Presidente pode receber título de cidadão honorário de vilarejo italiano onde nasceu seu bisavô. Mas políticos locais, religiosos e ativistas condenam honraria. "Não à cidadania a um racista, misógino e negacionista."A câmara de vereadores de uma pequena cidade no norte da Itália deverá votar nesta segunda-feira (25/10) uma proposta para conceder o título de cidadão honorário ao presidente Jair Bolsonaro.
A homenagem, porém, gerou polêmica e declarações de indignação por parte de políticos locais, ativistas e até grupos religiosos, num momento em que o líder brasileiro é acusado de crimes contra a humanidade e outros delitos pela CPI da Pandemia no Senado.
A ideia de conceder o título a Bolsonaro partiu de Alessandra Buoso, prefeita de Anguillara Veneta, um pequeno município de apenas 4 mil habitantes localizado na região do Vêneto. A cidade a 80 quilômetros de Veneza é terra natal de um bisavô do presidente.
Buoso defendeu que a homenagem não tem motivação política. "Pensei nas pessoas do meu país que migraram para o Brasil e construíram uma vida até chegar à Presidência, levando o nome de Anguillara Veneta para o mundo", disse a prefeita em entrevista à agência de notícias italiana Ansa na semana passada.
Questionada sobre os crimes imputados a Bolsonaro pela CPI da Pandemia, a política italiana justificou que não estava ciente das acusações. O relatório final da comissão no Senado brasileiro foi apresentado na quarta-feira passada, mesmo dia em que Buoso assinou a proposta.
"Não posso entrar na política brasileira. Infelizmente, o momento não foi favorável, até ontem [quarta-feira] eu não sabia [das acusações]", afirmou. A convocação para que a câmara de vereadores vote a proposta nesta segunda-feira, contudo, segue mantida.
Reação da classe política local
A homenagem provocou indignação em parte da classe política local. A parlamentar Vanessa Camani, integrante da assembleia legislativa regional do Vêneto, lançou uma campanha nas redes sociais contra o título de cidadão a Bolsonaro.
"Não à cidadania a um racista, misógino e negacionista", afirma ela, que é membro da direção nacional do Partido Democrático (PD), de centro-esquerda.
"Faz arrepiar a proposta da prefeita de Anguillara Veneta de conferir a cidadania honorária a Bolsonaro, conhecido pelos elogios à ditadura militar, pelo desprezo e ofensas a mulheres e homossexuais, pelas ameaças de prisão aos adversários políticos, ou pelas grotescas acusações contra ONGs pelos incêndios que devastaram a Amazônia", escreveu a deputada no Facebook na semana passada.
Na postagem, Camani também condena a "obscena gestão da emergência da covid-19, que colocou Bolsonaro entre os protagonistas do negacionismo mundial". "Por favor, nos explique, prefeita de Anguillara, por qual desses motivos Bolsonaro merece ser cidadão honorário?", ironiza.
Em entrevista à imprensa local, a parlamentar afirmou ainda que o líder brasileiro "atrasou o início da campanha de vacinação por meses, promoveu tratamentos sem eficácia comprovada, como a hidroxicloroquina, e mais de uma vez minimizou o perigo do vírus, que tem causado estragos especialmente entre as populações indígenas".
Neste domingo, Camani publicou uma foto em que aparece ao lado de outros membros do Partido Democrático nas ruas de Anguillara Veneta, onde estiveram, segundo ela, para "reiterar nosso não à cidadania honorária a Bolsonaro".
O secretário regional do Partido Democrático, Alessandro Bisato, também se pronunciou sobre a proposta da prefeitura. "Tal como aquele soldado japonês na ilha do Pacífico, sem saber do fim das hostilidades, a administração do município na área de Pádua não entende o declínio do populismo", declarou o político, citado pelo jornal Il Fatto Quotidiano.
"Pior, pressiona pelo reconhecimento público de um político alérgico à democracia e aos direitos civis, um negacionista da covid-19 e antivacina. Graças à política de Bolsonaro, os brasileiros hoje estão mais pobres, menos seguros e nas garras da covid", concluiu.
Religiosos e ativistas também condenam
A homenagem à nomeação também foi alvo de críticas de grupos religiosos e ativistas antibolsonaristas na Itália. Em carta à prefeita de Anguillara Veneta, padres missionários italianos baseados no Brasil se dizem "ofendidos, entristecidos e desconcertados".
"Como cidadãos italianos que trabalham no Brasil há anos a serviço do povo brasileiro e da Igreja Católica brasileira (somos missionários, religiosos e 'Fidei Donum'), nos sentimos profundamente entristecidos e desconcertados. Nós nos perguntamos sobre quais méritos? Como um homem que durante anos, e continuamente, desonra seu país pode receber honra na Itália?", diz o texto, citado pelo portal de notícias UOL.
"Jair Bolsonaro é um presidente que está massacrando a vida do povo, especialmente dos mais pobres; ele criou uma política anti-covid (e ainda continua a fazê-lo) que produziu milhares de mortes, promove a destruição e vende as terras da Amazônia. Como pode um presidente que colabora com a destruição da Floresta Amazônica receber honras em uma nação que luta pela preservação do planeta?", continua a carta.
Os padres seguem pedindo, então, que a cidade italiana não conceda o título. "Estamos profundamente ofendidos e exigimos a revogação desta honra. Não a Bolsonaro e sua política violenta e genocida!"
Já o Comitê Italiano Lula Livre - um grupo que visa informar e sensibilizar a sociedade civil e política italiana sobre a "regressão do Estado democrático de direito no Brasil", em suas próprias palavras - divulgou uma carta aberta aos cidadãos e vereadores de Anguillara Veneta.
O texto se refere a Bolsonaro como alguém "desumano, incapaz de expressar empatia e solidariedade". O presidente brasileiro "negou qualquer bom senso baseado em critérios científicos, levando a população brasileira à beira da morte e do desespero social. O desemprego se espalhou, e a fome voltou a estender sua sombra sobre os mais fracos: crianças e idosos em particular. Esse homem tenta apagar o passado e abortar o futuro", escreve o grupo.
"Aqui, qualquer pessoa pode receber uma homenagem: a benevolência de conceder um prêmio nunca deve ser criticada. Mas talvez Anguillara Veneta não mereça a vergonha de ter seu território associado a tal personagem. Anguillara Veneta e toda a Itália devem permanecer em nossos corações e em nossa memória por aquilo que realmente representam: um povo fraterno, parte de nossas vitórias e de nosso desenvolvimento", conclui a carta.
ek (ots)