Os pesados cortes de recursos para a área de ciência e tecnologia feitos pelo governo federal estão levando a produção científica brasileira a um "estado terminal", interrompendo pesquisas, acelerando o êxodo de cérebros e gerando uma lacuna que "vai penalizar o Brasil por décadas", afirma o presidente da Academia Brasileira da Ciências (ABC), Luiz Davidovich.
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o físico carioca alerta para as grandes perdas trazidas pelo corte dramático imposto pelo governo Temer ao orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia e Comunicações em março deste ano, levando a verba para ciência ao patamar de 12 anos atrás.
O corte de 44% no orçamento para 2017, de R$ 5,8 bilhões para R$ 3,2 bilhões, repercutiu internacionalmente, deixando cientistas brasileiros "horrorizados", segundo artigo na prestigiosa revista científica Nature.
"Espanta-me que justamente em uma época de crise tão grave, não se dê atenção à porta de saída da crise, já descoberta por outros países há muito tempo. É pesquisa e desenvolvimento, é ciência e inovação tecnológica. Nós estamos indo na contramão dessa consciência internacional", afirma Davidovich, citando países como China, Cingapura, Coreia do Sul e membros da União Europeia como exemplos.
Em entrevista à BBC Brasil, o físico disse que laboratórios estão sendo forçados a interromper pesquisas por falta de, que a fuga de cérebros está se acelerando e que o cenário sombrio é um desestímulo para jovens que cogitam ou poderiam cogitar uma carreira científica.
Davidovich ressalta que a produção científica depende de continuidade e envolve uma corrida constante com outros países.
"Se você quer construir uma estrada e o país enfrenta uma crise financeira, você pode atrasar a obra. Ciência e tecnologia você não pode atrasar, porque perde a corrida. Você não tem como recuperar o atraso", alerta.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil: O senhor tem sido muito enfático em relação aos danos causados pelos cortes no orçamento científico do país. Qual foi a dimensão desses cortes?
Luiz Davidovich - A crise está geral no Brasil, mas na parte de ciência e inovação tecnológica houve um corte muito grande em cima de orçamento que já era pequeno. Em 2013, tivemos um pico no orçamento, mas desde então começou a haver cortes sucessivos.
Em março, houve um corte de 44% em todos os ministérios, exceto nos da Educação e Saúde, que têm seus orçamentos protegidos pela Constituição.
Um governo que aplica um corte linear em todas as áreas mostra que não tem prioridade, não tem agenda nacional. Isso contrasta com a posição de outros governos, de países com grande ímpeto desenvolvimentista, como China, EUA, Israel, União Europeia, Coreia do Sul.
BBC Brasil - Qual é a posição adotada por esses países?
Davidovich - Em épocas de crise, eles aumentam o investimento em pesquisa e desenvolvimento. A União Europeia chegou a um acordo pelo qual pretende destinar 3% do PIB a pesquisa e desenvolvimento (P&D) até 2020. Nos EUA, até o ano passado, se aplicava em torno de 2,7% do PIB em P&D. A China está com crescimento desacelerado, mas ao mesmo tempo está investindo mais em pesquisa. Em plena crise, o primeiro-ministro (Li Keqiang) anuncia que vai aumentar o investimento em pesquisa básica em 26%.
O que isso significa? Esses países entendem que o investimento em pesquisa é a melhor maneira de sair da crise de forma sustentável. Contribui para aumentar o valor agregado de seus produtos e aumentar seu protagonismo.
Enquanto isso, o Brasil está fazendo o quê? Está retraindo os investimentos, cortando violentamente. A ponto que chegamos a um estado terminal. É S.O.S. para a ciência no Brasil. Chegamos a um ponto em que equipes estão sendo fechadas e encerrando os seus trabalhos.
Espanta-me que justamente em uma época de crise tão grave, não se dê atenção à porta de saída da crise, já descoberto por outros países há muito tempo. Nós estamos indo na contramão dessa consciência internacional.
BBC Brasil - Mas o Brasil está tentando sair da recessão mais grave em décadas. Dá mesmo para comparar a situação aqui com países como China, Coreia do Sul ou Israel?
Davidovich - Nos anos 1990, a Coreia do Sul era considerada mais atrasada que o Brasil. Mas o país investiu pesadamente em ensino básico, ensino técnico e pesquisa e desenvolvimento, apoiando grandes empresas, e passou à nossa frente. Eles têm cinco escolas nacionais para formar professores de ensino fundamental. A profissão de professor é valorizada, com salário compatível com o de outras profissões graduadas.
A Eslováquia, nos anos 1990, passou por problemas políticos e econômicos tremendos. Eles fizeram reformas econômicas importantes, mas ao mesmo tempo resolveram apostar na inovação. Hoje estão muito à nossa frente no Índice Global de Inovação.
O Brasil está em 69º lugar no índice, atrás do México, da Rússia, da Índia e da África do Sul. A Eslováquia está em 34º lugar. Decidiu investir no que se chama hoje de deep tech - as tecnologias profundas, que revolucionam nosso cotidiano - e se tornou um polo de inovação. Em muito pouco tempo, superou a crise de maneira inteligente, e hoje está aí, concorrendo no mercado global.
BBC Brasil - Mas vemos no Brasil uma crise generalizada, com falta de recursos para todas as áreas, seja ciência ou cultura. O senhor defende que a ciência e tecnologia mereçam tratamento diferente?
Davidovich - Essa questão de não ter dinheiro é discutível, porque se você olha para os acordos que estão sendo costurados no Congresso, para que os deputados votem a favor da reforma da Previdência, eles vão custar muito caro. O BNDES já está revendo a política de parar de conceder créditos subsidiados para empresas. Mesmo no auge dessa crise, os lucros dos bancos continuam aumentando.
Há recursos no sistema. A questão é como eles estão sendo usados. A questão é de escolha de prioridades.
Agora, por quê empregar recursos em ciência e tecnologia e não em outras áreas? Por que essa área merece uma atenção especial? Porque investir em ciência e tecnologia permite mudar o padrão de produtos de um país. Permite que países que sobrevivem da exportação de commodities, como o Brasil, passem a contar com uma pauta de exportação com produtos de alto valor agregado. É uma opção que permite gerar mais recursos para o país, para dar a volta por cima da crise.
BBC Brasil - Onde a situação é mais grave?
Davidovich - Nos Estados que enfrentam crises financeiras, como o Rio, porque neles as fundações estaduais de amparo a pesquisa também estão com problemas. Nesses Estados, a situação é de terror.
No Rio, por exemplo, você tem laboratórios que fazem trabalhos extremamente importantes e de repercussão internacional, como as pesquisas feitas na UFRJ sobre o vírus Zika e microcefalia. As contribuições foram publicadas nas melhores revistas internacionais e estão no caminho correto de encontrar meios de debelar essas doenças, mas os pesquisadores estão enfrentando problemas. Há pesquisas muito importantes sobre doença de Alzheimer que também estão com sérios problemas.
Esses grupos precisam de insumos biológicos para fazer seus experimentos, mas não há mais recursos para esses insumos. Com isso, os laboratórios estão parando. E param também as teses que estão sendo desenvolvidas, os trabalhos de mestrado e de doutorado que se destinam a formar os pesquisadores de amanhã, aqueles que, no futuro, vão combater as epidemias emergentes, como a zika, ou agora a febre amarela.
O risco que o país está correndo é de termos um gap na formação de cientistas e de não termos pesquisadores que possam atacar problemas que afetam a saúde da população nos próximos dez, 15 anos.
BBC Brasil - Já há um claro impacto da crise econômica e do corte de recursos sobre a fuga de cérebros, motivando pesquisadores a deixar o país e buscar refúgio em países e universidades onde consigam verba para desenvolver seus trabalhos?
Davidovich - Esse processo está muito acelerado. Há dois meses, quando jornalistas me perguntavam se estava havendo êxodo de cérebros, eu dizia: "Tem um ou outro caso, mas as pessoas ainda estão esperando para ver se melhora". Há apenas dois meses.
Agora não. As pessoas estão claramente optando por sair do Brasil. Estou em contato com equipes do Rio que estão perdendo metade de seus pesquisadores. Colegas estão dizendo que vão sair porque não têm mais condições de continuar a pesquisa. Até aqui, usavam insumos que tinham comprado antes. Agora, acabaram os insumos.
Quem trabalha com física, por exemplo, que é a minha área, usa laser nos laboratórios. Laser tem uma vida média. Se ele queima, acabou o experimento. E aí acabam as teses realizadas nesses laboratórios. Isso já está acontecendo.
BBC Brasil - Que efeitos o senhor acha que isso trará para o país no futuro?
Davidovich - Talvez o problema mais sério, e que já estamos detectando, é como isso afeta os jovens. Quando alunos veem que seus professores, como os da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), duramente afetada pela crise estadual, estão sem receber salários e com dificuldade de pagar as contas mensais, eles começam a pensar: "Essa profissão é complicada. O pessoal não tem recursos. Não vou querer ser professor universitário ou pesquisador. Vou procurar outra coisa". Passam a considerar que a área é pouco prestigiada e que o governo não se interessa por ciência.
Isso está dificultando a atração de jovens para a pesquisa. E o Brasil precisa muito desses jovens. Porque temos grandes desafios. Temos uma matriz energética que é uma das mais limpas do mundo, temos sol, temos água, temos biomas que têm produtos de biodiversidade a descobrir.
Conhecemos apenas 5% de nossa biodiversidade. Explorar isso significa poder fazer remédios e usar uma capacidade e uma vantagem competitiva do Brasil. Nós temos essa biodiversidade, os outros não têm. E precisamos usá-la de forma sustentável, sem destruir a floresta, de modo a fazer medicamentos e produtos de alto poder agregado. Para isso precisamos de mais pesquisadores.
BBC Brasil - O Brasil passou por um momento de euforia na última década que foi acompanhada por um aumento expressivo nos investimentos na área de pesquisa e ciência. Quando a situação começou a se deteriorar?
Davidovich - Os cortes começaram já no governo da Dilma (Rousseff). Nós protestamos contra, a ABC, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Quando o governo mudou (e o presidente Michel Temer assumiu), os cortes continuaram. Com o agravante de que houve a agregação do antigo Ministério de Comunicações ao Ministério de Ciência & Tecnologia. Na época, foi dito que isso traria mais recursos, pela importância política da pasta das Comunicações, mas o efeito foi o contrário.
Depois dos últimos cortes, o orçamento do novo MCTIC passou a ser de R$ 3,2 bilhões de reais. Muito bem. Destes, R$ 700 milhões são para a parte de Comunicações, e que deixa R$ 2,5 bilhões para ciência e tecnologia.
Em 2010, o orçamento do ministério, corrigido pela inflação, equivalia a cerca de R$ 10 bilhões. Ou seja, o orçamento de hoje é da ordem de ¼ do que tínhamos em 2010.
Isso mostra uma falta de rumo do governo, ou então um rumo que está na contramão do que está acontecendo internacionalmente. Isso vai penalizar o Brasil nas próximas décadas.
BBC Brasil - Qual é o efeito da ruptura gerada pelos cortes sobre a produção científica? A dinâmica de uma pesquisa permite que seja interrompida e retomada?
Davidovich - A produção científica depende de continuidade. No mundo de hoje, se você para, você perde a corrida, porque os outros não estão parando. Aliás, não basta nem correr, você precisa correr mais rápido que os outros.
Se você quer construir uma estrada e o país enfrenta uma crise financeira, você pode atrasar a obra. Ciência e tecnologia você não pode atrasar, porque perde a corrida. Você não tem como recuperar o atraso. Por isso que, em plena crise, esses países que mencionei aumentam investimento em pesquisa. A China está aumentando. E com isso está ganhando protagonismo internacional, o que nós estamos perdendo. O quadro é dramático.
Se você interrompe uma pesquisa de biologia, você perde a prioridade. Outros países vão obter a patente. E depois nós vamos pagar pelas patentes que eles estão obtendo.
BBC Brasil - Mas o Brasil nunca conseguiu ser uma potência na área científica. O país tem condições de disputar dessa corrida mundial? Nos momentos de maior euforia, quais foram os principais avanços nessa disputa?
Davidovich - Já tivemos momentos melhores. Os primeiros dez anos do século 21 foram auspiciosos, com mais verba para pesquisa. Mas sempre enfrentamentos altos e baixos. Sempre enfrentamos descontinuidade no apoio à pesquisa. E mesmo com esse apoio bastante incerto, flutuante, sujeito a interrupções, a ciência brasileira conseguiu coisas fantásticas no cenário mundial.
A Petrobras ganhou prêmios internacionais na exploração de petróleo em águas profundas, isso através de uma cooperação muito forte com várias universidades brasileiras, envolvendo um grande leque de profissionais. A Embraer ocupa um nicho importante no mercado internacional de aviões. Uma empresa nascida em Santa Catarina, em cooperação com o departamento de engenharia mecânica da UFSC, transformou-se na maior empresa de compressores do mundo. São muitos exemplos de sucesso de empresas brasileiras com base científica.
Apesar de todas essas interrupções e dificuldades, isso demonstra a capacidade de invenção e a criatividade da ciência brasileira. Imagine o que não poderíamos fazer se houvesse uma política de estado de apoio à pesquisa e desenvolvimento, um fluxo contínuo que não sofresse altos e baixos dependendo de quem está no poder. Nós poderíamos ter ido muito mais longe.
BBC Brasil - E essa falta de continuidade gera prejuízos para a economia do país no futuro, a seu ver?
Davidovich - É importante o país ter uma dianteira em pesquisas para fazer economia no futuro. Faremos economia por não ter que pagar pelas patentes e ganharemos mais recursos porque teremos qualificado a nossa pauta de exportações.
É questão até de soberania nacional e econômica. Quando você aumenta o valor agregado dos produtos exportados, você passa a ter mais controle sobre a sua própria economia.
Se você considera, por exemplo, a agricultura, que é uma fonte de riqueza tão grande para o país. Parte disso é graças à ciência brasileira, que descobriu um processo para aumentar a produtividade da soja em quatro vezes. Na mesma superfície de terra, você colhe quatro vezes mais grãos. Algumas décadas atrás, soja não florescia no Mato Grosso. Com a ciência brasileira, passou a ser uma das grandes riquezas do Estado.
Mas hoje, centros de pesquisa de prestígio nessa área, como a Universidade de Viçosa e a Embrapa, estão com dificuldades. Há duas décadas, a Embrapa contava com equipamentos para pesquisa que eram o estado da arte. Hoje estão defasados, e a própria agricultura está ameaçada pela falta de renovação de equipamentos e de investimentos em pesquisa.
Na África os avanços brasileiros na produção de soja já são conhecidos, e a China está comprando muita terra no continente. E se passarem importar soja de lá, que é muito mais perto?
Se não houver inovação constante até na área de commodities, estamos jogando um jogo muito arriscado. Se você para de atualizar a produção com ciência e tecnologia, ela fica obsoleta. Porque é uma corrida, e temos que nos atualizar sempre.
BBC Brasil - Como o senhor vê o impacto da aprovação da emenda constitucional que estabelece um teto de gastos públicos para o governo federal ao longo dos próximos 20 anos? Que impacto terá para a ciência?
Davidovich - É um grande equívoco, um trágico equívoco, considerar que recursos para ciência são gastos. Eles são investimentos. É muito importante fazer essa diferenciação. Se você considera que são gastos, corre o risco de o país ficar paralisado. Você estabelece o teto de gastos, mas não consegue mais aumentar o PIB, porque ele dependeria de investimentos que você não poderá fazer.
É muito preocupante que a ciência esteja dentro do teto de gastos. Pior ainda, o orçamento enviado pela equipe econômica para o Congresso para 2018 agrava ainda mais a situação do ano que vem, com ainda menos recursos para ciência e tecnologia.
Isso reflete a ignorância de quem está conduzindo a política econômica em relação ao papel da ciência e tecnologia para o desenvolvimento do país. Essa é a saída, essa é a luz no final do túnel.
BBC Brasil - O senhor vê alguma perspectiva de melhora no momento atual?
Davidovich - Está difícil ver a luz no fim do túnel. É claro que a gente considera que a saída para o Brasil está na ciência, na inovação tecnológica e na educação de qualidade para todos. Esse foi o segredo da Coreia, de Israel, de Cingapura.
Não existe um milagre coreano. Existe uma política que eles implementaram dando uma importância muito grande para educação básica, formando técnicos e promovendo inovação tecnológica. É isso. Não tem mistério.