Representantes do Ministério Público do Trabalho realizaram uma inspeção no Centro de Estudos Migratórios da Arquidiocese de São Paulo, no centro da capital paulista, e constaram: haitianos vindos do Acre nas duas últimas semanas não apenas estão em grave situação de vulnerabilidade, como sujeitos a um risco alto de aliciamento para o trabalho escravo.
“Viemos ver em que situação essas pessoas estão a fim de monitorar a situação trabalhista delas, ver se empresas as estão contratando, e quais. Estão abrigados precariamente, dentro das possibilidades que o centro disponibiliza, mas estão sujeitos a aliciamento, nas ruas, para o trabalho escravo – e isso que queremos evitar”, afirmou a procuradora-chefe do MPT da 15ª Região, em Campinas, Catarina Von Zuben. Além do MPT, Tribunais Regionais do Trabalho e Ministério do Trabalho e Emprego acompanham a situação dos imigrantes.
Entre os imigrantes, idiomas correntes são apenas os da terra natal, o crioulo haitiano ou o francês. Em uma tentativa de chegar mais próximo do português, entretanto, arriscam palavras vez ou outra, em espanhol, o que dizem ser suas maiores preocupações: “empleo y hambre”. Emprego (a falta dele, na verdade) e fome.
A inspeção aconteceu nessa sexta-feira e foi realizada por procuradoras do Trabalho da capital e de Campinas. Elas checaram as condições trabalhistas de parte dos 450 haitianos que chegaram à cidade desde o último dia 12, egressos das cheias do rio Madeira, na Brasiléia, já que a maioria foi para a casa de amigos ou familiares, também haitianos, estabelecidos no Brasil há mais tempo. Outros seguiram esta semana para Santa Catarina: foram contratados temporariamente para a colheita nas lavouras de maçã.
“O problema maior que verificamos, além desse risco de aliciamento, foi a ausência de quaisquer políticas públicas que atendam a esses imigrantes”, observou a procuradora do Trabalho Chirstiane Nogueira, da 2ª Região, na capital.
O Centro de Estudos Migratórios fica na Paróquia Nossa Senhora da Paz, na Baixada do Glicério, uma das regiões mais degradadas do centro de São Paulo. Horas depois da inspeção, vans locadas pela Prefeitura levaram os haitianos ao Ministério do Trabalho e Emprego para emissão de carteiras de trabalho em sistema de mutirão – ao todo, segundo o município, foram cerca de 90 emissões do documento.
Diretor do centro também cita aliciamento
O diretor do centro, padre Paolo Parise, reforçou o receio apresentado pelas procuradoras. Em entrevista ao Terra, ele afirmou que a falta de espaços adequados para suprir a demanda de imigrantes que têm chegado à cidade tem facilitado a ação de aliciadores na região.
“A resposta da sociedade civil – de outras etnias e mesmo católicos – tem sido muito bonita no sentido de se voluntariar e ajudar com comida e preparo de refeições, por exemplo. Ontem (quinta-feira) a prefeitura mandou alguns colchões. Sabemos que não é uma operação fácil, mas precisamos de uma casa de acolhida. O poder público não tem isso em São Paulo”, disse o religioso de 47 anos, italiano, que já atuou em países como Itália, Portugal e Alemanha na causa migratória.
“Em outros países, há mais programas públicos voltados ao imigrante. Aqui, não – e olha que são poucos no Brasil: nem 1% da população”, relatou. “E já começamos a observar pessoas aqui no Glicério oferecendo trabalho. E sabemos que isso não é pago, por experiências anteriores que tivemos com imigrantes. É um risco grande”.
Entre os haitianos, sonhos e dramas
Mãe de dois filhos pequenos que ficaram no Haiti, Charlane Charles Pierre, 26 anos, foi econômica nas palavras: “Preciso trabalhar. Não quero mais passar fome.”
Os amigos pedreiros Junior Borgelas, 28 anos, e Ronado Thema, 38 anos, também haitianos, frisaram: emprego em solo brasileiro é o que mais eles querem para, um dia, trazer suas famílias embora. “Já trabalhei na construção civil aqui por três, quatro meses, e no dia de receber o responsável sumia. Se a gente entra em firma boa para tentar algo, a resposta sempre é: ‘Aqui não precisamos de estrangeiro’. A falta de emprego é pior que a saudade da família, em alguns dias”, lamentou Borgelas, há dois anos no Brasil. “Quero trazer minha família para cá”, resumiu Thema, que deixou mulher e cinco filhos em Porto Príncipe, capital haitiana.
Quase uma exceção na regra de haitianos que vieram e sonham em fincar raízes no Brasil, o estudante Daniel Alfred, 27 anos, contou que quer mesmo é voltar ao Haiti. Lá, há um ano e dois meses, ele deixou o curso de Agronomia, onde não tinha condições de bancar os estudos. Em São Paulo, faz curso técnico de eletrônica com um objetivo de médio prazo traçado: “Não quero ficar em subemprego aqui, isso é muito difícil. Vou estudar no Brasil, quero fazer faculdade, e voltar para o Haiti para ganhar um salário melhor.”
Sotaque gera desconfiança, diz peruano
Um dos poucos não haitianos no centro de imigrantes, o artesão peruano Ciro Monzón Zeballo, 52 anos, há quatro meses em São Paulo, não pretende voltar para Cuzco, onde vivia. “Gosto do Brasil, gosto da estrutura federativa que há aqui, não nos expulsam, como se faz nos Estados Unidos com os imigrantes. Só que aqui, às vezes, a pessoa fica desconfiada quando ouve meu sotaque. No Peru, a confiança é maior justamente quando percebemos que o turista é brasileiro. Gostaria que isso pudesse ser diferente”, sugeriu.
Prefeitura fala em “ações emergenciais”
Em nota, a prefeitura de São Paulo informou, por meio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, que estão sendo tomadas “medidas de urgência para atender à população de imigrantes” que veio do Acre.
Entre as ações, segundo a secretaria, está “o fornecimento de colchões e alimentação, além de disponibilizar vagas nos albergues da rede”, e uma força-tarefa para emissão imediata das carteiras de trabalho aos haitianos que não possuíam o documento.
“Na próxima semana a prefeitura de São Paulo deverá se reunir com o Ministério da Justiça para buscar diretrizes conjuntas de inserção social desta população no Brasil, de forma planejada e estruturada”, finalizou a nota.