Em pouco mais de um ano e meio, as diferenças de perfis entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente Jair Bolsonaro que se manifestam desde a campanha em 2018 parecem ter chegado ao limite do conciliável.
Nos últimos dias, tem-se falado cada vez mais sobre uma possível saída de Guedes do cargo em meio a uma divergência em relação à agenda econômica do país daqui para frente: o ministro da Economia defende a manutenção do teto de gastos e da disciplina fiscal, enquanto parte do governo, incluindo o próprio presidente, acredita que o Estado precisa gastar mais.
A queda de braço é mais um capítulo de um longo desgaste que o "superministro" vem sofrendo desde que assumiu a pasta, diante da grande dificuldade de implementar a agenda liberal que prometeu durante as eleições.
"Havia esperança de que iria abrir a economia, e ela não abriu; de que o governo iria privatizar, e não privatizou; de que iria reduzir o tamanho do Estado, e não diminuiu", diz o economista-chefe do Banco Fator, José Francisco de Lima Gonçalves.
A situação se deteriorou à medida que o ministério da Economia passou a perder espaço para outros setores dentro do governo.
O programa Pró-Brasil, que prevê a retomada do investimento público para fomentar a recuperação do emprego, foi anunciado em abril pelo ministro-chefe da Casa Civil, general Braga Netto, sem a presença de Paulo Guedes ou de qualquer membro da equipe econômica.
O ministro da Economia também não compareceu, nesta semana, ao lançamento do programa Casa Verde Amarela, a versão repaginada do Minha Casa Minha Vida.
E foi desautorizado publicamente pelo presidente, que criticou a proposta feita pela equipe econômica para financiar o Renda Brasil (candidato a substituto do Bolsa Família) com recursos do abono salarial. Bolsonaro disse, na quarta (26/08), que não "tiraria dos pobres para dar aos paupérrimos".
No meio do processo de desidratação, o ministério da Economia perdeu quadros importantes — a saída de técnicos descontentes com a dificuldade de implementação das reformas e com a pressão para a flexibilização da austeridade fiscal —, o que foi classificado pelo próprio ministro como uma "debandada".
Mas, mesmo diante do pouco que foi entregue da agenda liberal vendida durante a campanha, o mercado financeiro tem reagido de forma bastante negativa à possibilidade de sua saída. Por quê?
O fator incerteza
Uma das razões é o fato de que o mercado financeiro não gosta de incerteza — ela aumenta os riscos para se investir.
Se Paulo Guedes sai, diz a consultora econômica Zeina Latif, não se sabe quem entra no lugar, nem com qual agenda.
E um ambiente de indefinição inibe o investimento privado, por exemplo, limitando o potencial de crescimento das empresas — com reflexo, por sua vez, na bolsa de valores e no mercado de debêntures.
Investidores estrangeiros saem do país em busca de outros mercados, pressionando o preço do dólar para cima. Tudo isso afeta o bolso de quem investe.
Para ela, o mercado financeiro comprou "de forma ingênua" a solução vendida por Guedes em 2018.
"Não só era nítido que existia divergência entre ele e Bolsonaro já durante a campanha, como também havia inconsistências na fala de Guedes."
Assim, não deveria surpreender o fato de que o presidente agora "escancara" que sua agenda não é a do liberalismo.
"E ninguém pode dizer que o Bolsonaro enganou. Ele foi coerente. Nunca teve grandes convicções em relação a essa agenda", diz ela, relembrando a reforma da Previdência em 2019, quando o presidente chegou a dizer que, pessoalmente, não queria fazê-la, mas que era preciso.
Gonçalves, do Fator, acrescenta a essa análise o pano de fundo das eleições de 2018. Diante de uma longa crise que misturou o esgotamento do modelo que aumentou a renda de ricos e pobres durante o governo Lula e um tombo no investimento privado decorrente da operação Lava Jato com o fantasma do descontrole da inflação, a demanda de uma parte do eleitorado era "acabar com aquele Brasil da Dilma".
"O Guedes corresponde a esse momento, assim como o Bolsonaro", avalia.
Passados quase dois anos, em um cenário em que a alternativa ainda é o PT ou algo parecido, o mercado prefere do jeito de está, diz o economista.
O teto de gastos
E, apesar de cada vez mais isolado, o ministro da Economia ainda representa uma "última esperança" de que o lado fiscal não será abandonado.
De maneira geral, o mercado financeiro não gosta de governos que gastam muito.
Um avanço da despesa pública sem um salto correspondente da arrecadação significa aumento do endividamento público — que pode ter como consequência, por sua vez, uma elevação da carga tributária ou das taxas de juros (se o país precisa pedir mais emprestado, se é visto como um mercado mais arriscado, ele pode ter de pagar um prêmio maior para encontrar credores).
Juros elevados, de maneira geral, jogam contra o investimento. As empresas pedem menos dinheiro emprestado, emitem menos debêntures — e, por consequência, diminuem as possibilidades de ganho dos investidores.
Ao contrário do que pode sugerir o senso comum, já que o juro elevado significa que os títulos públicos terão remuneração maior, o mercado financeiro se beneficia dos juros baixos, ressalta Latif.
"E um ambiente macroeconômico estável, que é alicerce pra gente discutir crescimento, depende dessa percepção de disciplina fiscal", diz ela.
Por isso, o mercado tem sido bastante reticente à possibilidade de flexibilização do teto de gastos, promulgado em 2016.
"O teto de gastos é a principal âncora fiscal do Brasil, que vem contribuindo com o posicionamento da trajetória da dívida do país em um patamar mais sustentável", disse na quinta (27/08) Samar Maziad, vice-presidente da Moody's, uma das agências que dão nota (rating) à dívida soberana brasileira.
"Abolir o teto sem apresentar outra âncora plausível seria um desenvolvimento negativo do ponto de vista do crédito."
As análises divulgadas em relatórios de consultorias e instituições financeiras nas últimas semanas vão na mesma direção.
A discussão sobre esse instrumento, bastante acalorada desde que ele foi concebido, ganhou novos contornos durante a pandemia.
Diante do impacto negativo sobre a demanda e do avanço do desemprego, parte dos economistas tem defendido que o Estado brasileiro deve gastar para amortecer os efeitos da crise, ainda que, no médio prazo, precise rever sua estrutura de gastos e retomar o compromisso com o equilíbrio fiscal e com a formação de superávits primários (o saldo positivo entre o que o governo arrecada e gasta, e que o Brasil não consegue atingir desde 2014).
O teto coloca um limite para o aumento dos gastos públicos, que só podem avançar no ritmo da inflação do ano anterior (mais especificamente, dos 12 meses que se encerram em junho do ano anterior).
Um dos problemas de uma flexibilização, diz Latif, é que ela poderia abrir um precedente para que o país abandone o objetivo de sanear as contas públicas. O teto, ela diz, não é "um objetivo em si, mas um lembrete de que precisamos fazer reformas".
"E o próprio governo não tem convicção da importância do ajuste fiscal. Se fosse um governo com visão mais responsável (em relação às contas públicas), talvez o mercado não reagisse dessa forma."
Para o economista-chefe do Fator, mesmo que o ministro da Economia deixe de fato o cargo, o cenário bastante adverso que estimulou o desembarque do mercado financeiro do governo Dilma ainda está distante do atual.
A experiência com a reforma da Previdência no ano passado — em que o resultado ficou muito aquém do que era defendido pelo mercado, sem grandes consequências negativas práticas para Bolsonaro — pode ser um indicativo de uma possível "acomodação" após um choque inicial provocado por uma eventual perda do "superministro".