O que a Lava Jato revela sobre a origem 'mágica' do Direito

Fé depositada na operação e tratamento de herói a protagonistas expõem laços antigos entre justiça e religião, dizem juristas

30 jul 2017 - 15h39
(atualizado em 31/7/2017 às 11h27)

Réus declaram "crer" na Justiça, procuradores dizem conduzir uma "cruzada" contra a corrupção, juízes são descritos como "heróis".

As semelhanças entre o vocabulário ligado à operação Lava Jato e o linguajar do universo mítico-religioso não são coincidência, dizem juristas entrevistados pela BBC Brasil.

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"Na origem do Direito, era impossível separá-lo da religião", diz Ari Marcelo Solon, professor de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo (USP). Ele conta que nosso sistema jurídico se originou a partir de mitos que circulavam na Grécia vários séculos antes de Cristo.

Quase três milênios se passaram, mas o laço jamais se desfez completamente, afirma o professor - o que ajudaria a explicar a esperança quase religiosa que muitos brasileiros depositam na Lava Jato e a fé numa redenção por meio da punição dos corruptos.

Deusa da Justiça

Nos tempos do poeta Homero, conta Solon, a deusa Têmis personificava os ideais de justiça. Segunda esposa de Zeus, filha de Urano e Gaia, era também Têmis quem mantinha a ordem no Olimpo, a morada dos deuses.

Solon diz que a deusa era representada por um monte de pedras, o que indicava a firmeza da justiça. Na ágora, espaço de discussão onde também havia pedras, reis se reuniam para tomar decisões guiados por decretos divinos.

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Séculos mais tarde, em Roma, Têmis se transformou na deusa Iustitia, origem do termo justiça. Hoje, estátuas da deusa, de olhos vendados e balança à mão, guardam a entrada de muitos tribunais no Ocidente.

Com o tempo, muitos Estados se tornaram laicos, e Direito e religião se separaram formalmente. Porém, para alguns pensadores - como os filiados ao realismo jurídico, movimento que despontou nos EUA e na Escandinávia no início do século passado - essa cisão nunca ocorreu pra valer.

Na tese "A César o que é de Deus: Magia, Mito e Sacralidade do Direito", defendida na USP em 2008, o jurista e diplomata Rafael Prince analisa as semelhanças entre o Direito e os rituais xamânicos, a feitiçaria e outras práticas de povos ditos "primitivos".

Segundo Prince, o Direito é "um fenômeno mágico", que opera em moldes parecidos com os de religiões tradicionais, ainda que muitos juristas o tratem como ciência.

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Ele afirma que, por mais que juízes digam se guiar apenas pela lei ao proferir sentenças, suas decisões sempre têm uma boa dose de subjetividade - o que, para Prince, não significa que a impessoalidade, objetividade e transparência não devam ser perseguidos por legisladores e operadores do Direito.

"O conteúdo das normas do Direito mudou ao longo do tempo, mas a forma de pensar juridicamente é, por natureza, uma forma de pensamento mágico ou religioso - uma linguagem mitológica", afirma.

Ele diz que o elo entre magia e Direito é evidenciado, por exemplo, pelo papel que a palavra desempenha nos dois sistemas.

"As palavras são o núcleo do poder mágico", explica o jurista.

Citando o linguista alemão Winfried Nöth, ele afirma em sua tese que a palavra inglesa "spell" significa tanto soletrar quanto fórmula de encantamento, e que "glamour", que no passado significava "bruxaria", tem a mesma raiz que "grammar" (gramática).

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"Para o povo, o conhecimento de gramática era evidentemente um saber mágico", disse Nöth.

Da mesma forma que um ritual de magia requer a entoação de certas palavras, a posse de um funcionário público ou um casamento - duas cerimônias regidas pelo Direito - só têm efeito mediante a pronúncia de expressões específicas.

As palavras são tão poderosas no Direito, diz Prince, que com elas juízes podem "mudar para sempre o destino de pobres mortais".

Os paralelos vão além. "As fórmulas mágicas costumam ser barrocas e repetitivas, e não é diferente com os textos jurídicos", afirma Prince.

"O exorcista, por exemplo, ao recitar suas orações e conjurações, deve se mostrar muito mais terrível que o demônio dentro do paciente (...) Da mesma forma, os advogados não poupam esforços em falar numa linguagem rebuscada e incompreensível aos leigos, que, admirados com o impressionante 'juridiquês', não hesitarão em confiar na capacidade dos doutos bacharéis."

Prince afirma que há várias palavras vazias de sentido no Direito, e que muitos conceitos jurídicos - como propriedade, direito subjetivo e crédito - não têm qualquer significado fora do universo das leis.

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E assim como as religiões têm templos, o Direito tem tribunais, espaços igualmente controlados por rígidas regras por onde transitam juízes, advogados e promotores - a quem Prince chama de "sacerdotes da religião jurídica".

Para ter acesso a esses locais, deve-se passar por uma série de ritos, como a graduação em Direito e o concurso para a magistratura - processo não muito diferente da iniciação por que passam padres, monges e xamãs, afirma o diplomata.

Direito e mito

Além da origem comum, Prince diz que Direito e religião têm o mesmo papel na sociedade: "resolver conflitos sociais, ao conciliar, em sua estrutura harmônica, expectativas e valores dissonantes".

Quando um juiz define uma pena para um crime, está compensando o crime com outro ato e agindo para restabelecer o equilíbiro quebrado pelo criminoso.

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"O processo judicial, em sua forma e linguagem, é um meio de reviver mitos fundamentais da nossa sociedade", diz Prince.

No caso da Lava Jato, ele afirma que o mito em questão é o de que "os maus devem ser punidos".

Segundo o jurista, no imaginário de muitos brasileiros, os procuradores da operação e o juiz Sérgio Moro são vistos como figuras míticas que "vão salvar o país de todo o mal".

Ele alerta para o risco, porém, de que os holofotes façam o juiz abandonar o papel sagrado de mediador, convertendo-se em outro arquétipo mitológico: "o inquisidor, o herói paladino da justiça".

"Isso, sem dúvida, é ruim para a legitimidade do Judiciário - além de ilegal."

Falsa religião

Para Ari Solon, professor da USP, a Lei das Doze Tábuas - legislação na origem do Direito romano - é a base dos processos da Lava Jato.

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O documento, que codificou delitos e definiu penas para malfeitos, marcou o início de uma era na qual governos passaram a aprovar leis aplicáveis a todos os cidadãos. Solon diz que, ao sistematizar mitos e valores arraigados na população, o Direito romano surgiu como uma "força ética".

Para ele, o elo entre Direito e ética se fragilizou desde então. "O Direito foi se afastando de sua essência e virando algo só formal: uma falsa religião."

Solon diz que, para resgatar os valores originais greco-romanos, pode ser útil estudar como se organizam povos que não foram engolidos pelo Direito ocidental, como indígenas brasileiros.

Esses grupos, segundo o professor, podem nos mostrar outras formas de conciliar mitos e regras de convívio - ainda que, para alguns, eles ainda vivam na "Idade da Pedra".

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Solon então lembra o elo entre o Direito e as pedras que simbolizavam Têmis, a deusa grega da justiça. As pedras, conta ele, também abundavam no Monte Sinai, onde foi revelada a Moisés a Torá, o livro sagrado do Judaísmo.

"Não é chocante que todos adorem a pedra", diz o professor.

"Há paradigmas comuns a todas as civilizações. A religião tem que vir da concretude."

Foto: BBC News Brasil
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