Lideranças evangélicas e do PT no Congresso estão em negociação para criar uma lei que aumente a punição em casos de homicídio ou lesão corporal contra LGBTs.
A improvável aproximação foi catalisada em reação à possibilidade do Supremo Tribunal Federal (STF) criminalizar a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.
Em julgamento retomado nesta quinta-feira (23/05), a Corte formou maioria de seis votos a favor de que a homofobia e a transfobia sejam enquadradas na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso crie legislação específica para punir atos que discriminem a comunidade LBGT.
Os ministros Celso de Mello, Edson Fachin, Alexadre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux consideraram em seus votos que o Congresso se omitiu ao não ter, até hoje, criado lei contra a transfobia e homofobia, embora a Constituição estabeleça a necessidade de punir criminalmente todo tipo de discriminação.
O julgamento, iniciado em fevereiro e retomado nesta quinta, foi novamente interrompido. Uma nova sessão está prevista para 5 de junho.
Enquanto isso, parlamentares têm discutido propostas em resposta ao Supremo.
Compromisso de Bolsonaro
As negociações entre conservadores e progressistas estão sendo lideradas na Câmara dos Deputados por Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), um dos principais expoentes da bancada evangélica, e os petistas Maria do Rosário (PT-RS) e Carlos Veras (PT-PE).
À BBC News Brasil, Cavalcante disse que há um acordo para aprovar o aumento da pena em casos de homicídio e lesão corporal quando o crime ocorrer contra transexuais ou em razão de orientação sexual.
Uma versão da proposta a que a reportagem teve acesso prevê que as penas sejam aumentadas de um terço até a metade caso o crime ocorra contra transexuais ou em razão de orientação sexual.
Isso seria incluído no Código Penal, nos artigos 121 (que prevê reclusão de seis a vinte anos para o homicídio simples) e 129 (que estabelece detenção de três meses a um ano para lesão corporal).
A intenção é apresentar na próxima terça-feira a proposta em regime de urgência, o que permitiria uma aprovação na Câmara e no Senado em três semanas, na previsão do deputado.
As conversas ainda estão em andamento para o texto final do projeto de lei. Discute-se outras medidas para proteger essa comunidade, como a criação de tipificação penal específica.
Mesmo com a ampliação do placar no STF a favor da criminalização nesta quinta, Cavalcante disse à reportagem que mantém "o acordo e o trabalho de diálogo para tentar pacificar e legislar sobre o assunto".
Ele contou que já levou a questão ao Palácio do Planalto e que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) se comprometeu a sancionar o aumento da pena para homicídio e lesão corporal. O presidente, no entanto, disse que vetará uma tipificação específica de crime contra LGBTs, contou.
"Nesses dois itens, ele se compromete a sancionar. Isso está resolvido. Eu tenho compromisso. Só estou trabalhando porque vai ser sancionado", destacou.
"Eu já dei o discurso para ele (Bolsonaro). O discurso vai ser: 'meu governo, que foi chamado de homofóbico, resolveu o problema para a homossexualidade em seis meses o que o PT não resolveu em 13 (anos)", disse ainda Cavalcante, em referência ao tempo que o partido governou o país com Lula e Dilma Rousseff.
O deputado evangélico contou que está tentando convencer seus colegas a não incluir uma tipificação específica no projeto de lei.
"Se você colocar alguma coisa que ele veta, é tudo que ele precisa para (agradar) o eleitorado dele. Vocês estão dando um troféu para o cara", argumentou.
'Nunca antes'
Na manhã desta quinta-feira, a BBC News Brasil presenciou o momento em que os três parlamentares - Sóstenes Cavalcante, Maria do Rosário e Carlos Veras - cercaram o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, na saída do plenário da Casa, para relatar o andamento das negociações.
Rosário estava entusiasmada. "Nunca chegamos tão perto de um acordo para uma legislação nesse tema", disse a deputada à BBC News Brasil.
Ela ressalvou, porém, que a matéria ainda está em negociação e que não vai se "guiar" pela disposição de Bolsonaro em sancionar ou vetar determinados pontos.
A deputada apresentou em 2014 um projeto de lei que previa o aumento da pena em caso de homicídio e agressões motivadas por descriminação contra orientação sexual.
Sua proposta, porém, é bem mais ampla e previa a criação do crime de intolerância, com pena de um a seis anos, para quem exercer violência psicológica (bullying); negar emprego ou promoção sem justificativa legal; negar acesso a determinados locais ou serviços, como escola, transporte público, hotéis, restaurantes; negar o direito de expressão cultural ou de orientação de gênero; e negar direitos legais ou criar proibições que não são aplicadas para outras pessoas. A exceção prevista na proposta é o acesso a locais de cultos religiosos, que poderia ser limitado de acordo com a crença.
A petista sugeriu ainda a mesma pena (um a seis anos de prisão) para quem praticar, induzir ou incitar a discriminação por meio de discurso de ódio ou pela fabricação e distribuição de conteúdo discriminatório, inclusive pela internet.
Uma proposta dessa envergadura, porém, sofria resistência dos parlamentares conservadores. Segundo Cavalcante, a bancada evangélica também não vai apoiar o projeto de lei 672/19, aprovado nesta semana na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, estabelecendo ampla criminalização da homofobia.
Embora a articulação da bancada evangélica seja uma reação à ação analisada no STF, não está claro se a aprovação de uma mudança que se restrinja a aumentar a pena seria suficiente para influir no resultado do julgamento, já que a corte prevê enquadrar a homofobia e a transfobia na Lei do Racismo.
Essa lei trata justamente de inibir práticas amplas de discriminação, como recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou às escadas de acesso, negar ou obstar emprego em empresa privada, entre outros, por causa da raça.
Articulação entre Poderes
Por trás da negociação entre evangélicos e petistas está a movimentação do presidente do STF, Dias Toffoli, que tem conversado com os líderes dos demais Poderes da República (Bolsonaro, Maia e o presidente do Senado, David Alcolumbre) para tentar reduzir as tensões entre as instituições.
Nesse contexto, Cavalcante disse que Maia lhe pediu para elaborar um projeto, com sua assinatura. Ele, no entanto, prefere não colocar seu nome na proposta. O texto deve ser apresentado por Carlos Veras (PT-PE), relator do projeto de lei apresentado por Rosário em 2014.
"Não me agrega nenhum voto (assinar o projeto de lei), faz eu perder no meu segmento. Estou querendo fazer pelas pessoas, estou trabalhando pelo ser humano que é agredido e que é morto por essas questões", disse.
"Um cristão nunca defendeu lesão corporal e homicídio de ninguém por questões quaisquer, muito menos por questão de orientação sexual. Estou usando a palavra que eles (os grupos LGBT) gostam, para nós é outra palavra, mas vou usar a deles", disse ainda o parlamentar, em referência à expressão "orientação sexual".