Plataforma lançada pela gestão Lula não apresenta metodologia e usa formato de agências de checagem para fazer propaganda institucional, apontam alguns especialistas. Para outros, iniciativa é válida.Lançado na semana retrasada pelo governo federal, o site Brasil Contra Fakedivide opiniões de especialistas e desperta críticas de quem atua no combate à desinformação. O principal problema seria o uso de um formato de jornalismo fact-checking para a divulgação, ainda que legítima, de propaganda institucional.
Ex-diretora da International Fact-Checking Network e atual diretora de programas da organização International Center for Journalists, a jornalista Cristina Tardáguila condenou publicamente a iniciativa. "Não existe fact-checking sem transparência nem metodologia. Não existe fact-checking governamental", escreveu ela no Twitter. "Essa apropriação do termo é indevida e ofensiva. O que o governo faz é propaganda."
No próprio site do projeto, o Brasil Contra Fake é descrito como "um portal de utilidade pública e informações sobre políticas públicas e ações governamentais". "Estamos aqui para te ajudar e esclarecer sobre ações do governo federal. Nem tudo o que a gente recebe no zap ou nas redes sociais condiz com a realidade", explica o texto, que afirma ainda que "uma informação incorreta" pode impedir de "acessar serviços do governo" e ainda criar "aborrecimentos".
A plataforma está dentro das propostas do governo para o combate à desinformação. O tema tornou-se relevante para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) diante do volume de informações falsas durante as campanhas eleitorais recentes, sobretudo nos dois pleitos presidenciais disputados pelo seu principal antagonista, Jair Messias Bolsonaro (PL), tanto no vencido por este, em 2018, quanto no que ele saiu derrotado, no ano passado.
Termo cooptado
Entre as "notícias" publicadas no portal, sempre com a estrutura semelhante à utilizada por agências de checagem de informação que atuam no Brasil, alternam-se notas de esclarecimento geral, como "é falso que extintores de incêndio são obrigatórios em carros" e "é falso que imunizados contra a gripe recebem vacina bivalente sem saber", a outras de cunho político, em geral, protagonizadas por Lula.
Exemplos são as notas "é falso que Lula decretou fim dos aplicativos de entrega", "é fake que ilustração em livro didático faça referência à campanha de Lula em 2022" e "é fake que Lula foi impedido de entrar no avião presidência e no Palácio do Alvorada".
Nesses casos, as informações verdadeiras oferecidas pelo Brasil Contra Fake são reproduções de trabalhos feitos por núcleos de fact-checking de órgãos de imprensa ou por agências especializadas em checagens — citados e linkados nos posts.
Mas há também textos em que as "checagens" são, na verdade, notas de esclarecimento produzidas pelo próprio governo. Em "é falso que morte de peixes em barragem no RN está relacionada a fechamento de comportas do São Francisco" a informação tida como correta é a atribuída ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Em "é falso que agentes do Censo 2022 estão fiscalizando quem recebe Bolsa Família" também são fontes do governo que se contrapõem ao boato.
Há ainda posts que mais parecem notas de divulgação de órgãos ligados ao governo do que propriamente textos de checagem de informação. É o caso de "Controladoria-Geral da União continua sua missão no combate à corrupção" e "móveis foram comprados para recompor patrimônio destruído no 8 de janeiro".
Professor de jornalismo na Universidade Loyola de Chicago — e recém-nomeado professor de mídia e democracia na Universidade de Maryland —, o jornalista Daniel Trielli diz à DW que a checagem de fatos está sofrendo do mesmo fenômeno que o termo fake news.
"Originalmente, havia uma definição acadêmica muito específica [para fake news]. Mas depois [o termo] foi cooptado por agentes políticos para ter significados difusos e úteis para esses agentes", comenta. "A checagem de fatos, originalmente, é uma ideia potente. É de se esperar que também seja cooptada."
"A iniciativa do governo federal não segue a metodologia padrão de checagem de fatos porque não está interessada na substância de checagem de fatos, mas sim no seu estilo", acrescenta. "Não me parece que o intuito seja criar uma agência pública de checagem de fatos, mas sim adotar a roupagem de checagem de fatos à comunicação do governo. É certo? É errado? Não sei, mas é política."
Propaganda institucional?
Diretora da agência de checagem de fatos Lupa, a jornalista Natália Leal entende como "perigosa" a iniciativa governamental. "Nossa crítica é incisiva porque entendemos que o governo está fazendo comunicação institucional, propaganda [com este site]. E tudo bem, está certo defender o mandato, o próprio governo, do ponto de vista da comunicação institucional. Mas o próprio governo que diz estar numa campanha contra a desinformação se coloca no lugar de confundir a opinião pública sobre o que é, de fato, checagem de fatos", afirma.
"Checagem de fatos precisa ser feita com transparência, apartidarismo e tudo isso tem de ser colocado à público", explica Leal. "[Nesse projeto] não tem transparência, nem metodologias. E é perigoso porque a gente acaba tendo uma determinação estatal sobre o que é a desinformação."
Em sua visão, o governo está se apropriando de um formato consagrado pelas agências de checagem para publicar esclarecimentos públicos e propaganda institucional — não necessariamente se contrapondo a informações falsas.
Esse modus operandi se torna ainda mais complicado considerando que, no atual cenário político polarizado, as agências de checagem já vêm sofrendo críticas, a despeito de suas metodologias transparentes e seus critérios técnicos, de determinados grupos da sociedade que tendem a interpretar esse trabalho como algo a serviço de interesses políticos.
"A verificação da veracidade de um fato deve sustentar-se em critérios claros e de conhecimento público", explica o jornalista Angelo Sottovia Aranha, professor na Universidade Estadual Paulista, em conversa com a DW. Segundo ele, somente a partir da forma como uma informação é fundamentada a credibilidade "de quem contextualiza" é respeitada.
Espaço "para desmentir"
Na semana passada, a reportagem procurou a Secretaria de Comunicação Social (Secom) do governo federal para conversar a respeito do projeto. Até esta segunda-feira (03/04), contudo, a pasta não respondeu aos pedidos de esclarecimento. À agência Lupa, a Secom informou que o portal recém-criado terá "conteúdos relacionados ao governo federal, seus representantes e suas políticas públicas" e que o espaço foi criado para "desmentir notícias falsas sobre o governo federal e todos os temas correlatos".
Mesmo questionada a respeito, a Secom não informou quais são seus critérios para selecionar e verificar os conteúdos. A pasta ainda justificou a ausência de links para informações sob o argumento de que "fake news inventam fatos que simplesmente não existem". A prática de criar links para os conteúdos checados é praxe nas agências de fact-checking.
Mas também há quem veja com bons olhos o projeto do governo federal. Professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o publicitário Diego Oliveira avalia que a plataforma "não se trata de uma campanha institucional", já que se apresenta como "iniciativa para tratar um assunto preocupante, independentemente de partido e podendo ser usado e adaptado ao longo dos anos".
O advogado Marcelo Crespo, professor de direito digital na ESPM, entende que o portal está dentro das atribuições da comunicação governamental. "Acredito que sempre haja espaço para o poder executivo melhorar sua forma de comunicação […] e também contrapor informações com as situações praticadas pelo governo", ressalta ele. "Ter uma página [neste formato] me parece salutar, mas ainda é necessário colocar ali mais claramente qual é a metodologia", diz.