Eleito com um discurso crítico ao que chamava de "velha política", o presidente Jair Bolsonaro não pediu indicações dos partidos políticos ao escolher os seus ministros. Vem tendo uma relação difícil com a Câmara dos Deputados e o Senado desde o começo dos trabalhos do Congresso, em fevereiro.
No entanto, às vésperas da votação na Câmara da Reforma da Previdência, o governo resolveu lançar mão de uma das práticas mais antigas de convencimento de parlamentares - a liberação de emendas ao Orçamento. A Reforma da Previdência é o projeto mais importante deste começo da gestão de Bolsonaro. Segundo especialistas, alterar as regras das aposentadorias é fundamental para ajustar as contas públicas. Só em julho, o governo liberou R$ 2,55 bilhões em emendas, de acordo com levantamento da ONG Contas Abertas.
A BBC News Brasil analisou os dados levantados pela Contas Abertas: entre os 10 congressistas da ativa que mais tiveram emendas empenhadas em julho, não há nenhum nome de partidos de oposição ao governo. O "Top 10" contempla partidos como o Podemos, o PP, o PL e o PSD.
As emendas são pequenas modificações que deputados e senadores fazem ao Orçamento da União. São usadas pelos congressistas para colocar dinheiro público em serviços e obras nas localidades onde eles têm votos - podem ser destinadas a manter um posto de saúde, reformar uma escola ou comprar uma ambulância, por exemplo.
A imprensa brasileira também noticiou acordos entre o governo e deputados para garantir a liberação de emendas nos Orçamento dos anos seguintes, como forma de conseguir mais votos para a Reforma da Previdência. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, o ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil) teria prometido R$ 40 milhões a cada deputado que votar a favor da Reforma Previdenciária, até 2022.
A reforma foi discutida em sessão na noite de terça e a votação deve acontecer nesta quarta (10).
Na terça, os deputados terminaram a fase conhecida como "discussão" do projeto - no qual congressistas contrários e favoráveis à proposta falam na tribuna. A previsão para esta quarta-feira é que a oposição apresente pelo menos mais quatro requerimentos antes que o texto possa ser votado. A Reforma da Previdência é uma proposta de emenda à Constituição (PEC), que precisa ser votada em dois turnos na Câmara antes de seguir para o Senado. Por isso, há a expectativa de que o tema continue sendo discutido ao longo da semana.
'40 milhões!'
As promessas de emendas já são parte do folclore do Congresso. Numa das entradas da Câmara, um grupo de sindicalistas de Brasília gritava "R$ 40 milhões! R$ 40 milhões!", toda vez que um deputado pró-reforma passava, na manhã de terça-feira (9).
De acordo com levantamento da Contas Abertas, o governo empenhou (primeira etapa para uso dos recursos públicos) R$ 2,551 bilhões para emendas apenas nos cinco primeiros dias deste mês. O valor supera tudo que foi empenhado antes disso no primeiro semestre do ano: R$ 1,77 bilhão.
Até meses atrás, Bolsonaro manteve o seu discurso contra o que chamava de "velha política". A última vez que usou o termo foi no fim de março, quando trocou farpas com Rodrigo Maia. Segundo ele, as rusgas aconteciam porque alguns congressistas se recusavam a "largar a velha política". "O que é articulação? O que falta eu fazer? O que foi feito no passado? Veja onde estão dois ex-presidentes. Eu não seguirei o mesmo destino de ex-presidentes, pode ter certeza", disse, numa referência a Lula (PT) e Michel Temer, ambos investigados por corrupção.
Desde 2015, o governo federal é obrigado a empenhar uma parte das emendas, graças à regra conhecida como "orçamento impositivo". O economista Gil Castello Branco, fundador da Contas Abertas, nota que isso não tirou totalmente o potencial de negociação em torno desses recursos, já que o governo ainda controla o ritmo de liberação das emendas ao longo do ano.
O levantamento, que abrange dados desde janeiro de 2016, mostra também que o valor já liberado em julho é o quarto maior para um mês em todo o período. O mês com maior liberação nesse intervalo foi maio de 2016 (R$ 3,8 bilhão), quando houve o impeachment de ex-presidente Dilma Rousseff. Na ocasião, tanto o governo Dilma quantos os aliados do então vice-presidente, o emedebista Michel Temer, negociaram votos em troca de emendas.
Outro período de grande desembolso, nota Castello Branco, foram junho e julho de 2017, quando estava sendo analisada na Câmara a primeira denúncia contra o já presidente Temer. Somados os dois meses, houve liberação de R$ 4,6 bilhão. Para dar uma dimensão de como esses valores são elevados, a média mensal entre janeiro de 2016 e junho de 2019 fica em R$ 740 milhões.
"O que acontece hoje em dia não é o que ocorria anos atrás, em que você favorecia um parlamentar da base em detrimento de outros, um partido, em detrimento dos demais. Agora você libera tudo, mas libera à conta gotas, estrategicamente, quando tem uma votação importante no Congresso Nacional", afirma. Castello Branco.
"As emendas parlamentares são um idioma, uma das formas como se comunicam o Executivo e o Legislativo. Isso acontece há décadas e agora não foi diferente. Houve uma concentração (de empenho de recursos) e inclusive promessa de liberar recursos além dos limites mínimos obrigatórios (do Orçamento Impositivo)", disse ele à BBC News Brasil.
Bolsonaro respondeu no começo da noite de segunda às críticas de que estaria trocando votos por recursos do Orçamento. "Por conta do Orçamento Impositivo, o governo é obrigado a liberar anualmente recursos previstos no orçamento da União aos parlamentares e a aplicação destas emendas é indicada pelos mesmos. Estamos apenas cumprindo o que a lei determina e nada mais. Boa noite a todos", escreveu ele.
Emendas extras?
Castello Branco se refere às promessas feitas pelo governo a parlamentares - de liberar verbas extras para gastos em suas bases além dos limites previstos no chamado Orçamento Impositivo (o equivalente a 1,2% da receita corrente líquida do governo).
Dentro dessas regras, o Orçamento aprovado pelo Congresso em 2018 para 2019 prevê quase R$ 15 milhões em emendas para cada parlamentar neste ano, além de R$ 3,6 bilhões para serem distribuídos entre as bancadas estaduais. A soma disso dá R$ 10,8 bilhões, dos quais R$ 4,3 bilhões já foram empenhados.
A BBC News Brasil conversou reservadamente com técnicos em Orçamento da Câmara para entender como seria possível o governo liberar emendas além do aprovado pelo Congresso no ano anterior.
Segundo estes técnicos, qualquer verba extra não seriam emendas parlamentares, do ponto de vista formal.
O que a administração Bolsonaro pode fazer é usar recursos livres nos orçamentos dos ministérios e destinar para gastos em regiões indicadas pelos congressistas.
Por exemplo: destinar verbas da pasta da Saúde especificamente para obras em um hospital da base eleitoral do deputado ou senador. O parlamentar poderá divulgar em sua base que foi seu pedido que garantiu o dinheiro, mas esse gasto não terá o carimbo legal de sua indicação.
Esse mecanismo também não é novo e permitiria ao governo beneficiar parlamentares de primeiro mandato, que não estavam no Congresso no ano passado, e por isso não têm direito a emendas no orçamento deste ano.
"Essa liberação de verbas extras sempre foi usado, veio junto com as caravelas (portuguesas, em 1500)", brinca um técnico da Câmara.
O deputado Bohn Gass (PT-RS) explica que este tipo de acordo é feito com a aprovação de um tipo de projeto chamado PLN (Projeto de Lei do Congresso Nacional), que remaneja os recursos dentro do Orçamento da União. "Você vai ver um monte de PLNs sendo aprovado. E aí vai ficar um recurso extra ali no Ministério da Saúde, mais um pouco no Ministério do Desenvolvimento Regional, e o governo vai chamar os seus deputados para 'apadrinhar' os projetos que receberam esse dinheiro", diz ele.
Deputados disseram à BBC News Brasil que este tipo de arranjo será feito com os ministérios da Justiça, da Agricultura e da Saúde, entre outros.
Deputados do Centrão foram os que mais receberam
A partir dos dados da ONG Contas Abertas, a BBC News Brasil analisou quais parlamentares que mais tiveram emendas empenhadas em julho.
As emendas empenhadas em 2019 correspondem ao Orçamento aprovado no ano passado. Por este motivo, a lista inclui também deputados que não têm mais mandato, seja porque não tentaram a reeleição para o Congresso em 2018 ou porque não conseguiram se reeleger.
Entre os que se reelegeram e, portanto, votarão a Reforma da Previdência, todos os dez que receberam maior valor são de partidos que vão do centro à direita. Parlamentares de partidos de esquerda, que fazem oposição ao governo, não aparecem no topo da lista.
Entre os dez mais estão os deputados Marco Feliciano (PODE-SP), com R$ 12,1 milhões; Alex Manente (Cidadania-SP), com R$ 11,9 milhões; Roberto de Lucena (PODE-SP), com R$ 10,1 milhões; Misael Varella (PSD-MG), com R$ 10 milhões; André Fufuca (PP-MA), com R$ 9,6 milhões; Altineu Côrtes (PL-RJ), com R$ 9 milhões; Celso Russomano (PRB-SP), com R$ 8,5 milhões; e Eli Côrrea Filho (DEM-SP), com R$ 7,5 milhões. Completam a lista dos dez parlamentares os senadores Ciro Nogueira (PP-PI), que é também presidente do PP, com R$ 7,6 milhões; e Mara Gabrilli (PSDB-SP), com R$ 7,6 milhões.
Quando a análise leva em conta todas as emendas do Orçamento de 2019 empenhadas desde o começo do ano para deputados e ex-deputados, porém, o quadro que emerge é de mais equilíbrio na divisão.
Deputados do PT conseguiram empenhar em média R$ 5,5 milhões este ano - o valor é próximo do conseguido por deputados do DEM, por exemplo (R$ 5,9 milhões). Estes dados foram levantados pela reportagem da BBC News Brasil por meio da ferramenta Siga Brasil.
Segundo um deputado do Partido Progressista (PP), a questão das emendas é relevante principalmente para os deputados de Estados do Norte e do Nordeste. "O meu eleitorado (no Sudeste) já está me cobrando para que eu vote a favor da reforma, então eu já ia votar a favor independente de emenda. Para a gente do Sul e do Sudeste é mais fácil votar a favor, mas os colegas principalmente do Norte e do Nordeste precisam ter essa contrapartida (das emendas) para mostrar para o eleitorado deles", diz, sob condição de anonimato.
O congressista diz que em seu partido não houve promessa explícita de valores - o líder da bancada apenas avisou que "um valor extra" seria liberado em emendas. "Ele chegou e disse 'vai ser liberado um valor extra. Apresente os seus pedidos, e faça uma ordem de prioridade (do que deve ser liberado primeiro, conforme o dinheiro apareça)", diz o deputado, também sob anonimato.
"Eu mesmo apresentei só R$ 6 milhões. No momento não sabia que tinha essa coisa de R$ 20 milhões". Até agora, este congressista do PP teve cerca de R$ 4,5 milhões empenhados em emendas, segundo a ferramenta Siga Brasil.
A reportagem da BBC News Brasil apurou que a liberação das emendas está sendo negociada pela Secretaria de Governo (Segov), hoje comandada pelo general de Exército Luiz Eduardo Ramos. Formalmente, a decisão de pagar ou não uma determinada emenda é do ministro da pasta à qual ela está ligada. Por exemplo: se o deputado apresenta uma emenda para a construção de um posto de saúde, a decisão de pagar ou não cabe ao Ministério da Saúde.