Lula não unificará esquerda se propuser 'mais do mesmo', diz líder dos sem-teto

Guilherme Boulos afirma que petista não pode ser impedido de se candidatar "no tapetão", mas defende proposta alternativa da esquerda caso ex-presidente se alie com empresários e partidos que hoje apoiam Temer.

29 mai 2017 - 16h03
(atualizado às 16h30)
Lula
Lula
Foto: BBC News Brasil

Para o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não pode ser impedido "no tapetão" de se candidatar em 2018 ou numa eventual eleição direta para suceder Michel Temer no Palácio do Planalto.

Porém, caso o petista proponha o mesmo programa com que o PT governou o país por 13 anos, aliando-se ao empresariado e recompondo com partidos que hoje apoiam Temer, Boulos defende que a esquerda construa uma proposta alternativa.

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"(Lula e o PT) mantiveram o tipo de aliança com parte do empresariado que banca as campanhas eleitorais. Foi um erro brutal, e o fato de não terem inventado esse método não os isenta. Tudo que ocorreu depois é consequência dessa opção política profundamente equivocada", ele diz.

Em entrevista à BBC Brasil, Boulos afirma que o grande desafio da esquerda brasileira é reconectar suas pautas à maioria do povo, superando o erro de ter tratado as ruas como palco secundário nos últimos 20 anos.

Para ele, a realização de eleições diretas para substituir Temer é a única maneira de barrar as reformas trabalhista e previdenciária propostas pelo governo.

Formado em filosofia na USP e professor de psicanálise, Boulos ingressou no MTST em 2002. Hoje, aos 34 anos, é tido como um dos mais influentes representantes de movimentos sociais de esquerda no Brasil - e também um dos principais alvos de grupos de direita, que o criticam por seu papel à frente de ocupações sem-teto.

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Ele conversou com a BBC Brasil num café em Brasília na última quinta-feira, um dia após participar da manifestação na Esplanada dos Ministérios contra o governo Temer. Abaixo, os principais trechos da entrevista:

BBC Brasil - Qual o melhor desfecho para o impasse atual na política?

Guilherme Boulos - O governo Temer perdeu qualquer condição de seguir adiante. Ele já não tinha legitimidade e agora perdeu a condição política. E qualquer saída que possa ser pensada pelo Congresso, via eleição indireta, é um acinte, é inadmissível, porque temos o Congresso mais desmoralizado, com menos autoridade, da história da República.

A única saída é chamar o povo a decidir por meio de eleições diretas. Eleições gerais, ainda que as presidenciais sejam mais factíveis num primeiro momento. Esse seria o início da saída para a crise.

BBC Brasil - Como convocar diretas sem violar a Constituição?

Boulos - Uma via é a PEC (Proposta de Emenda à Constituição 227, do deputado federal Miro Teixeira, da Rede-RJ) tramitando no Congresso. Outra é a possibilidade de cassação da chapa (Dilma-Temer) pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral). A lei eleitoral prevê que, em caso de cassação de chapa, chamam-se eleições diretas, a não ser nos últimos seis meses de mandato.

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Há quem diga que isso conflita com a Constituição. Mas a convocação de diretas é factível porque, embora a Constituição diga que cabe ao Congresso eleger o presidente nos dois últimos anos de mandato, o próprio Congresso abriu mão dessa prerrogativa ao aprovar a lei eleitoral.

O que me espanta é o nível de hipocrisia de pessoas que, há um ano, não tiveram nenhum pudor em rasgar a Constituição para fazer um impeachment sem crime de responsabilidade e agora vêm encher a boca para falar que uma saída que devolve a soberania popular é inconstitucional.

BBC Brasil - Há chances de que, pela saída de Temer, movimentos de esquerda se unam nas ruas aos manifestantes que defendiam o impeachment de Dilma? Você marcharia ao lado desses grupos?

Boulos - Os manifestantes que foram às ruas de verde-amarelo e defenderam o impeachment muitas vezes o defenderam por um sentimento contra a corrupção, ou depois até perceberam que foram em parte manipulados por setores políticos e midiáticos. Eles também estão contra o Temer, são contra as reformas e defendem eleições diretas. São bem-vindos nas nossas manifestações e nós queremos trazê-los.

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Outra coisa são os movimentos Vem pra Rua e MBL (Movimento Brasil Livre). Com essa turma não vemos possibilidade de marchar, porque são movimentos que perderam qualquer credibilidade. Venderam o peixe de que o impeachment era para acabar com a corrupção e tirar o país da crise, mas veja onde estamos.

Uma turma que até semana passada estava apoiando entusiasticamente o Michel Temer, fazendo manifestações chapa branca, agora quer se colocar nesse processo?

BBC Brasil - As cenas de destruição no último protesto em Brasília não podem afugentar manifestantes nos próximos atos?

Boulos - Quem foi responsável pela violência foi a polícia. Foi ela quem iniciou o processo, ao atacar de maneira desproporcional as pessoas. Quem estava lá viu um aparato de guerra, bombas sendo atiradas de helicópteros, muita gente ferida. Só do MTST tivemos dois militantes com ferimentos sérios no rosto, e houve gente ferida por munição letal.

Isso também gera uma animosidade. As pessoas viajam dias pra chegar em Brasília para uma manifestação e, quando chegam perto do Congresso, são recebidas a porrada e bomba. Qualquer reação a isso é legítima.

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BBC Brasil - Há algum nome que você apoiaria numa eleição direta?

Boulos - Neste momento, não. A discussão de eleições diretas é necessária para barrar a agenda que está sendo aplicada no país. As diretas são a única maneira de barrar politicamente essa agenda. Duvido muito que alguém que prometa numa eleição liquidar a aposentadoria e acabar com direitos trabalhistas conquistados há 80 anos vá chegar a 1% de votos no Brasil.

Quando dissemos que o que ocorreu no ano passado foi um golpe, não foi apenas por razões jurídicas. Foi um golpe também do ponto de vista da agenda política. Essa agenda (de Temer) não passou pelo crivo das urnas. Se houver eleições indiretas, conhecendo o perfil do Congresso, é de se esperar que quem entre esteja comprometido com a mesma agenda antipopular.

BBC Brasil - O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), o ex-presidente FHC (PSDB) e o ex-ministro Nelson Jobim (PMDB) são alguns dos principais nomes cotados para uma eventual eleição indireta. Algum deles teria sua preferência?

Boulos - Nenhum. Sobre eleição indireta, não vamos nem discutir, somos contra esse processo. É vergonhoso que uma parte da esquerda brasileira entre nesse balcão de negócios ilegítimo de nomes para uma eleição indireta.

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No Brasil, em situações de crise profunda, sempre se construíram soluções conservadoras e de cúpula. Acho que tem mais uma sendo preparada. A Globo e uma parte do establishment se deram conta de que esse sistema político chegou ao seu limite. Quando um sistema perde a legitimidade, o risco do povo se organizar e derrubá-lo é real, e a Casa Grande no Brasil tem tremeliques só de pensar nisso.

Tal como (o general) Golbery (1911-1987) fez na transição para este sistema democrático cheio de limites, tem um povo percebendo que não dá mais. A bandeira é o combate à corrupção, e quem pode expressar uma transição é o Judiciário. Com um Executivo caindo pelas tabelas e um Legislativo desmoralizado, quem tem ocupado o vácuo no poder é o Judiciário.

Esses setores resolveram apostar nessa saída porque acham que dessa maneira poderiam aplicar as agendas deles com mais apoio social. Quando se aventa o nome de Cármen Lúcia, quando aparece nas pesquisas o nome de Sergio Moro... Ninguém cria um herói nacional para deixá-lo mofando na Vara de Curitiba.

É preocupante que setores usem a insatisfação com Temer e a indignação legítima contra a corrupção para impor novos arranjos de cúpula que podem implicar saídas autoritárias e uma judicialização perigosíssima da política.

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BBC Brasil - Muitos na esquerda torcem por uma candidatura de Lula numa eventual eleição direta. Não seria uma estratégia arriscada, dada a alta rejeição que ele tem?

Boulos - O Lula tem direito de ser candidato, seja agora ou em 2018, e tentativas de barrá-lo no tapetão são antidemocráticas e visivelmente casuísticas.

Tem que ver com qual programa Lula vai ser candidato, porque se for com o programa - e às vezes sinaliza-se nesse sentido - de mais do mesmo, de recompor com os mesmos partidos que agora estão fazendo essa agenda e deram o golpe, de não ousar propor mudanças mais estruturais, será um programa que não unificará a esquerda brasileira.

BBC Brasil - Uma candidatura do Lula não sufocaria outras candidaturas à esquerda? Ele ainda não é uma figura muito dominante nesse campo?

Boulos - É claro que é. Ele é a maior liderança social que o país produziu talvez na sua história. Agora, o que fazer? Para construir uma alternativa tem que inviabilizar o Lula? Não dá, isso é parte do jogo.

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Cabe à esquerda que tenha posicionamentos críticos ao Lula apresentar um programa alternativo a esse e se apresentar não só no processo político eleitoral, mas também nas ruas, construindo bases sociais para esse programa.

BBC Brasil - Ainda que Lula venha a ser inocentado na Justiça, ele não traiu bandeiras da esquerda ao se aproximar tão intensamente de grandes grupos empresariais? Ainda há condições para que o PT, que teve tantos políticos presos e condenados, represente a esquerda?

Boulos - O Lula e o PT pagam o preço da opção que tomaram. Quando chegaram ao governo, poderiam ter enfrentado o sistema político. Esse sistema está baseado na corrupção: a corrupção não é um acidente, é a norma de funcionamento para obter maioria parlamentar, para conseguir dinheiro para o financiamento de campanha, favorecendo as empresas depois. Isso não foi o PT que inventou, é a natureza do sistema.

Poderiam ter dito "não dá assim, vamos chamar uma Constituinte, vamos mudar isso". Há quem diga "ah, mas aí não teriam maioria congressual". É óbvio que não teriam. Se alguma esquerda acha que vai fazer governo de esquerda no Brasil com maioria congressual, não está entendendo o que se passa.

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Setores democráticos e progressistas nunca tiveram maioria no Parlamento brasileiro com esse modo de se eleger. A única forma de haver um governo de esquerda é apelando à mobilização popular para pressionar o próprio Congresso. Governabilidade não é só uma lógica tacanha, ela tem que ser construída nas ruas.

Lula e o PT optaram por outro caminho. Eles mantiveram o tipo de aliança com parte do empresariado que banca as campanhas eleitorais. Foi um erro brutal, e o fato de não terem inventado esse método não os isenta. Tudo que ocorreu depois é consequência dessa opção política profundamente equivocada.

BBC Brasil - O PSOL ou algum outro partido pode preencher o espaço outrora ocupado pelo PT na esquerda brasileira?

Boulos - O PT foi o partido hegemônico na esquerda nos últimos 35 anos. Hoje ele perde as condições de sê-lo. O PSOL é um partido importante, com parlamentares que têm tido atuação correta, mas ainda não ocupa esse papel.

E ainda assim, dentro do PT e na base do PT, há muita gente que quer ser parte de um projeto de esquerda renovado no Brasil.

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Isso passa pela construção de um novo campo político que não nega o que foi, que tenha capacidade de reconhecer acertos, dialogar e compor com um conjunto do que foi a esquerda brasileira nos últimos 30 anos. Mas que aponte taxativamente para o novo, que reconheça os erros cometidos e os limites da trajetória da esquerda até aqui.

BBC Brasil - A Rede, da Marina Silva, entraria nesse campo?

Boulos - A Rede da Marina, não. Mas há setores na Rede, minoritários, como o (deputado federal Alessandro) Molon, (o senador) Randolfe Rodrigues, que são parte da construção de uma nova esquerda no Brasil.

Mas isso não pode ser um arranjo partidário. Se for, não funciona. Tem que vir com um caldo de mobilização social, de baixo, com participação ampla, com ativismo popular, com movimentos sociais que estão em luta. A construção de uma nova esquerda no Brasil é à quente, no calor da mobilizações.

Como a gente concretiza um projeto novo de esquerda no Brasil que, ao mesmo tempo, não perca a capacidade de sonhar, resgate a esperança que foi afogada por um pragmatismo tacanho, e que também seja viável, tenha pé no chão, no barro, na base social? Que seja capaz de mobilizar e influenciar setores da sociedade brasileira? Esse é o grande desafio.

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BBC Brasil - Você considera se lançar na política?

Boulos - O desafio neste momento é produzir um processo de resistência popular e de luta social no Brasil.

A maior parte da esquerda cometeu um erro muito grande nos últimos 20 anos: paulatinamente, foi tratando as ruas como palco secundário, preocupando-se apenas com disputa institucional. Deixou de fazer trabalho de base e perdeu a sintonia com parte da sociedade. Temos de reconectar as pautas desse campo de esquerda à maioria do povo.

Isso pode passar também por processos eleitorais, não descarto isso. Mas tem muita gente já pensando em 2018, enquanto nosso desafio agora é ganhar 2017. O que está posto para o movimento social brasileiro é não deixar passar o conjunto de retrocessos que nos fariam voltar décadas.

BBC Brasil - O que vislumbra para um cenário pós-Temer?

Boulos - Há duas possibilidades. Uma é de retrocesso democrático, de fortalecimento de medidas de exceção. A alternativa é o aprofundamento da democracia.

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Nunca tivemos uma democracia plena no país. Continuamos a ser um dos países com pior distribuição de renda do mundo. Temos uma estrutura de Estado patrimonialista, que funciona como Robin Hood ao contrário, tirando dinheiro dos pobres e da classe média pelo sistema tributário e repassando aos ricos pelos juros da dívida pública.

Não há democracia com o extermínio dos indígenas, com a polícia exterminando a juventude negra todos os dias nas periferias. Outros países da América Latina já trataram temas como o direito ao aborto, os direitos civis da população LGBT. Nós estamos muito atrasados.

BBC Brasil - O que propõe para superar a crise econômica?

Boulos - Não há mais espaço para uma política de ganha-ganha, de conciliação, feita pelo PT nos 13 anos de governo. Isso só foi possível porque havia gordura do crescimento econômico, baseado nas commodities e no crescimento da China, mas também numa política acertada de valorização do salário mínimo e do crédito popular. Mas se fez política social com manejo orçamentário.

Numa situação internacional de redução de demanda, isso não é mais possível. Agora é ganha-perde. Na alternativa aplicada hoje, ganha o andar de cima, perdem os trabalhadores.

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Na outra, ganha a maioria da população e retira-se do 1% privilegiado. Isso significa uma reforma tributária profunda. Tem que taxar grandes fortunas, retomar taxação de lucros e dividendos que o FHC encerrou nos anos 1990, aumentar a taxação de lucros dos bancos.

Isso também passa por assumir dívidas históricas, como a reforma agrária, a reforma urbana, enfrentar oligopólios no ramo das comunicações, democratizando-as.

A última vez que se falou em reformas de base foi no Comício da Central do Brasil, em 1964. O presidente João Goulart levou o golpe 15 dias depois, para você ter uma ideia de como é a Casa Grande. Esse tema precisa ser retomado.

A esquerda brasileira não pode ter medo de mexer nessa ferida, porque, sem isso, vamos permanecer como a sociedade do 1%.

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