foi indicado por Bolsonaro.