A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou, nesta terça-feira, a admissibilidade da proposta de emenda à Constituição que reduz de 18 para 16 anos a maioridade penal no Brasil, a PEC 171. O debate é antigo (foi proposto em 1993), mas, ao que tudo indica, ainda está longe de acabar. Antes mesmo das próximas etapas da tramitação, o PT, partido que é contrário à mudança ao lado de Psol, PPS, PSB e PCdoB, deve ir ao Supremo Tribunal Federal (STF) alegando inconstitucionalidade para tentar interrompê-la. Traduzindo: deputados e militantes contrários e favoráveis à causa devem continuar com os ânimos exaltados.
Para te ajudar a entender a questão e o porquê da sua complexidade, o Terra conversou com dois especialistas da área e selecionou argumentos convincentes, no campo jurídico, de ambos os lados: os advogados André Ramos Tavares e Fabrício Juliano Mendes Medeiros, que participaram, na semana passada, de uma tumultuada audiência pública no Congresso que teve que ser encerrada devido a desentendimentos entre os parlamentares presentes.
Admissibilidade e comoção nacional
O que foi votado na última sessão da CCJ foi a admissibilidade da proposta, ou seja, se há ou não requisitos constitucionais para mudar um artigo da Constituição - no caso, o 228, que determina a maioridade em 18 anos. Para Tavares, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a resposta é negativa. De acordo com ele, a PEC não poderia nem mesmo ser colocada em pauta na Câmara.
"Estamos tratando de direitos fundamentais e prioritários. A Constituição usa essa linguagem direta para mostrar que lidar com crianças e adolescentes é algo delicado que precisa de tratamento diferenciado. Agora, o Congresso quer 'desdiferenciar'. Quer alterar isso, sendo que a própria Constituição diz, no artigo 60, que algumas cláusulas, chamadas de cláusulas pétreas, não podem ser retiradas - incluindo justamente a que estabelece as garantias individuais”, disse.
“Essas cláusulas existem porque a sociedade, em momentos de comoção, pode ter a intenção imediatista de criar leis radicais e suprimir direitos. A Constituição, então, põe a salvo algumas determinações para que sua força não dependa dessas circunstâncias passageiras e para evitar decisões que não são refletidas. Por isso a discussão sobre a redução não tem espaço. Mesmo com aprovação do Congresso, o STF pode - e deve - declarar a inconstitucionalidade da emenda”, completou.
Medeiros, docente do UniCEUB (Centro Universitário de Brasília), discorda. O especialista acredita que a mudança não fere a Constituição e que, do ponto de vista jurídico, pode, sim, haver a redução. "Essa é uma questão que envolve sociologia, antropologia, psicologia, política criminal. A minha questão é somente jurídica. E do ponto de vista jurídico pode haver redução da maioridade penal. O artigo 228 da Constituição, que trata desse limite, embora seja cláusula pétrea, não veda de maneira definitiva uma alteração razoável dessa limitação de idade. Não é por ser cláusula pétrea que ele impede toda e qualquer alteração de uma garantia prevista", afirmou.
O inconstitucional, para ele, seria a diminuição total para 14, 12, 10 anos ou menos. Nesses casos, a fase da infância e da adolescência do infrator seria completamente anulada, queimando uma importante etapa do desenvolvimento do jovem. "Do contrário, o núcleo essencial da garantia continua preservado. O que acontece é apenas um pequeno ajuste no critério da idade".
Medidas socioeducativas x prisões
Os críticos da redução da maioridade penal costumam dizer que colocar jovens em internações punitivas e repletas de falhas, como as cadeias de sistema prisional brasileiro, não ajudaria a resolver o problema da criminalidade. Tavares é um deles.
"O artigo 227 da Constituição estabelece como absoluta prioridade que o Estado proteja crianças e adolescentes. O artigo 228 diz que menores de 18 anos são inimputáveis para a legislação penal e estão sujeitos a uma legislação especial, que determina medidas socioeducativas para as infrações. Existe um estatuto que tipifica essas condutas inadequadas e suas sanções, sendo que a mais extrema é a internação em estabelecimentos que não podem ser punitivos, não podem visar apenas a privação de liberdade. Sabemos que não são todos que são adequados, que existem diversas crises nesse sistema, mas essa é outra discussão", contou.
Medeiros acredita que as coisas, aqui, devem ser separadas. Ele reconhece que parte das casas de internação cumpre seus objetivos e parte não cumpre, mas pontua que nada disso interfere na discussão acerca da admissibilidade e das cláusulas pétreas.
"Isso é uma questão de política criminal. Me parece que as instituições socioeducativas têm cumprido relativamente a sua função, mas isso não é obstáculo para que o legislador constituinte, se assim desejar, dê tratamento mais rígido à sistemática. Respostas positivas aqui e acolá não vedam ao legislador a possibilidade de enrijecer mais o tratamento da matéria. Lógico que apenas isso não resolve. É preciso que ele se conscientize de que é necessário que o Estado mantenha políticas públicas de apoio e fomento para que os jovens não caiam no crime. Mas, paralelamente, nada impede que possa enrijecer o tratamento desse grupo de 16 a 18 anos", declarou.
Mesmo assim, o advogado ressaltou que, caso a medida seja, de fato, aprovada e comece a ser aplicada, deverá seguir uma série de regras essenciais. Como a Constituição determina no artigo 5, por exemplo, os presos sempre devem ser separados nos estabelecimentos prisionais por sexo, gravidade do delito cometido e idade. Os jovens, portanto, jamais poderão ser colocados no mesmo espaço que adultos que passaram uma vida inteira no crime.
"Sei que seria complicado. A superlotação das cadeias é um problema grave que tem sido negligenciado pela União, mas não pode ser tratada como obstáculo a uma alteração do marco constitucional. Se levarmos isso a ferro e fogo, ninguém mais vai ser recolhido. Esse debate é no campo sociológico, não técnico", argumentou.
Enfim, diminuiria ou não a violência?
A questão principal da discussão, em termos políticos e sociais, diz respeito à efetividade da mudança. A redução da maioridade penal no País, enfim, ajudaria a diminuir a violência ou acabaria por aumentá-la? Nesse ponto, pelo menos, os dois especialistas concordam: sozinha, a medida não teria benefício algum.
"Do ponto de vista da admissibilidade da PEC, estou absolutamente convencido de que não é cláusula pétrea. Em relação ao mérito, porém, ainda tenho algumas dúvidas. Minha convicção pessoal é de que a sociedade pede uma resposta imediata, que é essa redução, mas ela sozinha não resolve problema. É preciso que efetivamente o Estado faça sua parte evitando que o jovem caia na criminalidade. No entanto, se cair, ele vai ter que responder, em vista do seu desenvolvimento, como um adulto, pois já tem condições de ser encarado dessa maneira", disse Medeiros.
“Já ouvi o argumento de que essa é uma 'mudança que protege vida'. Que ao mandar menores que cometeram homicídios para a cadeia estaremos protegendo vidas. Eu colocaria o debate em outros termos. É a Constituição que protege a vida expressamente e vida não é só sobreviver, mas também ter condições para evoluir. Adolescentes são pessoas em situação de vulnerabilidade que estão em processo de desenvolvimento físico, psicológico e mental. Protegê-los, sim, é proteger a vida. Aqueles que praticam atos graves contra outros merecem passar por medidas de internação e ter condições de recuperação. Se o menor em questão for 'irrecuperável', como alguns pensam, vai ingressar no sistema penal propriamente dito assim que completar 18 anos. É a escolha que a sociedade fez ao criar nossa Constituição", rebateu Tavares.
Daqui para frente
Uma aprovação da PEC 171 teria consequências negativas a curto e longo prazo para a sociedade brasileira, de acordo com Tavares. Para ele, o sistema econômico-social do País, que possui problemas primários e grande número de cidadãos vivendo em condições precárias, caminharia ainda mais rumo ao subdesenvolvimento.
"Uma sociedade que não se preocupa com adolescentes e não adota medidas especiais para acompanhá-los é uma sociedade que condena pessoas desde cedo a não terem possibilidade de vida. As consequências negativas são ainda mais fortes em economias periféricas como a nossa, que ainda não oferece o mínimo a todos. Penalizá-los é, em muitos casos, tratar não a causa das eventuais criminalidades, mas as consequências de um modelo econômico-social que é pouco desenvolvido. É retroalimentar um sistema que já é perverso, que não oferece direitos declarados, que tira vidas desde cedo", afirmou.
Medeiros não sabe dizer o que exatamente mudaria com a redução da maioridade, mas de uma coisa tem certeza: a discussão precisa continuar - e da maneira mais calma e racional possível.
"Temos que deixar claro que a matéria é extremamente complexa e delicada, tanto que está no Congresso há quase 22 anos. Ela desperta paixões de parte a parte. O que importa, porém, é que está na ordem do dia da sociedade e é preciso debater o tema com serenidade e seriedade. O que me preocupa é a sociedade cobrar respostas do Estado, e o Estado evitar o debate para se proteger. A discussão tem que acontecer, sim, de forma serena no âmbito do parlamento. E espero que ela termine no melhor caminho", finalizou.