A ação do presidente Jair Bolsonaro no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), interferindo na direção do órgão, será analisada pela Procuradoria-Geral da República. A oposição ao governo, criminalistas e magistrados enxergam nas declarações do presidente na reunião ministerial de 22 de abril a confissão do crime de advocacia administrativa.
A Procuradoria-Geral informou ontem que todos os trechos e condutas gravadas no vídeo da reunião serão alvo de análise do procurador-geral da República, Augusto Aras, e de sua equipe. Nas imagens, há relatos de interferências em diversos órgãos da administração pública, entre eles o Iphan.
"Eu fiz a cagada em escolher, não escolher uma pessoa que tivesse também outro perfil. É uma excelente pessoa que tá lá, tá? Mas tinha que ter um outro perfil também. O Iphan para qualquer obra do Brasil, como para a do Luciano Hang. Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô! Para a obra. O que que tem que fazer? Alguém do Iphan que resolva o assunto, né? E assim nós temos que proceder", disse Bolsonaro durante a reunião.
A diretora do Iphan, Kátia Bogéa, foi demitida da direção do órgão depois de o empresário Luciano Hang, amigo e doador da campanha eleitoral de Bolsonaro, reclamar no Twitter, em 7 de agosto de 2019, que o Iphan teria embargado a obra de uma loja sua. Em sua postagem, Hang disse: "Nossa obra em Rio Grande (RS) está parada porque encontraram fragmentos de pratos. Fomos obrigados pelo Iphan a contratar um arqueólogo. Queremos inaugurar a loja em novembro, mas como os burocratas no Brasil não têm pressa, me pergunto: quando teremos uma resposta do Iphan?" Na campanha eleitoral de 2018, Hang doou para sete políticos. Bolsonaro foi o único candidato presidencial para quem ele declarou ter dado dinheiro à Justiça Eleitoral.
O Estadão procurou Hang, Bolsonaro e Kátia, mas nenhum deles respondeu. Ao jornal Folha de S.Paulo, Katia disse ainda que foi alvo de reclamação do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que esteve em Salvador e se reuniu com construtores sobre a ação do Iphan.
O deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ) comparou a ação do presidente à do ex-ministro da Secretaria de Governo Geddel Vieira Lima, demitido depois de pressionar Calero, então ministro da Cultura de Michel Temer, a mudar parecer do Iphan para liberar a obra de um prédio em área tombada em Salvador. Geddel foi condenado por improbidade administrativa no caso. "É a mesma coisa. Essas ações sempre deixam rastro, ainda mais do presidente e seus filhos, que se sentem acima da lei e têm a certeza da impunidade", disse o deputado.
Calero vai apresentar nesta segunda-feira representação ao Ministério Público Federal para que a conduta dos envolvidos seja apurada. Ele acredita haver a prática de advocacia administrativa. A lei diz que isso ocorre ao se "patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário". O crime prevê pena de até um ano de prisão. A legislação afirma ainda que é missão do Iphan "preservar, proteger, fiscalizar, promover, estudar e pesquisar o patrimônio cultural brasileiro, na acepção do art. 216 da Constituição Federal".
O deputado já entrou com ação popular na 28.ª Vara Civil Federal do Rio para barrar a nomeação de Larissa Rodrigues Peixoto Dutra, uma amiga da família Bolsonaro, para a presidência do órgão. O juiz Adriano de Oliveira França deu 72 horas para que o ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, Larissa e a Advocacia-Geral da União (AGU) se manifestem.
"Atentar contra patrimônio arqueológico, que é propriedade da União, é crime federal", disse a desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Para ela, a conduta de Bolsonaro, em tese, seria advocacia administrativa, pois ele quer nomear para o cargo alguém cuja qualidade seria desobedecer à lei e tornar sem efeito a fiscalização do órgão.
Segundo o criminalista e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Celso Vilardi, a ação de Bolsonaro pode configurar advocacia administrativa, tendo em vista que, aparentemente, o presidente patrocinou interesse privado perante a administração pública. "Trata-se de crime de menor potencial ofensivo. Para se configurar o crime de corrupção, seria necessário comprovar que o presidente atrelou seu ato a uma vantagem ou promessa de vantagem."
Para o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, que chegou a ter 17 clientes na Lava Jato, a fala do presidente sobre a troca no Iphan dá indícios de advocacia administrativa, mas, para configurar crime de corrupção, seria necessária mais alguma prova de que a doação de campanha foi condicionada à ação administrativa. "Se efetivamente ele (Bolsonaro) mudou a gerência do órgão para favorecer o senhor da Havan, me parece que pode haver o crime de advocacia administrativa."