A tentativa de se reeditarem eventos como a "Marcha da Família com Deus" tem chances "enormes" de levar o cidadão "a lugar algum". "Porque as pessoas não podem perder o tempo: ele passa à nossa frente e não volta." Quem afirma é a aposentada Maria Paula Caetano da Silva, 82 anos, fundadora da hoje extinta União Cívica Feminina. No dia 19 de março de 1964, o grupo se tornaria o principal organizador da passeata que levou à Praça da Sé, no centro de São Paulo, um contingente de cerca de meio milhão de pessoas, conforme as estimativas da época.
Para os historiadores, a marcha praticamente chancelou o golpe militar que, 11 dias depois, derrubaria o governo democraticamente eleito do presidente João Goulart para instauração de um regime militar que se estenderia até 1985. É como se a manifestação conferisse um verniz de apoio popular a uma ação que já era estudada por militares brasileiros ao menos desde 1963. Com uma pauta focada na suposta "ameaça comunista" que as reformas propostas por Goulart representariam, os manifestantes conseguiram aquela que até hoje é considerada um dos maiores atos populares da história do País.
Atos em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro prometem reeditar a marcha neste fim de semana. Para Maria Aparecida, eles fazem pouco ou nenhum sentido. Estudante de um colégio inglês na capital paulista, nas décadas de 1930 e 1940, ela considera que os propósitos, naquela época, eram muito diferentes.
"De 1939 para 1940, havia um painel na escola onde eu estudava com os alunos que haviam ido para a guerra servir o País. Sob os rostos de alguns, havia uma tarja preta (em sinal de que haviam morrido). Digo isso pelo seguinte: para dar sua vida a uma causa, você tem que ter uma consciência profunda e clara dos seus propósitos. Retomar aquela marcha de 64 ou a probabilidade de se pedir de novo o governo militar não leva as pessoas a lugar algum - eu pergunto a elas hoje: o que estão fazendo? Eu, por acaso, estava lá. Era uma dívida nossa com o Brasil."
A aposentada conta que a marcha foi organizada durante o mês de março. As reformas sugeridas por Jango, avaliou, não eram vistas como democráticas por setores da sociedade como o da União Cívica Feminina - que militava, segundo uma de suas fundadoras, em causas tão aparentemente distantes como a possibilidade iminente de uma reforma agrária ou o preço abusivo dos produtos nos mercadinhos de bairro. "Não havia supermercado naquela época, nem os Procons", disse.
"Tínhamos que ter uma proposta aberta a todas as crenças. No fim, o que seria um evento católico, abrangeu gente de várias religiões. Mas ali foi um momento de se se tomar uma posição, tanto que ocorreram marchas em Recife, Rio de Janeiro e Vitória. Queríamos abrir um grande debate, e isso nós fizemos. Claro que tivemos um regime de exceção na sequência, mas ele nada teve a ver com as ditaduras violentas sul-americanas como a do Chile, por exemplo", avalia.
Nascida de um movimento menos abrangente - o Movimento de Arregimentação Feminina, do qual participavam donas-de-casa paulistanas -, a União, define a aposentada, "era um pouco de tudo". "Tínhamos um grupo que lidava com temas de cidadania, economia doméstica, ação social, formação de trabalhadores, e nossas integrantes eram basicamente mulheres alfabetizadas - a grande parte, com ensino superior", recorda-se.
Não há espaço para governo militar, diz coronel
Coronel da Polícia Militar e ex-deputado federal, Jairo Paes de Lira, 60 anos, que se declara "conservador", estava prestes a completar 11 anos durante a marcha de 1964. Mesmo assim, garante: apoiou "enfática e entusiasticamente o movimento" porque "havia muito medo da imposição de uma ditadura comunista no Brasil".
"Queríamos afastar do Brasil o risco de um comunismo que poderia nos transformar em uma gigantesca Cuba e da qual todos nos arrependeríamos depois. Só que, diferente do que vejo nas propostas atuais de marchas, aquelas da década de 60 nunca aconteceram a título de se empossar um governo militar que se estendeu indevidamente", definiu.
Se há espaço para uma retomada de governos militares, como reivindica parte dos organizadores das marchas pela família atuais? "Entendo que precisamos de um despertar da consciência da nação para o perigoso momento político de um governo totalitário que poderá nos levar a uma situação similar à da Venezuela. Mas isso precisa ser feito através do voto, não pela intervenção militar. Entendemos que não há espaço nem condições políticas hoje para ser diferente", opinou Lira.
Para historiadores, marcha reuniu minoria conservadora
Para a professora de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP) Maria Aparecida de Aquino, a marcha de 50 anos atrás ajudou a deflagrar o golpe no dia 1º de abril. "Foi essa a relevância do ato, naquele momento, além de expressar a marca completa de um conservadorismo social que respondia ao desejo de certos grupos, mas não representativo da sociedade. A manifestação defendia conceitos como a propriedade - as quem esses valores interessavam? E a própria imprensa da época estava em uma campanha de difamação pública contra Goulart, assim como interesses internacionais - foi todo um conjunto que contribuiu para o golpe", classificou a estudiosa.
De acordo com a professora, apesar do contingente que marcou presença na marcha, ela representou "interesses de grupos minoritários". "Entre as mudanças então propostas pelo presidente estava regularizar a remessa de lucros de empresas multinacionais ao exterior. Uma legislação como essa afeta quem? A população de baixa renda? Absolutamente, não."
Professor de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Luiz Antonio Dias reforçou: apoio popular de massa não foi, em definitivo, traço da Marcha das Famílias. "Mesmo porque, havia pesquisas Ibope naquele ano mostrando que Goulart tinha ampla aprovação popular - na média, 72%. E mesmo entre os mais ricos, a aprovação dele estava acima dos 50%", afirmou.
"O que a marcha representou foi a parcela da população descontente com o governo e com a possibilidade de acirramento da questão econômica por conta de ações visando melhorias sociais. Fora toda a histeria comunista que havia por parte da imprensa e o fato de que os militares já vinham articulando no mínimo desde 1963 o golpe - apenas usaram a marcha como justificativa", concluiu.