Coerente com sua promessa de não buscar alianças políticas por meio da divisão de cargos na administração federal, o presidente Jair Bolsonaro completa cinco meses no cargo sem ter conseguido compor uma base no Congresso.
A recusa em montar um governo de coalizão, porém, tem gerado grandes dificuldades para o Planalto avançar suas propostas no Congresso, até com pautas menos controversas, como a medida provisória que enxugou o número de ministérios e será analisada nesta semana pelo Senado.
Nesse cenário, o Legislativo ganhou autonomia e passou a buscar uma agenda própria, movimento que foi batizado de "parlamentarismo informal" ou "parlamentarismo branco".
No parlamentarismo de fato, o comando do governo é exercido pelo primeiro-ministro, escolhido indiretamente pelos congressistas. Já no presidencialismo, sistema em vigor no Brasil, quem governa é o Presidente da República eleito diretamente pela população.
Analistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil questionam se o país realmente vive tamanho esvaziamento do poder presidencial que permita se falar numa espécie de "parlamentarismo informal". Eles veem um ganho de protagonismo do Congresso, que recentemente, por exemplo, passou a tocar por conta própria uma proposta de reforma tributária, à revelia de discussões sobre o mesmo tema que ocorrem no Ministério da Economia.
Apesar disso, ressaltam que, mesmo sem apoio da maioria dos congressistas, o presidente mantém importantes prerrogativas.
É a Presidência que controla, por exemplo, estatais com peso importante na economia brasileira, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES ), o Banco do Brasil, a Caixa e a Petrobras. Além disso, o Palácio do Planalto é quem define a composição do Conselho Monetário Nacional, que fixa a taxa básica de juros do país, além de milhares de cargos de confiança.
"Dizer que vamos partir para uma gambiarra de 'parlamentarismo branco' é um pouco simplista. O Executivo, mesmo com minoria no Congresso, tem controle de algumas variáveis muito importantes. Se houver essa tentativa (de parlamentarismo informal), vejo esse modelo híbrido gerando vários impasses", afirma o cientista político Carlos Melo, do Insper.
Mas, se o Congresso é incapaz de guiar o país à revelia do presidente, tampouco o Executivo poderá governar com êxito se não construir uma relação melhor com o Parlamento. Neste domingo, milhares de pessoas ocuparam as ruas em todos os Estados do país com ataques ao Congresso, em especial a Rodrigo Maia (presidente da Câmara) e o Centrão (bloco de partidos de centro e centro-direita).
Para o analista político Antônio Augusto de Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), o movimento não contribui para solucionar a crise de relacionamento entre os Poderes.
"O presidente encaminha propostas polêmicas e depois hostiliza o Congresso. Ninguém vai, sob pressão das ruas ou desqualificação, se comportar como subalterno do Executivo e chancelar tudo que vem de lá", afirma.
Por outro lado, ressalta Queiroz, mesmo que o Parlamento lidere as discussões da reforma tributária, a matéria demanda o engajamento do governo para negociar com Estados e municípios sobre como alterar o recolhimento e distribuição de tributos entre eles.
"O Congresso sozinho não tem força para tocar um tema desses", nota ele.
Limites para a liderança de Maia ou Alcolumbre
O cientista político Sérgio Praça, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), também não acredita na viabilidade de um parlamentarismo informal, sob a liderança dos presidentes da Câmara dos Deputados (Rodrigo Maia) e do Senado Federal (David Alcolumbre).
Ele considera que a única forma de se construir uma base majoritária no Congresso é compartilhando cargos. Segundo Praça, negociar esses espaços com as legendas não é em si uma prática de corrupção, embora seja comum que políticos usem a estrutura pública para roubar.
"Não existe parlamentarismo branco. Como o Rodrigo Maia convence o Centrão a fazer alguma coisa? A única instituição que tem poder de mudar opinião dos parlamentares é a Presidência, distribuindo os cargos de confiança. Bolsonaro pode escolher usar isso ou não", afirma.
"O fato de o Rodrigo Maia e o Centrão estarem aparentando poder agora não significa que eles tenham de fato poder institucional. Se o Bolsonaro decide nomear seis ministros, do DEM, PSDB, MDB, PP, PR, PSD, acaba com parlamentarismo branco em dez minutos", reforça.
O cientista político Sérgio Abranches, conhecido por ter cunhado a expressão "presidencialismo de coalizão" para classificar o sistema político brasileiro em vigor desde a redemocratização, também é cético sobre a possibilidade do Parlamento assumir a condução da agenda política.
Em artigo publicado em seu blog semana passada, sob o título "O mito do parlamento como agente principal no presidencialismo", Abranches ressalta que o presidente da Câmara é eleito para organizar e conduzir os trabalhos da Casa, não articular maioria para aprovar essa ou aquela pauta, como a polêmica Reforma da Previdência.
"O presidente da Câmara tem muito poder e influência, mas carece dos recursos e incentivos necessários para protagonizar decisões que dividem o Congresso e a sociedade. (...) Se colocar-se como o agente central desse processo, arrisca-se a sofrer o bloqueio de seus próprios pares e perder o comando do plenário", escreveu.
No artigo, Abranches cita ainda a grande fragmentação do Congressso - na Câmara, são 21 partidos - como outro obstáculo para um "parlamentarismo voluntarista".
"Como se espera que esse conjunto fracionado, dividido entre governistas, independentes e oposicionistas, exerça protagonismo na adoção de uma agenda para lá de controvertida?", questiona.
"A esperança vã de protagonismo do Legislativo apenas provocará frustrações e reações decepcionadas", conclui no texto.
Limites à atuação de Bolsonaro
Apesar do ceticismo quanto a um "parlamentarismo informal", analistas políticos acreditam que o Congresso tende a ganhar mais protagonismo e pode adotar medidas que limitem alguns poderes presidenciais.
Senadores da Rede, do PT e do Cidadania, por exemplo, apresentaram propostas de decreto legislativo para derrubar o polêmico decreto presidencial que flexibilizou acesso a armas e munições.
Outra discussão que corre nos bastidores do Congresso é limitar a capacidade do presidente de editar medidas provisórias (normas legais que entram em vigor imediatamente, mas dependem de aprovação do Congresso para manter validade).
"O próprio Rodrigo (Maia) está pilotando isso com o Centrão. Seria feito alterando a Constituição para restringir o escopo de uso das medidas provisórias, deixando para situações muito excepcionais", explica Queiroz.
Outra proposta de mudança constitucional que já está tramitando no Congresso prevê tornar obrigatória a execução das emendas apresentadas pelas bancadas estaduais e do Distrito Federal ao Orçamento da União. Hoje, apenas as emendas parlamentares individuais (recursos para investimentos públicos nas bases eleitorais dos congressistas) têm execução impositiva.
Parlamentarismo já foi rechaçado duas vezes
Uma espécie de parlamentarismo chegou a vigorar no Brasil de setembro de 1961 a janeiro de 1963, quando setores conservadores se opuseram à posse do vice-presidente João Goulart, após a renúncia do presidente Jânio Quadros.
No sistema adotado, Goulart indicava o primeiro-ministro, que precisava ter seu nome aprovado pelo Congresso. Houve três primeiros-ministros (Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima), mas na prática Goulart que detinha mais poder.
"As instituições políticas são mais duras do que pedra. O parlamentarismo brasileiro funcionou à moda do presidencialismo. Afinal, não se modifica em alguns meses ou anos quase um século de história", lembra um texto do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da FGV sobre esse período.
O presidencialismo voltou após a grande maioria da população rejeitar o parlamentarismo em um plebiscito no início de 1963. Nova consulta popular foi feita em 1993, logo após o impeachment do presidente Fernando Collor, mas novamente a maioria escolheu continuar votando diretamente para presidente.
Em meio à atual crise política, alguns senadores, como José Serra (PSDB-SP) e Tasso Jereissati (PSDB-CE), também tentam reavivar o debate sobre troca de sistema de governo, com a proposta de implementar a partir de 2022 algum modelo de parlamentarismo.
"Isso não é possível sem uma consulta popular", acredita Antônio Queiroz. "E a população não aceita, ela confia mais no Executivo do que no Legislativo", ressalta.
Veja também: