BRASÍLIA - Deflagrada nesta sexta-feira, 20, a Operação Última Milha da Polícia Federal (PF) fez uma busca e apreensão na sede da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e prendeu dois servidores. De acordo com as investigações, a agência utilizou um sistema de espionagem israelense para monitorar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e adversários do governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL).
A ofensiva mira supostos crimes de organização criminosa, interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. O sistema utilizado pela Abin se chama FirstMile e é capaz de localizar, com facilidade, pessoas através de aparelhos celulares.
A ordem para deflagrar a operação foi expedida pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, que determinou ainda o afastamento de cinco servidores da Abin, entre eles, dois diretores atuais do órgão. Na casa de um deles, Paulo Maurício, a PF apreendeu US$ 171.800,00 em espécie durante as diligências cumpridas na manhã desta sexta-feira. Os policiais também cumprem 25 mandados de busca e apreensão nos estados de São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Goiás e no Distrito Federal.
O que é a Abin?
A Abin é o órgão principal do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e tem como função fornecer informações estratégicas ao Palácio do Planalto. Os informes são enviados ao Poder Executivo através de relatórios, com a finalidade de evitar possíveis ameaças ao Estado Democrático de Direito e à soberania nacional.
As atribuições da agência são produzir relatórios sobre ameaças como defesa das fronteiras nacionais, proliferação de armas de destruição em massa, políticas externas, segurança das comunicações governamentais, combate ao terrorismo e antiespionagem.
Até março deste ano, a Abin estava vinculada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Em uma estratégia da gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de desmilitarizar a agência, após o fracasso na antecipação e monitoramento das invasões do dia 8 de janeiro, a Abin foi transferida para a Casa Civil da Presidência da República, que é chefiada pelo ministro Rui Costa.
Quais são os alvos da operação?
Os dois servidores da Abin presos são Rodrigo Colli, que trabalha na área de Contrainteligência Cibernética da Agência, e Eduardo Arthur Yzycky, que exercia a função de oficial de inteligência. Ambos foram detidos no Distrito Federal.
Segundo os investigadores, os servidores teriam usado o "conhecimento sobre o uso indevido do sistema como meio de coerção indireta para evitar a demissão" em um processo administrativo disciplinar do qual eram alvos.
O filho do general da reserva e ex-ministro da Secretaria de Governo da Presidência da República de Jair Bolsonaro, Carlos Alberto Santos Cruz, foi um dos alvos de busca e apreensão feitos nesta sexta. Caio Cesar dos Santos Cruz é investigado pela PF por suspeitas de ter sido o representante da empresa criadora do sistema de espionagem na venda feita para a Abin. O Estadão tentou entrar em contato com o ex-ministro, mas não obteve retorno.
O que é o sistema FirstMile?
O sistema FirstMile é capaz de detectar um indivíduo com base na localização de aparelhos que usam as redes 2G, 3G e 4G. Para encontrar o alvo, basta digitar o número do seu contato telefônico no software e acompanhar em um mapa a última posição. Desenvolvido pela empresa israelense Cognyte (ex-Verint), o software se baseia em torres de telecomunicações instaladas em diferentes regiões para captar os dados de cada aparelho telefônico e, então, devolver o histórico de deslocamento do dono do celular.
O programa começou a operar na Abin em 26 de dezembro de 2018, no final do governo do ex-presidente Michel Temer (MDB). A aquisição custou R$ 5,7 milhões, pagos à empresa israelense Cognyte, de acordo com o Ministério Público Federal.
Segundo a PF, o grupo sob suspeita teria usado o sistema da Abin - um "software intrusivo na infraestrutura crítica de telefonia brasileira" - para rastrear celulares "reiteradas vezes". Os crimes teriam sido praticados sob o governo Jair Bolsonaro. À época, o órgão era comandado por Alexandre Ramagem, que hoje é deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro.
Quantas pessoas foram espionadas?
Segundo os investigadores da PF, a Abin fez 33 mil monitoramentos ilegais durante o governo Bolsonaro. Do total, 1.800 desses usos foram destinados à espionagem de políticos, jornalistas, advogados, ministros do STF e adversários do gestão do ex-presidente. As informações são do jornal O Globo. A lista inclui um homônimo do ministro do STF Alexandre de Moraes - o que, segundo os investigadores, reforça a desconfiança de que o ministro tenha sido alvo do esquema ilegal.
Para não deixar vestígios, a "gangue Abin de rastreamento", como os investigadores têm chamado os servidores, apagou dos computadores a grande maioria dos acessos, segundo a TV Globo.
O que disse a Abin?
Em nota após a operação, a Abin afirmou que a Corregedoria-Geral da agência concluiu, em 23 de fevereiro de 2023, uma Correição Extraordinária - uma apuração interna - para verificar a regularidade do uso de sistema de geolocalização adquirido pelo órgão em dezembro de 2018. A partir das conclusões dessa correição, foi instaurada sindicância investigativa no dia 21 de março. De acordo com o órgão, a ferramenta deixou de ser utilizada em maio de 2021.
"Desde então, as informações apuradas nessa sindicância interna vêm sendo repassadas pela Abin para os órgãos competentes, como Polícia Federal e Supremo Tribunal Federal. Todas as requisições da Polícia Federal e do Supremo Tribunal Federal foram integralmente atendidas pela Abin. A Agência colaborou com as autoridades competentes desde o início das apurações. A Abin vem cumprindo as decisões judiciais, incluindo as expedidas na manhã desta sexta-feira (20). Foram afastados cautelarmente os servidores investigados", disse.
Quem é Alexandre Ramagem?
Ex-delegado da Polícia Federal, Alexandre Ramagem Rodrigues era o diretor-geral da Abin durante o uso da ferramenta. Nas eleições de 2018, ele foi designado para cuidar da segurança do então presidenciável Jair Bolsonaro após o atentado à faca em Juiz de Fora, em 6 de setembro de 2018.
Com a posse de Bolsonaro, ele teve uma ascensão rápida no novo governo. Chegou a ser nomeado superintendente da PF no Ceará, em fevereiro de 2019, mas foi deslocado para um cargo de assessor especial do então ministro da general Santos Cruz. Em julho daquele ano, foi para a Abin.
Em 2020, Bolsonaro quis nomeá-lo diretor-geral da PF. O presidente queria ter, segundo o então ex-ministro Sérgio Moro, alguém com quem pudesse "interagir" e que lhe fornecesse relatórios de inteligência. A insistência do ex-presidente para a presença de Ramagem na PF motivou o pedido de demissão do ex-ministro, que se distanciou do ex-chefe do Executivo até a chegada das eleições presidenciais de 2022.
Durante a gestão de Ramagem na Abin, a agência de inteligência teria atrapalhado investigações envolvendo Jair Renan Bolsonaro, filho "04? de Bolsonaro. Um agente da PF admitiu que recebeu a orientação de "levantar informações sobre uma operação que tinha Jair Renan como alvo para prevenir 'riscos à imagem' de Bolsonaro". À época, a corporação afirmou que um relatório que Abin teve um papel de "interferência".
Em 2022, Ramagem se filiou ao PL, partido do ex-presidente, e foi eleito deputado federal com 59.170 votos. Na Câmara, ele é vice-líder da sigla e membro titular da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, além de ser cotado para representar o clã Bolsonaro na disputa pela Prefeitura do Rio de Janeiro nas eleições municipais de 2024. Ele financia, desde o início do ano dois nomes apontados como líderes do chamado "gabinete do ódio" - grupo investigado por produzir e disseminar desinformação e ataques às instituições durante o mandato do ex-chefe do Executivo.