Escrito em 2006 para celebrar o 40º aniversário do PMDB, o livro A História de um Rebelde diagnosticava, logo em sua introdução, que o partido sofria de uma "crise existencial".
O motivo era o seguinte: pela segunda vez em três eleições, a legenda decidira não lançar candidato a presidente nem a vice.
"O PMDB vive, neste momento, uma realidade paradoxal: é hoje um partido nacional – o maior e o mais forte; (...) Contudo, em que pesem tantos atributos, vive um momento ímpar de radicalização extremada do federalismo, que o impede, desde 1998, de lançar candidato próprio à Presidência da República."
A crítica do autor da "biografia" da sigla, o ex-deputado federal mineiro Tarcísio Delgado, tinha destino. Segundo ele, lideranças que haviam aderido ao partido nas duas décadas anteriores haviam ganhado muita força e, em nome da liberdade para fazer as alianças regionais que desejassem, sustentaram a "posição surrealista" de não lançar candidato a presidente.
Uma década depois, e no ano em que completa meio século de vida, o maior partido do Brasil volta à Presidência da República pela segunda vez, novamente de forma indireta, com o afastamento de Dilma Rousseff, agora oficialmente alvo de um processo de impeachment. Mas Delgado, hoje com 80 anos, continua descontente.
"O PMDB chega ao poder, mas é por meios travessos, que não têm nada a ver com a história do partido. Pelo contrário", afirma o veterano à BBC Brasil. Ele trocou a sigla pelo PSB em 2012, após 46 anos de militância, devido a uma série de "desapontamentos". Mas garante não ter mágoas.
O que levou, porém, uma legenda que nem sequer conseguia se unir em torno de um candidato a presidente a acumular agora o comando do país, as maiores bancadas da Câmara e do Senado e à liderança no número de prefeituras e governos estaduais?
Acidente ou plano?
Ex-líder na Câmara e secretário-geral do partido na época em que era chefiado por Ulisses Guimarães (1916-1992), Delgado diz que sua experiência lhe permite crer que esse predomínio alcançado pelo PMDB não foi algo planejado.
"Penso que (Temer) não chegou (ao comando do partido) com esse objetivo. Acho que não, até onde eu posso conhecer o Michel", avalia, ao se referir à gestão de mais de uma década do presidente interino da República no partido, que presidiu até pouco tempo atrás.
O cientista político Rafael Moreira, que estuda o PMDB na USP, também não vê o momento atual como resultado de um plano ou esforço do partido em assumir o papel de protagonista.
"A estratégia do PMDB sempre foi se manter no plano de fundo da política brasileira", afirma, ao explicar que as fortes bases regionais têm permitido à legenda sempre lançar muito mais candidatos ao Congresso Nacional do que as outras siglas e, assim, conquistar uma bancada ampla nas duas Casas.
"Isso faz com que o ato de governar sem o PMDB se torne muito difícil", acrescenta, antes de citar o aparente desfecho do governo Dilma Rousseff como uma prova disso.
Na sua opinião, se houve uma estratégia para chegar ao poder, ela esteve centrada em Eduardo Cunha, presidente afastado da Câmara, e em Temer; dificilmente na legenda em si. O que deve se manter, inclusive, em 2018: para Moreira, a tendência é de que o PMDB volte à periferia.
"Nunca dá para se falar de unidade se tratando do PMDB. Não conseguiram isso nem com o Ulisses Guimarães, que era uma figura de projeção nacional do partido, tinha acabado de ser o 'senhor das Diretas', levou adiante o projeto da Constituinte", recorda, ao citar a candidatura do líder peemedebista à Presidência da República, em 1989.
Ulisses terminou em 7º lugar.
Ocasionalidade?
É possível dizer, então, que todo esse poder caiu no colo do PMDB?
Para José Alvaro Moisés, cientista político e professor da USP, seria um equívoco chegar a essa conclusão.
"O PMDB consolidou uma estrutura muito forte no país, e o que está acontecendo agora é de certa maneira um resultado disso", analisa.
Na sua avaliação, o partido "mudou sua orientação" nos últimos dois anos. Logo após a reeleição da chapa Dilma-Temer e diante do crescimento da sigla nas urnas em 2014, algumas lideranças do PMDB passaram a questionar a aliança com o PT, recorda.
"A política de aliança do PT significava ter o apoio do PMDB nas votações, mas, em casos muito raros, compartilhar decisões sobre política de Estado", afirma.
Essa crítica ecoa como reclamação na famosa carta enviada por Temer a Dilma no fim do ano passado, marcando o início do rompimento da parceria.
O documento Ponte Para o Futuro , conjunto de propostas peemedebistas divulgado em outubro passado e visto como uma espécie de guia da gestão Temer, é apontado pelo professor como outro indicativo dessa mudança de rumo.
A coincidência dessa sinalização de correção nos rumos com o avanço da crise, diz, é que levou o "cavalo a passar selado" para a legenda.
'Partido sem face'
Professor da FGV-SP, o cientista político Cláudio Couto dá um crédito bem menor ao PMDB: além de não ver um projeto deliberado para chegar ao poder, diz que oPonte Para o Futuro está longe de ser um programa para o país.
"Esse plano tem muito mais a ver com uma alternativa à falência da política econômica do governo Dilma do que ter, digamos, vida própria", avalia.
Couto classifica o PMDB como um "partido invertebrado", sem face clara. "Por isso, nunca conseguiu ter um candidato presidencial. Qual o projeto do PMDB para o país? Sabe-se lá o que é", diz.
Para o professor, essa ausência de "face" é um dos grandes riscos do governo Temer, embora ele, três vezes presidente da Câmara e há mais de uma década no comando do partido, tenha boas credenciais para articulação política – principalmente se comparado a Dilma, majoritariamente considerada inapta para tal.
"Minha dúvida é o quanto o Temer tem alguma vértebra, o quanto consegue efetivamente conduzir um governo com um mínimo de cara", pontua.
Torcida reticente
Aos 86 anos, o ex-governador gaúcho e ex-senador Pedro Simon conta que, após ser criado como "partido de mentirinha" para passar uma ideia de que havia uma oposição à ditadura militar, o então MDB criou um programa de luta calcado na defesa de eleições diretas, da anistia, da convocação de uma assembleia constituinte e da liberdade de imprensa.
Peemedebista histórico, ele explica que aqueles tempos sombrios obrigaram a sigla a deixar a elaboração de um programa de governo para depois, ou seja, para quando eventualmente chegasse ao poder.
"A desgraça do PMDB foi o Tancredo ter morrido. E o Sarney ficou no lugar dele, pô", brinca.
Segundo Simon, "justiça seja feita", Sarney cumpriu todos os compromissos com a liberdade assumidos pelo partido. Mas sua forma de governar, optando por uma prioridade ao chamado "centrão", diz, levou a um embrião do "toma lá, dá cá" dos dias atuais, provocando um racha no partido, a uma "vida difícil".
Ele reconhece que a legenda "deixou de lado a grande luta" ao não lançar candidato a presidente desde 1998. E que hoje chega ao poder sofrendo de um "vazio de lideranças".
O ex-senador diz esperar que Temer tenha condições de fazer o governo que "se espera que ele faça", e aconselha que ele deixe claro seu apoio à Operação Lava Jato e adote uma política de austeridade na economia.
Tarcísio Delgado, o "ex-biógrafo" do PMDB, que é contra o impeachment de Dilma - que considera uma "péssima governante" ("mas isto é um custo da democracia: tem de esperar a outra eleição para você substituir", diz ele) –, também diz torcer para que o presidente interino acerte e faça uma boa gestão.
Avalia, porém, ser difícil apostar em um sucesso. "O Michel está levando para o governo aquele que era o baixo clero no meu tempo na Câmara. É a ascensão do baixo clero, do centrão. Que pensa pouco e age muito em benefício próprio", afirma.
"Não é com esse pessoal que o PMDB pensava, ou podia pensar, em assumir o governo. Não é com Geddel Vieira Lima, com Moreira Franco, com Eliseu Padilha, com (Henrique) Eduardo Alves... não é com esse pessoal", continua, para mais tarde arrematar: "Se Ulisses Guimarães estivesse aí, isso não estaria nem acontecendo."