Os últimos presidentes civis brasileiros que entraram em conflito com as Forças Armadas acabaram depostos.
A historiadora e cientista política Heloísa Starling recorda destes episódios ao comentar à BBC News Brasil sobre as demissões do agora ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva e dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Para dois de seus antecessores — Getúlio Vargas e João Goulart —, o embate com os militares acabou mal.
Mas existe uma diferença importante. "Em 64, não tinha o silêncio que vemos hoje na sociedade e nos quartéis", diz a pesquisadora.
"Não tem hoje um general da ativa falando que precisa de uma intervenção. Não existe uma mobilização social a favor disso. Tem apoio de uma fatia da sociedade, mas ela não é expressiva o suficiente para criar um ambiente favorável para um golpe."
O mesmo acontece nos outros dois poderes — o Legislativo e o Judiciário, diz a pesquisadora.
"Há um apoio de deputados de extrema-direita, mas não do Congresso como um todo e menos ainda no Supremo. Pelo contrário, há falas muito cautelosas, dizendo: 'Não é por aí'."
As quedas de Vargas e Jango
Vargas buscava fazer a transição da ditadura do Estado Novo para a democracia quando foi obrigado a renunciar por um movimento liderado por generais que faziam parte do seu próprio governo.
Jango foi destituído pelo golpe de 1964, que deu início de uma ditadura militar que durou 21 anos.
Starling aponta que a última vez em que houve um confronto semelhante entre as Forças Armadas e o Executivo foi em 1977.
O general Sylvio Frota, então ministro do Exército, foi demitido pelo general Ernesto Geisel depois de tentar se insurgir contra o presidente e a abertura do regime militar promovida por ele.
Mas, neste caso, tratou-se de uma crise entre os próprios militares, que governavam o Brasil.
Starling diz que, diante da história do país, pode ser inevitável pensar que o passado está se repetindo. Já houve ao menos 15 tentativas de intervenção militar, nas contas da historiadora.
Duas delas bem sucedidas: em 1937, com o golpe que deu início ao Estado Novo, e em 1964. "O que vemos agora também é uma crise militar e uma situação de crise política incontrolável", diz a historiadora.
As demissões do comando das Forças Armadas
A crise entre o Planalto e as Forças Armadas foi escancarada pelo pedido de demissão do general Fernando Azevedo, que comunicou sua saída na segunda-feira (29/3), sem explicar o motivo.
Azevedo é visto como um militar da ala mais moderada. A BBC News Brasil apurou que Bolsonaro pediu sua saída do cargo por estar insatisfeito com a falta de apoio das Forças Armadas a bandeiras do governo.
Azevedo fez questão de ressaltar em uma nota que "preservou as Forças Armadas como instituições de Estado".
Depois, na terça-feira (31/3), os comandantes das Forças Armadas deixaram os cargos: Edson Pujol, do Exército, Ilques Barbosa, da Marinha, e Antônio Carlos Moretti Bermudez, da Aeronáutica.
Isso foi visto como um protesto pela demissão de Azevedo. Mas também foi noticiado que havia uma insatisfação especial de Bolsonaro com Pujol, que se posicionou publicamente contra a participação dos militares na política.
Potencial de 'explodir o país'
Heloísa Starling interpreta os últimos acontecimentos como um sinal claro de que não existe no comando das Forças Armadas disposição para uma intervenção.
"Há um entendimento de que as Forças Armadas são uma instituição do Estado e que devem se manter assim. O comando está dizendo que não fará uma intervenção e que não aceitam ser chamados de 'meu Exército' por Bolsonaro."
Mas a pesquisadora destaca que os militares não são um bloco homogêneo, e diferentes posições podem estar sendo defendidas internamente.
Uma rebelião interna nas Forças Armadas não seria um fato inédito na história do país e teria o potencial de "explodir o país", avalia a historiadora.
Por isso, ela diz que é preciso prestar atenção ao que está sendo dito entre os oficiais que compõe o corpo militar brasileiro e seu grau de apoio a uma ação mais drástica.
"Talvez possa ocorrer uma quebra de hierarquia a partir das baixas patentes em relação à posição demarcada pelo comando, mas, por enquanto, Bolsonaro só tem a seu lado generais da reserva e de uma mesma geração, dos anos 1970, que foram formados dentro de um mesmo ambiente ideológico e marcado por tortura e repressão."
'A democracia está sendo corroída por dentro'
Tudo isso está acontecendo enquanto o país enfrenta uma sobreposição de crises — uma política, outra econômica e uma sanitária, por causa da pandemia. Agora se soma a elas uma crise militar.
Ao mesmo tempo, o Brasil tem hoje um governo que tem não paralelo com outros na história, diz Starling: "Bolsonaro falou que seu propósito não era construir, mas desconstruir, e acho que essa desconstrução tem um método".
O presidente testa repetidamente os limites das instituições, afirma a historiadora, e a cada vez que isso ocorre elas se desgastam e se fragilizam.
Starling avalia que, diferentemente de antes, quando a democracia veio abaixo por ações externas às instituições, agora ela é ameaçada pelo próprio governo. "A democracia está sendo corroída por dentro", diz.
Ao menos por enquanto, os gestos das Forças Armadas vão no sentido contrário do passado. Em termos de papeis históricos, os sinais agora estão trocados.
Em vez de ir contra a democracia, os militares estão saindo em sua defesa, enquanto os ímpetos autoritários vêm do governo.
"As Forças Armadas não precisam nem colocar nenhum tanque na rua para defender a democracia, basta não aceitarem a sua politização."