Em seu último dia no cargo, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, anunciou nesta terça-feira (17/09) que apresentou uma denúncia criminal contra o conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ), Domingos Brazão, e outras quatro pessoas. Todos são acusados de atuar para obstruir as investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco. O anúncio foi feito durante uma coletiva de imprensa.
Dodge ainda disse que pediu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a abertura de um inquérito federal para apurar quem foi o mandate do crime. A PGR suspeita que Brazão tenha encomendado os assassinatos de Marielle e do motorista Anderson Gomes em 2018. Além disso, Dodge solicitou a federalização das investigações sobre a encomenda do crime que já estão em andamento no Rio, o que pode tirar o caso da Polícia Civil e transferi-lo em definitivo para a Polícia Federal.
Caso o pedido de federalização seja aceito pelo STJ, também caberá à Justiça Federal, e não mais ao Judiciário local, o julgamento do caso.
Segundo a denúncia apresentada por Dodge, o conselheiro afastado Domingos Brazão, se aliou a um dos funcionários de seu gabinete, Gilberto Ribeiro da Costa, ao PM Rodrigo Ferreira, à advogada Camila Nogueira e ao delegado da Polícia Federal Hélio Khristian para atrapalhar as investigações do crime.
De acordo com a PGR, Brazão, com a ajuda dos quatro suspeitos teria plantado um testemunha falsa no caso, o PM Rodrigo Ferreira, suspeito de integrar uma milícia. Nessa versão, Ferreira procurou a PF e foi ouvido pelo delegado Khristian, que seria ligado a Brazão. Camila Nogueira, por sua vez, atuou como advogada de Ferreira.
No depoimento chancelado pelo delegado, Ferreira apontou como mandante do crime seu chefe, o miliciano Orlando Curicica e o vereador Marcello Siciliano (PHS-RJ), membros de um grupo político rival de Brazão. A acusação viria a se revelar falsa, mas acabou consumindo esforços da Polícia Civil e, segundo a PGR, tirando o foco dos verdadeiros mandantes.
A PGR também apontou a suspeita de que o conselheiro Brazão seja ligado ao grupo miliciano conhecido como Escritório do Crime, um grupo de assassinos de aluguel. Ronnie Lessa, o ex-PM preso em março por suspeita de ter executado Marielle e Anderson, já teria atuado como integrante do grupo.
Em julho, o portal UOL revelou que interceptações telefônicas mostraram integrantes do Escritório, que controlam a região de Rio das Pedras, entrando em contado com membros da família Brazão. Além do conselheiro afastado, o clã político ainda inclui um deputado estadual do Rio, Manoel Inácio (PR) e um deputado federal, Chiquinho (Avante) - irmãos de Domingos Brazão.
"O modo como foram engendrados depoimentos que conduziram a Polícia Civil, a um certo tempo, a indicar que os autores eram pessoas que não tinham participado da atuação. O inquérito inicial apontou para receptores que não eram os verdadeiros. Estou pedindo o deslocamento de competência para que haja uma investigação para se chegar aos mandantes", disse Dodge nos pedidos apresentados ao STJ.
Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram assassinados em 14 de março de 2018, no centro do Rio de Janeiro. Duas pessoas foram presas suspeitas de executarem o crime: o PM reformado Ronnie Lessa, que teria efetuado os disparos, e o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, que dirigiu o carro de onde partiram os tiros. Uma assessora da vereadora que também estava no veículo sobreviveu ao atentado.
MP do Rio critica pedido de federalização
O Ministério Público do Rio (MP-RJ) criticou duramente em nota a iniciativa de Raquel Dodge. A instituição afirmou que a procuradora está obstinada em federalizar o processo e defendeu que a investigação permaneça sob esfera estadual. Afirmou ainda que os acusados de obstruir a investigação também devem ser processados pela Justiça estadual.
"O MP-RJ lamenta a distribuição do Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) de parte das investigações (...). O pedido de federalização refere-se à identificação dos mandantes dos crimes e foi apresentado hoje, dia 17 de setembro, pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, nos minutos finais de seu último dia de mandato. Trata-se de atitude reincidente, uma vez que tentativa semelhante foi executada no ano passado, menos de 24 horas após as execuções, numa demonstração clara da obstinação de Raquel Dodge em federalizar o processo de investigação", afirma a nota da instituição fluminense.
Segundo o MP-RJ, a competência só pode ser deslocada para a Justiça Federal quando "demonstrada a ineficiência dos órgãos estaduais, provocada por inércia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais ou materiais para levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal". "Fatos jamais verificados ao longo de todo o processo investigatório", diz o MP no texto.
A Procuradoria de Justiça do Rio lembra no texto que em 3 de abril de 2018, "quando da primeira tentativa de federalização por meio da PGR, o MP-RJ ingressou com reclamação para preservação da autonomia junto ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)".
Na ocasião, obteve liminar contra o pedido de Raquel Dodge e determinando que os procuradores da República designados se abstivessem da prática de quaisquer atos não adstritos as suas atribuições legais e constitucionais, "preservando assim a integral autonomia do MP-RJ na investigação", diz a nota.
O MP-RJ relembra também que Ronnie Lessa e Elcio de Queiroz respondem a processo pelos homicídios de Marielle e do motorista Anderson Gomes. Destaca ainda que Rodrigo Ferreira e Camila Nogueira, que teriam tentado atrapalhar as investigações, já foram denunciados pelo crime de obstrução de Justiça.
"Uma terceira denúncia já foi ofertada, em face de quatro pessoas, por novo crime de obstrução da Justiça, estando no aguardo de decisão judicial", diz o MP-RJ na nota. "Encontra-se ainda em curso outra investigação para apurar a participação de outros envolvidos nas mortes da vereadora e de seu motorista."
Freixo vê decisão como 'estranha'
O deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), de quem Marielle foi assessora antes de se eleger vereadora, classificou como "estranha" a decisão da procuradora-geral da República.
"Acho estranho que, depois de um ano e meio do crime, no último dia da procuradora no cargo, ela tomar essa atitude", criticou. "Esse caso é muito emblemático e mereceria da procuradora algo menos açodado, feito com a responsabilidade que o caso merece. Não estou dizendo que a pessoa acusada por ela é ou não culpada, é ou não inocente. Se alguma prova leva ao ex-deputado (Brazão), que essa prova seja apresentada e que ele responda", disse.
Freixo disse ser estranho que "no último dia, sem que ela (Raquel Dodge) possa dar sequência", tomasse a decisão.
"Ela fez isso baseada nas investigações da Polícia Federal? Em quais? Isso precisa ficar mais claro. Não se toma uma decisão dessas no último dia (da gestão) sem que fique claro quais são as circunstâncias que levam a essa conclusão. Isso pode atrapalhar mais do que ajudar", concluiu. / Com informações do Estadão Conteúdo