Chefe da Secretaria-Geral da Presidência, responsável pela ponte entre o Palácio do Planalto e os movimentos sociais, o ministro Gilberto Carvalho afirma que a presidente Dilma Rousseff se afastou dos "principais atores na economia e na política" nos últimos quatro anos.
"O governo da presidenta Dilma deixou de fazer da maneira tão intensa, como era feito no tempo do (ex-presidente) Lula, esse diálogo de chamar os atores antes de tomar decisões. De ouvir com cuidado e ouvir muitos diferentes, para produzir sínteses que contemplassem os interesses diversos", afirma Carvalho.
Em entrevista à BBC Brasil, na qual fez um balanço dos últimos quatro anos de governo, o ministro admite ainda que a atual gestão "avançou pouco" em demandas de movimentos sociais, sobretudo nas reformas agrária e urbana e na demarcação de terras indígenas.
Segundo ele, "faltou competência e clareza" ao governo para avançar na questão indígena, e em alguns episódios a gestão deu "tiros no pé".
Ele defendeu, no entanto, o envio da Força Nacional de Segurança para reprimir protestos de indígenas contra a construção da usina de Belo Monte e disse que, se necessário, a mesma postura será adotada no rio Tapajós, no Pará, onde há planos de erguer mais hidrelétricas nos próximos anos.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida na quinta-feira no Palácio do Planalto, em Brasília.
BBC Brasil - Em seu primeiro discurso após ser reeleita, a presidente prometeu ampliar o diálogo com a sociedade. Foi um reconhecimento de que o governo falhou nessa área?
Gilberto Carvalho –
A fala da presidenta estava voltada para a necessidade de reunificação do País, porque uma campanha eleitoral deixa sequelas. Mas houve deficiências, é verdade. O governo praticou o diálogo nesses anos, mas, para o padrão da sociedade brasileira hoje, há muito que fazer.
BBC Brasil - Em que pontos?
Carvalho –
Sobretudo no diálogo com os principais atores na economia e na política. O governo da presidenta Dilma deixou de fazer da maneira tão intensa, como era feito no tempo do Lula, esse diálogo de chamar os atores antes de tomar decisão – de ouvir com cuidado, e ouvir muitos diferentes, para produzir sínteses que contemplassem os interesses diversos. Há uma disposição explícita da presidenta em alterar essa prática.
BBC Brasil – Movimentos sociais também se queixam da falta de diálogo.
Carvalho –
Não faltou diálogo, o que faltou no caso dos movimentos sociais foi o atendimento das demandas. A reforma agrária e a questão indígena avançaram pouco. A reforma urbana – as estruturas de funcionamento das cidades, a mobilidade urbana – também não foi o que os movimentos esperavam.
BBC Brasil - Como avançar nesses temas?
Carvalho –
Uma parte compete à presidenta. É ela que deve receber no gabinete as forças dos diversos setores da sociedade. Se o presidente pratica mais diálogo, induz o conjunto do governo a praticar.
Para o atendimento das demandas, tem de fortalecer alguns órgãos de governo. No caso da reforma agrária, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). No caso da política indigenista, a Funai (Fundação Nacional do Índio). Isso implica aumentar o orçamento, fazer concurso, comprar terrenos, indenizar quem está em terra indígena.
BBC Brasil - A Funai está sem presidente efetivo desde junho de 2013, e o governo paralisou todas as demarcações de terras indígenas. Por que crer que nos próximos quatro anos a política indigenista mudará?
Carvalho –
No final do governo, fizemos uma avaliação com a presidenta e ela própria expressou que temos que avançar. Para ela são duas preocupações: a reformulação da saúde indígena e a demarcação, mudando a lei e colocando no orçamento recursos para indenizar famílias que estão em terras indígenas.
Nosso foco é, sobretudo, os guarani kaiowá e os terenas no Mato Grosso do Sul, onde a situação é de miséria absoluta, morte, suicídio.
Agora não se pode deixar de reconhecer que cresceu muito, e infelizmente só tende a crescer mais, uma resistência ideológica e econômica fortíssima à questão indígena, que se representa fortemente no Congresso.
BBC Brasil - O governo não colaborou para fortalecer essa resistência quando a Advocacia Geral da União (AGU) publicou a portaria 303, ampliando as restrições ao reconhecimento de áreas indígenas, ou quando a Casa Civil anunciou que outros órgãos, como a Embrapa, passariam a atuar nas demarcações? Foram tiros no pé?
Carvalho –
Foram tiros no pé, sim. A 303, particularmente. No caso da Casa Civil, na gestão da ministra Gleisi (Hoffmann), temos que reconhecer que houve sinais trocados que não favoreceram.
BBC Brasil - O governo também não alimentou essa resistência ao se aliar a políticos tidos como adversários dos índios, como a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO)?
Carvalho –
Atribuir essa culpa ao governo é um absurdo. A direita cresce porque cresce. O partido da Kátia Abreu está na nossa base. Se eu restringir minha base àqueles que pensam como nós, não aprovamos nenhuma lei. Fazer aliança significa trabalhar com o adversário, digo, com o diverso.
Em nenhum momento foi por conta da Kátia Abreu que deixamos de avançar. Não avançamos porque faltou competência e clareza. Mas não dá para dizer que não foi feito nada.
BBC Brasil - O que foi feito?
Carvalho –
Foram demarcadas algumas terras e foram feitas duas desintrusões históricas (a expulsão de não índios das terras indígenas Marãiwatsédé, em Mato Grosso, e Awá Guajá, no Maranhão). Enfrentamos inclusive forças do Congresso. Fui chamado duas vezes na Comissão de Agricultura para levar pancada.
Além disso, iniciou-se uma discussão sobre como resolver conflitos. Uma coisa é você homologar a terra munduruku, uma das maiores do País, no sul do Pará, onde não tinha conflito nenhum. Outra coisa é no Mato Grosso do Sul, onde o próprio governo levou gente lá e titulou essas pessoas.
Isso gera um problema enorme, porque a lei não permite indenizar desapropriações em terra indígena. Teremos que alterar a lei.
BBC Brasil - O governo tem usado a Força Nacional para reprimir protestos contra grandes obras, como em Belo Monte. Não há outra forma de lidar com essas resistências?
Carvalho –
Acho que houve erros em Belo Monte no processo de implantação da obra, no ritmo das compensações e tal. Agora, quando você mantém um diálogo permanente – e instalamos lá uma casa de governo para dialogar – e se apela para ocupação de uma obra que tem interesse nacional, é dever do Estado enviar todos os esforços para que a obra retome o ritmo. Estamos com uma crise energética no País que não é pequena e temos de realizar Belo Monte.
BBC Brasil – A mesma postura valerá para as usinas que o governo quer erguer no rio Tapajós, no Pará? Há queixas de que o governo não está cumprindo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (que exige que índios sejam consultados sobre obras que os afetem).
Carvalho –
Estamos com uma equipe lá tentando fazer a implementação da 169, mas há uma sabotagem sobretudo da parte de entidades.
BBC Brasil - Que entidades?
Carvalho –
Não vou dizer. Ontem [quarta-feira] nosso companheiro ligou dizendo que os índios ficam constrangidos, porque querem dialogar, mas têm medo das entidades, que determinam um comportamento para eles. Estamos numa situação difícil.
É uma intervenção numa área onde o Estado está muito ausente. Um dos erros de Belo Monte foi o Estado não chegar antes da construção e suas consequências. Mas não abriremos mão de construir Tapajós.
A consulta não é deliberativa. Ela deve ser feita para atender demandas, diminuir impactos, mas não é impeditiva.
BBC Brasil - O que acha do pedido do Ministério Público para que ribeirinhos também sejam consultados sobre a obra? Eles serão ouvidos?
Carvalho –
Serão. Não vejo nenhum problema.
BBC Brasil - A oposição cresceu no Congresso e há hoje ali um clima hostil ao governo. Como farão para aprovar as reformas prometidas?
Carvalho –
Há uma repercussão ainda do processo eleitoral. Quando janeiro chegar, as coisas não serão iguais. A composição ministerial vai levar em conta a necessidade de contemplar essas forças no Congresso.
Outro aspecto é a governabilidade social. A eleição mostrou o quanto a militância social está disposta a ir para a luta. É um fator que teremos de trabalhar para fazer avançar processos, sobretudo a reforma política. Se não tiver rua, se não tiver mobilização, não tem nenhuma esperança de passar nesse Congresso.
BBC Brasil - O novo governo começará em meio a um novo escândalo de corrupção, agora na Petrobrás. Teme os desdobramentos do caso?
Carvalho –
Quem já conviveu nesses últimos nove anos com esse clima não tem o que temer. Teria que temer se tivesse algum envolvimento da Dilma ou do Lula na história. Como não tem, vamos administrar isso como fizemos outras vezes.
BBC Brasil - A população carcerária no Brasil explodiu nos últimos anos por causa da repressão ao tráfico de drogas, mas a violência não diminuiu. Por que o governo não considera rever essa política?
Carvalho –
O tema das drogas é de muito difícil abordagem. Estamos acompanhando a experiência do Uruguai. Ninguém ainda tem muita segurança. Enquanto a população não amadurece uma posição, o governo não tem condição de tomar essa ou aquela decisão de cima para baixo.
Sei do absurdo que é prender um moleque carregando um pouco de erva e jogá-lo na Papuda (presídio no Distrito Federal), mas não sinto no governo nenhuma iniciativa de enfrentar isso nos próximos quatro anos.
BBC Brasil – O que acha da proposta de desmilitarizar a polícia?
Carvalho –
Tenho enorme simpatia, mas é questão pessoal minha. Nos marcos de uma reforma política, de uma reforma do Estado mais ampla, acho que teremos de enfrentar o tema. Mas não acho que desmilitarizando tudo estaria resolvido. A tortura nos cárceres não é feita pela PM, mas pela polícia civil.
BBC Brasil - Por que o governo nunca se posicionou contra a violência policial da mesma forma com que condenou o vandalismo em protestos?
Carvalho –
Em nenhum momento, nas minhas falas ou nas da presidenta, eu vi omissão. Tanto que pessoalmente tive um problema ao fazer uma crítica aberta à PM de Brasília, quando houve aqui uma manifestação dos sem-terra. Fui alvo de tentativa de chamada no Congresso e de recados muito duros da PM.
Nós criticamos a violência das manifestações porque entendíamos que ela conspirava contra as próprias manifestações.
BBC Brasil - Pesquisadores dizem que a crise hídrica que enfrentamos é também uma crise ambiental. O governo, porém, manteve fortes incentivos à indústria automobilística e tem estimulado grandes investimentos em combustíveis fósseis, na exploração do pré-sal. O governo não precisa atualizar sua agenda ambiental?
Carvalho –
Precisa. No caso da água em São Paulo, há um problema ambiental, mas também a ausência de obras. Mas a agenda ambiental que a meu juízo temos de atualizar diz respeito à questão urbana. Ao fortalecimento do transporte coletivo e à diminuição do estímulo ao transporte individual.
Do ponto de vista da matriz energética, temos de investir na diversificação. Na questão do desmatamento, na conversão para o orgânico e o agrobiológico. Temos um programa para que se universalizem essas práticas, inclusive nos latifúndios. Precisamos tornar essas fórmulas economicamente rentáveis. Temos que romper a barreira de que o Brasil é o maior consumidor de defensivos (agrotóxicos) do mundo.
BBC Brasil - Isso não contradiz a estratégia atual do governo de conceder empréstimos cada vez maiores a grandes produtores de matérias-primas agrícolas, que fazem amplo uso de transgênicos e agrotóxicos?
Carvalho –
Pelo contrário, você pode usar o financiamento como forma de reduzir os juros de quem empregar técnicas menos ofensivas à natureza.
BBC Brasil - Já conversou com a presidente sobre onde estará nos próximos quatro anos?
Carvalho –
Não. Ela não está falando com ninguém sobre isso.
BBC Brasil - Continua no governo?
Carvalho –
Preciso trabalhar, eu acumulei experiência. Se ela me convidar a ficar no governo, eu vou ficar.
BBC Brasil - Há quem diga que o senhor pode ir para a Funai ou para alguma embaixada no exterior.
Carvalho –
Só se for no Afeganistão (risos). Falando sério: qualquer ministro aqui na Esplanada que falar qualquer coisa, estará falando bobagem.