Quando Luiz Inácio Lula da Silva tomar posse com presidente da República, em 1º de janeiro de 2023, ele não terá como escapar da comparação com o Lula que, em 2003, recebeu a faixa das mãos de Fernando Henrique Cardoso. O presidente social-democrata havia lhe entregue uma economia com fundamentos sólidos, que serviu de base para o crescimento econômico e a redução da pobreza no governo anterior do petista. ´
Mesmo assim, Lula falou em "herança maldita". Fernando Henrique havia reagido à alta da inflação em 2002 com elevação dos juros básicos. "Desta vez Lula vai saber o que é, de fato, uma herança maldita", comenta o cientista político Carlos Melo, do Insper.
Ele observa que Jair Bolsonaro deixa problemas orçamentários e uma complicada relação com o Congresso.
Lula terá de negociar
"Na comparação com 2003, os desafios são imensos. Ele vai ter que recuperar o orçamento, e para isso, ele precisa construir uma relação diferente com o parlamento. Porque ele vai precisar aprovar leis, vai precisar de dinheiro, e para isso de apoio político no parlamento", diz Melo.
A direita, afinal, ampliou seus mandatos na eleição de 2022, o que torna as coisas mais difíceis para o PT. "As forças bolsonaristas e os partidos do chamado centrão são a maioria. Lula terá que negociar com eles", completa o cientista político.
Um ponto decisivo na relação de Lula com o Congresso será a maneira como o novo presidente vai lidar com as emendas de relator, que foram usadas no governo de Bolsonaro para destinar bilhões de reais em verbas do orçamento da União para bases eleitorais, em troca de apoio no Congresso.
Na campanha, Lula havia prometido o fim das emendas de relator, também conhecidas como orçamento secreto, mas elas acabaram viraram instrumento de barganha para o Congresso, na figura do seu presidente, Arthur Lira, um dos próceres do centrão.
Isso até o Supremo Tribunal Federal (STF) considerar o orçamento secreto inconstitucional, duas semanas antes da posse. Com isso, Lira perdeu um importante instrumento de pressão sobre Lula. Tudo indica que o presidente eleito terá de "acalmar" o centrão por outros meios, como postos no governo.
Não se pode esquecer que, em 2015, a então presidente Dilma Rousseff se envolveu numa luta de poder com o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o que abriu caminho para o impeachment. Assim, Melo diz que o melhor que Lula pode fazer é negociar com o legislativo.
Lula de 2023 não é o Lula de 2003
O ambiente político atual não é comparável ao de 2003, afirma o cientista político Marco Antonio Carvalho Teixeira, da Fundação Getúlio Vargas. "Também porque o resultado das urnas é outro."
Em 2002, Lula obteve mais de 61% dos votos; em outubro passado, apenas 50,9%. "Em 2002, Lula era quase um consenso, não havia a rejeição que há hoje."
Teixeira aponta para os escândalos de corrupção que atingiram Lula e que o colocaram na cadeia, por um ano e meio, em 2018. Apesar de as condenações terem sido anuladas, os casos mancharam a imagem que muitos brasileiros têm de Lula.
Mesmo semanas depois da eleição, apoiadores de Bolsonaro ainda protestavam em rodovias e acampamentos contra a vitória do petista, exigindo uma intervenção militar. "Com menos de 2%, o resultado é apertado, e agora há grupos que se opõem a ele. Ele precisa superar isso logo."
Para o especialista, a resposta correta de Lula seria a formação de um governo de unidade nacional, reunindo diversas correntes políticas. Essa parece mesmo ser a tendência. Se em 2003 o PT dominava o governo, desta vez Lula tenta também incluir forças da direita, como o partido União Brasil.
Resultados imediatos
Melo avalia que o silêncio de Bolsonaro após a eleição presidencial contribuiu para os protestos de tom golpista em todo o país. Tão logo o novo governo trocar os comandantes-gerais das Forças Armadas, as manifestações deverão arrefecer por conta própria.
Mesmo assim, Lula terá de mostrar resultados logo para diminuir a resistência ao seu terceiro governo. E isso não será fácil.
"O Brasil vice agora uma crise econômica que é maior que 2002",avalia Teixeira. É verdade que a situação macroeconômica melhorou nos últimos meses, mas isso se deve também a presentes eleitorais do governo Bolsonaro, como o Auxílio Brasil e o vale-gás.
Mas isso criou buracos tão grandes no orçamento que Lula vai precisar de uma autorização do Congresso para extrapolar o teto de gastos e para obter maioria para uma necessária reforma tributária, que já foi anunciada como prioridade pelo futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
O ex-presidente do Banco Central e ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles calcula que o rombo fiscal pode chegar a R$ 400 bilhões. "Se Lula não fizer uma boa costura política agora, ele corre o risco de enfrentar uma rejeição política muito forte, que já pode colocar o governo numa crise. Que é bem diferente de 2002", avalia Melo.
Ganhos no plano internacional
No cenário internacional, ao contrário, o novo governo poderá mostrar logo resultados, já que a herança de Bolsonaro em temas como meio ambiente e direitos humanos é muito ruim. "O legado internacional que o Bolsonaro deixou é muito ruim, nas grandes questões como mudanças climáticas e direitos humanos. Só a eleição de Lula já deu espaço", diz Teixeira. A visita do presidente eleito à COP27, no Egito, enviou um forte sinal, comenta.
Mas Melo avalia que haverá também desafios internos na questão ambiental. Na eleição presidencial, Lula perdeu em todos os locais da Amazônia onde o desmatamento é elevado.
Lula terá que agir contra a destruição e oferecer alternativas às pessoas que moram nessas áreas, para que a riqueza da floresta seja utilizada de forma sustentável.
Além disso, Lula terá que envolver nisso o setor agropecuário, que é muito importante para as exportações brasileiras.
"A imagem internacional do Brasil vai se dar sobretudo a partir da sua política ambiental. Se não houver o ambiental, esqueça todo o resto, esqueça a geopolítica. Não tem conversa em relação a isso, para recuperar a reputação internacional", afirma Melo.
Se Lula, porém, obtiver resultados imediatos, o Brasil poderá contar com investimentos externos em proteção ambiental e uso econômico sustentável.
Sem novo boom das commodities
Esses seriam importantes impulsos para o crescimento num cenário difícil, como o atual. Mas a fase de elevado crescimento da China, que impulsionou as exportações brasileiras nos primeiros dois governos de Lula, acabou.
Ao mesmo tempo, as importações de produtos baratos da China levaram a uma perigosa desindustrialização do Brasil. Teixeira avalia que o Brasil necessita urgentemente de uma nova política de incentivo à indústria.
"O Brasil vai ter que usar tecnologia e continuar apoiando setores inovativos, porque se não a gente vai virar um país só de produtor agrícola, e, sobretudo, importador de bens industriais. Uma política industrial é urgente", comenta. Evitar isso é urgente, diz.