Depois de confessarem centenas de subornos, indicarem quase 2000 suspeitos de recebimento de propinas e trazerem detalhes à Justiça sobre os esquemas, os irmãos Batista, donos da JBS, receberam em troca uma multa, somada a garantias de liberdade e imunidade pelo conjunto de crimes delatados no Brasil.
Agora, muitos se perguntam quais seriam as possíveis complicações para os dois com a Justiça dos Estados Unidos - país responsável por mais de 50% do lucro da JBS (o Brasil gera apenas 15%), onde Joesley Batista mantém um apartamento avaliado em quase R$ 100 milhões, na 5ª avenida, em Nova York.
Se cometidos em solo americano, os crimes de pagamento de propina a políticos e tentativas de obstrução de Justiça poderiam render aos donos da empresa até 20 anos de prisão nos EUA.
Mas, como os crimes ocorreram no Brasil, os irmãos gozam de relativa proteção em território americano.
Quem explica é o especialista em crimes do colarinho branco americano Jason Linder, que atuou, de 2007 até o início deste mês, como procurador federal especializado em fraudes internacionais no Departamento de Justiça americano.
Atual diretor de investigações globais anticorrupção do escritório Irell & Manella, Linder diz que o governo dos EUA só poderia investigar individualmente os dois brasileiros se eles tivessem cometido crimes em solo americano, ou se tivessem cargos na subsidiária da empresa nos EUA.
Nem Joesley, nem Wesley, entretanto, aparecem como diretores da chamada "JBS USA", braço americano da empresa. O único Batista na diretoria da JBS USA é Wesley Batista Filho - filho de Wesley, que começou como trainee na empresa em 2010 e hoje é presidente do setor de carne de boi nos EUA.
Assim, como não há provas ou delações de crimes corridos fora do Brasil, e nenhum dos dois Batistas em cargos nos EUA, a Justiça americana não tem poder de investigá-los.
"Os Estados Unidos só podem ter jurisdição se a JBS EUA estiver envolvida em conduta corrupta, ou se um cidadão dos EUA empregado pela JBS ou uma subsidiária estiver envolvido na conduta corrupta, ou ainda se alguém de outro país, como o Brasil, tiver vindo para os EUA e agiu de forma corrupta", diz o especialista.
Isso explica a pressa para o envio, no início da semana, de um comunicado da JBS americana a seus funcionários nos EUA, ressaltando que atos ilícitos foram cometidos apenas no Brasil - e não em suas sedes no exterior.
A JBS brasileira, por sua vez, também não pode ser investigada pelo Departamento de Justiça americano.
"Nos EUA, a JBS (brasileira) é registrada com um tipo de segurança conhecido como ADR Nível I, que não a qualifica como emissora de ações segundo as regras da FCPA", diz Linder. "Os EUA não têm jurisdição sobre a matriz brasileira."
'Pena branda'
Joesley e Wesley Batista confessaram suborno a mais de 1800 políticos, com valores em torno de R$ 600 milhões, para garantir interesses de suas empresas.
Ao se comprometerem a entregar outros envolvidos à Justiça, receberam da PGR garantia de que não serão mais denunciados, terão imunidade em processos antigos e poderão parcelar em 10 vezes as multas de R$ 110 milhões, aplicadas a cada um dos irmãos.
O acordo de delação já homologado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Edson Fachin e pode ser anulado se forem constatadas mentiras nos depoimentos e provas.
Na opinião de Linder, as consequências dos crimes confessados pelos irmãos Batista, donos da JBS, foram mais brandas que as de outros grandes casos recentes de corrupção, como os da Odebrecht e da Embraer.
"Em casos recentes, procuradores brasileiros pediram longas penas de prisão aos responsáveis pelos crimes, como a sentença de 19 anos imposta a Marcelo Odebrecht. Neste caso, os proprietários da JBS vão pagar uma multa substancial, mas parecem ter evitado o risco de encarceramento", disse o especialista à BBC Brasil nesta segunda-feira.
O ex-procurador foi um dos responsáveis pelo processo que resultou, em 2016, na confissão de culpa pela Embraer por subornos a políticos da República Dominicana, Arábia Saudita e Moçambique.
Graças ao processo que conduziu no Departamento de Justiça, a empresa brasileira concordou em pagar multa de US$ 107 milhões (aproximadamente R$ 350 milhões). O caso também gerou processos individuais contra mais de 13 pessoas.
Binder ressalta que a decisão da Procuradoria Geral da República de não pedir a prisão dos donos da JBS "pode resultar de uma ampla gama de fatores", como o tipo de evidências apresentadas e seu grau de cooperação com a Justiça.
No pedido de homologação do acordo, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, justificou os benefícios "em razão do ineditismo" e detalhes das situações narradas pelos delatores.
Um mistério envolve um possível acordo de leniência (espécie de delação premiada para empresas) que poderia estar sendo negociado entre a JBS e o Departamento de Justiça dos EUA (DoJ, na sigla em inglês).
Especula-se que a empresa teria omitido dados de investidores estrangeiros e não teria agido de forma transparente em seus relatórios e avisos ao mercado americano.
Procurado, o DoJ afirmou que não comentaria o caso. A JBS também se recusou a responder as perguntas da reportagem.
O especialista entrevistado pela BBC Brasil, que trabalhava até o mês passado no setor que negocia este tipo de acordo, disse "não saber nada" sobre o possível acordo.
Com 65 frigoríficos espalhados pelos EUA, a JBS é líder nas vendas de carne bovina, ovina e de frango no país e pretende expandir ainda mais sua atuação com um novo IPO (sigla em inglês para Oferta Pública Inicial de ações) bilionário na bolsa de valores de Nova York, previsto para o semestre que vem.
Mas o primeiro grande revés para a JBS nos Estados Unidos aconteceu nesta segunda-feira, quando a agência de classificação de risco Moody's rebaixou as notas de crédito da empresa no país e anunciou possíveis novas reduções nos próximos dias.
A redução da nota de crédito, entretanto, não deve afetar as possíveis investigações sobre a empresa no país.
"Na minha experiência, acho altamente improvável que a classificação de crédito de uma empresa influencie a decisão do Departamento de cobrá-la por alguma irregularidade, ou uma possível penalidade específica e outros termos de resolução criminal", disse o ex-promotor.
Questionado sobre possíveis reflexos do escândalo brasileiro no IPO da JBS nos Estados Unidos, o especialista diz preferir esperar.
"É muito cedo para prever qual seria o efeito, se houver."
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