Às 4h30 do último dia 23, a agricultora Levânia Silva Cardoso, de 38 anos, se despediu do marido e do casal de filhos pequenos, pegou um facão, vestiu seu boné vermelho e foi se juntar ao grupo de 46 pessoas que, uma hora depois, cortaria com um golpe de machado o cadeado da porteira para ocupar a fazenda Santa Cruz do Kurata, em Mirante do Paranapanema, no Pontal que leva o mesmo nome, no extremo oeste do Estado de São Paulo. "Essa é a minha 10ª ocupação e, como sempre, o objetivo é ter o nosso pedaço de terra", disse, na quinta-feira, ao Estadão.
Foi também a 11ª invasão sofrida pela fazenda de uma família descendente de imigrantes japoneses - dez delas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A ação marcou a retomada das ocupações de terras no Brasil "depois de um longo período de quarentena produtiva contra a fome e trabalho de base frente à pandemia", como divulgou o MST. No entanto, desde o início do governo Bolsonaro, que na campanha havia pregado "receber os invasores de terras a bala", o número de ocupações já vinha caindo.
De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que monitora os conflitos agrários no País, após 143 ocupações em 2018, o número despencou para 43 em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro e ainda sem pandemia. Nos anos anteriores tinham sido 169 em 2017 e 194 em 2016. No ano passado, já com a pandemia, foram 29 ocupações. Neste ano, até o fim de setembro, aconteceram apenas duas - uma na Bahia, outra no Rio Grande do Norte. Passou em branco em 2021 até o 'abril vermelho', mês em que o MST faz ocupações por todo o País para lembrar o massacre de Eldorado dos Carajás (PA), onde 19 sem terra foram mortos em ação da Polícia Militar.
A retomada teve ocupações também na Bahia e no Rio Grande do Norte. Na Chapada Diamantina, oeste baiano, 40 famílias tomaram a fazenda Água Branca, no município de Ruy Barbosa. Já em terras potiguares, cerca de 100 famílias se instalaram à margem da rodovia RN-188, entre Jucurutu e Caicó, à frente da Empresa de Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Norte.
Novas ações vão acontecer em outros Estados, promete o MST, alegando que o avanço da vacinação contra a covid-19 já permite que as bases se organizem para lutar pela terra.
O movimento volta a se organizar para ocupar terras a um ano das eleições. Embora afirme que não se posiciona politicamente, a proximidade com o PT é evidente. O MST engrossou os principais protestos contra Bolsonaro em todo o País. No dia 16 de agosto, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, presidenciável em 2022, visitou, a convite, o assentamento Che Guevara, em Moreno, Região Metropolitana de Recife (PE). "Nossa pauta é autônoma e há 37 anos lutamos pela reforma agrária, mas não podemos ignorar a crise que afeta principalmente os brasileiros mais pobres, nem as 606 mil mortes pela pandemia. Também perdemos muitos companheiros", disse Ricardo Barbosa, liderança no Pontal do Paranapanema.
O movimento afirma ter 90 mil famílias acampadas, à espera de um lote, em todo o País. "A ocupação é uma ferramenta legítima de luta pela terra e cobramos do Estado agilidade na destinação de terras para assentamentos de Reforma Agrária, pois as famílias trabalhadoras sem terra são diretamente impactadas neste momento de crise e precisam da terra para ter uma forma de viver e de trabalhar", disse Aparecido Gomes Maia, dirigente do MST em São Paulo.
Palco de conflitos
Durante décadas, o Pontal do Paranapanema, região de grandes fazendas entre os rios Paraná e Paranapanema, onde São Paulo faz divisa com os Estados do Paraná e Mato Grosso do Sul, viveu um clima de tensão entre fazendeiros e sem terras. Desde 1994, quando se instalou na região, o MST protagonizou a luta pela terra em São Paulo.
Do outro lado, na defesa dos fazendeiros, estava o então presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Antonio Nabhan Garcia, hoje titular da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, do Ministério da Agricultura.
Inimigo do MST, Nabhan é o homem incumbido pelo presidente Jair Bolsonaro de resolver os conflitos pela terra no País. Sua família tem propriedades na região. "Estamos transformando uma reforma agrária que foi feita lá atrás de uma forma política e ideológica e inconsequente de uma realidade onde transformamos assentados em produtores e proprietários rurais", disse, sobre o programa de titulação dos assentamentos do governo.