Em meio a uma recessão que pode se tornar a mais duradoura da história do Brasil, a Câmara aprovou nesta quinta - com apoio do governo interino de Michel Temer - um megapacote de reajuste para o funcionalismo federal.
Dezesseis categorias de servidores do Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público terão aumento de 21,3%, a ser pago nos próximos quatro anos. O custo aos cofres públicos está estimado em cerca de R$ 60 bilhões até 2019.
A mudança de maior impacto é no salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que delimita o teto do funcionalismo público. Os rendimentos dos integrantes da mais alta corte do país vão passar de R$ 33.763 para R$ 39.293.
Diante da pressão por um ajuste fiscal para reorganizar as contas públicas, que, segundo o governo, deverão fechar 2016 com um rombo recorde de R$ 170 bilhões, como justificar a aprovação desse pacote?
De um lado, alguns economistas e cientistas políticos ouvidos pela BBC Brasil avaliam que o aumento foi uma "jogada política" do governo interino para evitar constrangimentos - como greves - enquanto ganha tempo para tentar retomar o crescimento da economia.
De outro, o reajuste passa um "péssimo sinal" aos mercados e à população por coincidir com o momento de crise - e provavelmente terá de ser custeado com mais inflação ou mais impostos.
"No momento que está ruim para todo mundo vamos gastar mais? Não tem sentido. De onde sai esse dinheiro? Ou de mais inflação ou de mais impostos - o momento é inoportuno", , que já atuou em instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
"No momento em que você exige que sociedade faça um aperto, que você tem 11 milhões de desempregados, em que os salários reais (já descontada a inflação) caíram nos últimos 12 meses e só quem teve aumento real foi o funcionalismo público, você vai aumentar ainda mais justamente aí?", acrescenta o especialista.
"É como uma casa em que todos estão controlando gastos, apertando o cinto. E de repente vem alguém jogando dinheiro pela janela. A sinalização dessa aprovação é muito ruim."
Embora concorde sobre o cálculo político do anúncio, Luiz Gonzaga Beluzzo, professor de economia da Unicamp, diz que a opção pelo reajuste demonstra "a fragilidade do governo diante das pressões do Congresso".
"O anúncio acaba por confirmar a extrema dependência (de Temer) do Congresso. Além disso, mostra que o preço do arrocho fiscal vai ser pago pelas camadas mais pobres da sociedade", critica.
'Evitar greves'
A estratégia do governo ao acatar o reajuste inclui evitar lidar com uma paralisação geral de servidores, o que levaria a um ônus político ainda maior, opinam analistas.
O ministro do Planejamento, Dyogo Henrique de Oliveira, afirmou nesta quinta-feira que os reajustes evitarão "uma crise de funcionamento do serviço público".
Em entrevista convocada para comentar o aumento, o ministro Eliseu Padilha (Casa Civil) afirmou que os valores estão enquadrados no teto de crescimento dos gastos e, com isso, alinhados com o ajuste fiscal.
Ele também lembrou, assim como alguns especialistas consultados pela BBC Brasil, que a medida estava prevista no Orçamento deste ano, tendo sido discutida e acordada com lideranças sindicais pelo governo anterior.
Sendo assim, ao aprová-lo, Temer e sua equipe também se esquivam de possíveis críticas que receberiam de apoiadores da presidente afastada Dilma Rousseff.
Mas a aposta é arriscada, sobretudo perante a opinião pública.
"Foi uma estratégia de pragmatismo político. Temer já perdeu a batalha da opinião pública. Imagine o ônus político de ter de lidar com uma paralisação geral no setor público neste momento", diz João Augusto de Castro Neves, diretor de América Latina da consultoria Eurasia, nos Estados Unidos.
"Está claro que o objetivo de Temer de curto e médio prazo é ganhar tempo para restaurar a credibilidade econômica e sinalizar que o governo está trabalhando intensamente com o Congresso. Vencendo isso, ele consegue recuperar a batalha da opinião pública", acrescenta.
Analista de contas públicas da consultoria Tendências, Fabio Klein opina que o veto a um reajuste teria um custo político "muito maior".
"Temer herdou essa situação do governo Dilma. E, diante disso, tinha poucas alternativas. Ou comprava a briga com o funcionalismo público, correndo o risco de enfrentar uma greve geral, ou concedia o reajuste. Acabou optando pela via mais estratégica", afirma.
"Mas vai ter de explicar por que tomou essa decisão à população, que, ao fim e ao cabo, vai sofrer os efeitos negativos do ajuste fiscal", acrescenta Klein, acrescentando que esse ônus seria amenizado se a economia começar a mostrar sinais mais positivos.
Manobras adicionais
Para o professor de economia da FGV-SP Rogério Mori, o governo interino ainda está analisando as contas públicas e deve buscar outros meios para criar espaço fiscal.
"A decisão foi pelo não confronto. O governo ainda está analisando as contas públicas e deve fazer cortes em outras áreas", avalia. "Acredito que, dado o grau de desajuste o governo anterior, exista muita gordura para cortar sem que o sacrifício político seja tão alto."
Segundo Klein, da Tendências, pesa a favor de Temer o fato de que as despesas com os salários dos servidores federais vêm apresentando uma queda real (variação menor do que a inflação).
O reajuste (21%) deverá ficar abaixo da inflação total prevista para o período de quatro anos (22%) em que será colocado em vigor, lembra.
Dados do Ministério do Planejamento indicam que os gastos com pessoal caíram 3% de janeiro a abril deste ano.
"Fora os investimentos, de todas as despesas do governo central, os gastos com os salários dos servidores federais (Executivo, Legislativo e Judiciário, exceto Petrobras e Eletrobras) foram os únicos que apresentaram variação negativa real", explica.
Já de acordo com Fernando Augusto Mansor de Mattos, professor de economia da UFF (Universidade Federal Fluminense), o emprego público no Brasil tem baixo peso na comparação com países com renda semelhante à brasileira, oscilando em torno de 10% do total de empregados na última década.
Dados de 2008 da Cepal (Comissão Econômica para América Latina e o Caribe) mostravam, por exemplo, que entre 16 países selecionados, em sete (Argentina, Costa Rica, Panamá, Paraguai, República Dominicana, Uruguai e Venezuela) o peso do emprego público no mercado de trabalho nacional era maior que no Brasil.
E mesmo na comparação com países ricos, Mansor de Mattos disse também ter comprovado o que classifica como "falácia do gigantismo ou inchaço do Estado brasileiro".
"O Brasil não gasta muito com funcionalismo. O problema do país é a desigualdade. Na média, o salário do servidor público é baixo, mas você tem carreiras, como a do Judiciário, com salários astronômicos e muito poder de barganha", afirmou.
Consequências
Os especialistas concordam, contudo, que o momento não é ideal para expandir os gastos com o funcionalismo público.
Para Mansor de Mattos, a aprovação do reajuste pela Câmara expôs a contradição no discurso de austeridade do presidente interino.
"O governo Temer faz discurso de austeridade mas não está fazendo - não haverá, por exemplo, austeridade no Judiciário."
Klein, da Tendências, diz que além da "resistência natural da opinião pública", o governo Temer terá de lidar ainda com a pressão de governos estaduais para flexibilizar o pagamento da dívida com a União.
"Fica agora mais difícil exigir que os Estados congelem o reajuste dos servidores ou deixem de contratá-los. O alívio de curto prazo nas dívidas estaduais havia sido uma contrapartida do governo anterior ao congelamento dos gastos com a folha de pagamento dentro do atual contexto de ajuste fiscal", conclui.
Colaboraram Thiago Guimarães e Néli Pereira, da BBC Brasil em Londres e em São Paulo