Protestos da oposição mostram que Bolsonaro não domina mais as ruas, dizem pesquisadores

Depois de alguns domingos de manifestações pró-governo, atos contrários a Bolsonaro com mensagens antifascistas e antirracistas aconteceram em diversas cidades brasileiras. Para analistas ouvidos pela reportagem, os atos mostraram que, "se houver embate, vai haver gente na rua defendendo a democracia". No entanto, isso não significa, segundo eles, que a oposição esteja coesa. Há uma série de divergências entre os grupos contrários ao governo, avaliam.

8 jun 2020 - 09h24
(atualizado às 09h32)

As manifestações contra o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), pela democracia e contra o fascismo e o racismo que ocorreram neste domingo (7/6) mostraram que o presidente "não é dono das ruas", avaliam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

Foto: BBC News Brasil

Grupos que apoiam o governo vêm fazendo desde março manifestações com pedidos pelo fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. O presidente costuma aparecer nos atos, sem repudiar suas mensagens antidemocráticas. Neste domingo, parte da oposição foi às ruas, apesar de a preocupação com o contágio do coronavírus e possíveis conflitos violentos terem dividido esses grupos contrários ao governo. Atos aconteceram em diversas cidades, sendo os maiores em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.

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Alguns opositores do governo argumentavam que confrontos entre manifestantes a favor e contra Bolsonaro poderiam ser usados como motivo para reações autoritárias da parte do governo. No entanto, os atos acontecerem sem grandes conflitos.

Para analistas ouvidos pela reportagem, os atos mostraram que, "se houver embate, vai haver gente na rua defendendo a democracia", nas palavras de Luciana Gross, professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.

"O ato foi tímido, seria maior se não fosse a pandemia", avalia Christian Lynch, professor de pensamento político brasileiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Surgiram nos últimos dias iniciativas suprapartidárias em defesa da democracia e contra Bolsonaro, como o movimento "Somos70porcento".

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No entanto, isso não significa, segundo eles, que essa oposição esteja coesa. Há uma série de divergências profundas entre os grupos contrários ao governo.

Convocados por movimentos de periferia, ativistas negros, integrantes de torcidas organizadas, estudantes secundaristas, grupos antifascistas e a frente Povo Sem Medo, os atos tiveram duas bandeiras principais: o antifascismo e o antirracismo, com o mote "Vidas Negras Importam", em reação ao assassinato de pessoas negras pela polícia nas periferias brasileiras.

Valter Silvério, professor do departamento de sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e especialista em relações raciais, diz que há uma extensa tradição de lutas do movimento negro que, devido a conjunturas específicas, ganham visibilidade, e é o que acontece neste momento. "As pessoas acham que é novidade, mas não é", resume.

O que ele vê como novidade é a emergência de grupos jovens que se articulam e que podem ter novo papel de liderança.

'Bolsonaro não é dono das ruas'

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Para Christian Lynch, da Uerj, Bolsonaro tenta criar a ilusão de que tem "o povo" do seu lado incentivando manifestações a seu favor e usando redes sociais. No entanto, isso vem caindo por terra, opina ele.

"Bolsonaro é um populista de ultradireita. Uma das pedras de toque é vender ilusão de que existe povo verdadeiro contra povo falso. Isso é comum tanto na extrema direita quanto na extrema esquerda. (Ele tenta passar a imagem de que) povo é quem está do lado dele. O resto, a oposição, não é povo. Mas o fato é que cada vez menos gente é arrebanhado pelo governo. A pandemia radicalizou seu grupo, mas unificou o outro lado. E daqui para frente ele vai perder a rua", projeta Lynch.

Isso acontece agora devido às ameaças à democracia e às instituições que o governo vem fazendo, avalia.

Além dos Somos70%, há o movimento Estamos Juntos, lançado no sábado (30) e o Basta!, lançado por advogados e juristas no domingo (31).

Luciana Gross, da FGV, avalia que os protestos foram parte de um esboço de uma reação da oposição. Nos últimos dias, diz ela, "foi possível ver o começo de uma movimentação de vários grupos diferentes entre si, mas que estão chegando no limite de tanto que o presidente ameaça a democracia e as instituições".

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Para ela, os protestos que acontecem há dias nos Estados Unidos, após a morte do segurança negro George Floyd por um policial branco, em Minneapolis, deram força a esse movimento no Brasil. "A movimentação antirracista nos EUA sinalizou um esgotamento da população frente a lideranças antidemocráticas, contra direitos humanos, autoritárias. Também se sentiu essa força aqui", diz a professora. Além disso, para ela, alguns governos estaduais e prefeituras já ensaiam uma flexibilização das regras de quarentena, o que motivou os manifestantes a irem à rua.

Ao contrário do que alguns previam, os atos foram pacíficos. "Todos os atores contribuíram para isso", avalia Gross. "Os movimentos pró-democracia cuidaram dos atos para que não aparecessem infiltrados e pediram responsabilidade para seus manifestantes. Apesar de não estar claro que polícia venha respeitando a hierarquia dos governadores, o governador de São Paulo passou uma orientação e teve uma atenção maior", diz ela.

A Polícia Militar de São Paulo foi criticada depois de manifestação contra o governo na semana passada por ter sido, segundo críticos, mais dura com aqueles que protestavam pela democracia do que com aqueles que se manifestavam a favor de Bolsonaro.

"E além disso, neste domingo o governo pediu para seus apoiadores não irem às ruas, apostando que haveria violência", lembra Gross. Na semana passada, o presidente pediu que seus apoiadores não participem de atos. "Quem luta pela democracia, quer o governo funcionando, quer um Brasil melhor e preza pela sua liberdade, a gente pede que não compareça às ruas nestes dias para que nós possamos, a Força de Segurança, não só estaduais, como a nossa federal, faça seu devido trabalho caso esses marginais extrapolem os limites da lei", disse, em referência a manifestantes contrários ao seu governo.

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"Foi um primeiro movimento e pode ser uma gestação para quando acabar o confinamento. É uma primeira articulação da oposição que começou a se organizar. E mostrou que a rua não é do governo. Se houver embate, vai ter bastante gente defendendo a democracia. Não é que não existisse, estavam cumprindo as regras de isolamento", diz.

Limites da união

Gross acha que é cedo para analisar possíveis consequências dos atos para a oposição e formação de uma frente contra Bolsonaro. No entanto, ela vê possíveis divergências entre os grupos que estavam presentes nos atos hoje e entre aqueles que ensaiam uma frente de oposição mais ampla. "Esse movimento está represado pelo confinamento e por falta de projeto comum", diz ela.

A mobilização deste domingo ganhou força depois que integrantes de torcidas organizadas compareceram à avenida Paulista, em São Paulo, no fim de semana anterior, para protestar em favor da democracia e contra posicionamentos autoritários de Bolsonaro e de parte dos seus apoiadores.

"(As torcidas organizadas tomara a frente) justamente porque a oposição está desorganizada", diz ela. "Nossas instituições estão em frangalhos desde o começo da Lava-Jato, os partidos estão desorganizados, há um discurso de que política é igual a corrupção. Temos um longo caminho de recuperação."

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"Hoje vimos nas ruas de São Paulo três grupos: torcidas organizadas, grupos antirracismo, que deve crescer, e um terceiro em torno de Guilherme Boulos (líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto). Apesar de estarem ocupando um mesmo espaço, também têm suas próprias pautas, não se juntam necessariamente num mesmo projeto, sem falar naqueles que não foram à rua, como (os movimentos) Juntos, Basta e 70%, que aglomeram setores diferentes da população. É um movimento anti-Bolsonaro, antifascismo e nesse sentido coeso, mas não tem projeto único, e isso é importante", opina ela.

Nessa mesma linha, Lynch, da Uerj, vê a formação de uma frente contra Bolsonaro como uma "coalizão negativa". "Uma coalizão positiva é quando as pessoas se juntam por querer algo em comum. A negativa é quando se juntam para rejeitar. O interesse em comum de todos é se livrar de Bolsonaro", diz ele.

A dificuldade de reunir lideranças de diferentes correntes ideológicas em uma frente ampla contra o governo Bolsonaro ficou clara esta semana também na tentativa de ampliar apoios a manifestos pela democracia.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, principal liderança do PT e da esquerda brasileira, se recusou a assinar o manifesto do Movimento Estamos Juntos, que teve o apoio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), do governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT), do ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung (MDB), entre outras lideranças políticas e também da classe artística e intelectual.

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Segundo Lula, o texto "tem pouca coisa de interesse da classe trabalhadora".

"Tem muita gente de bem que assinou. E tem muita gente que é responsável pelo Bolsonaro. O PT tem que discutir com muita profundidade, para a gente não entrar numa coisa em que outra vez a elite sai por cima da carne seca, e o povo trabalhador não sai na fotografia", criticou ainda, o ex-presidente.

Racismo

Todas as manifestações tiveram a presença forte de movimentos contra o racismo.

No Rio de Janeiro, este foi o segundo domingo de protesto após a morte de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, em sua casa, em uma favela de São Gonçalo (RJ), durante uma operação policial.

O sociólogo Valter Silvério, especialista em relações raciais da UFSCar, avalia que este momento pode inaugurar uma nova fase de visibilidade do movimento negro no Brasil.

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"A sociedade vem falando de criar uma frente de 'defesa da democracia' de uma forma abstrata. Ninguém é contra fazer uma frente. No entanto, ela não se faz em abstrato, mas a partir de questões concretas. Uma questão que existe no Brasil e que nunca foi compreendida pela esquerda, pelo menos não de forma adequada, é a questão racial. Ela foi acionada nos momentos de democratização do país, mas sempre foi secundarizada no momento em que passam as eleições. O que está sendo colocado agora é que a juventude tem uma informação das gerações passadas das armadilhas colocadas nesses discursos."

Para Silvério, uma potencial novidade no campo político é que "haja uma composição do ponto de vista prático a partir de grupos que nunca foram considerados como agentes de potencial político de organizar politicamente a sociedade brasileira".

Lynch, da Uerj, acredita que circunstâncias recentes deram urgência ao tema do racismo. "O governo Bolsonaro é ofensivo ao combate à discriminação racial. Isso se vê pelo que ele fez com a Fundação Palmares."

Bolsonaro nomeou para presidir a fundação Sérgio Camargo, que minimiza o racismo no Brasil. Nesta semana emergiu a informação de que Camargo chamou movimento negro de 'escória maldita'.

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"Isso já sinaliza essa oposição. Mas coincidiu essa política com protestos nos EUA que são anti-Trump e antirracismo e com a morte do menino Miguel. As circunstâncias deram à pauta antirracista uma visibilidade maior. Mas não é só ela que é ridicularizada pelo governo federal. Tem muito mais fregueses aí para engordar essa frente contra o bolsonarismo."

*colaborou Mariana Schreiber

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