Nas últimas semanas, membros do Ministério Público Federal têm demonstrado insatisfação com a suposta proximidade entre o chefe da instituição, o procurador-geral Augusto Aras, e o presidente da República, Jair Bolsonaro. A "rebelião" contra Aras ocorre num momento em que várias posições de poder na estrutura do órgão estão em disputa e reúne no mesmo barco integrantes de diferentes "alas" do MPF.
Nesta segunda-feira (8), o Ministério Público renovará os integrantes das sete Câmaras de Coordenação e Revisão (CCRs), colegiados temáticos que integram a estrutura do órgão. De três integrantes titulares das Câmaras, um é indicado pelo atual PGR — mas outros dois são eleitos pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF). Por isso, a escolha pode se tornar um teste da força de Aras dentro do MP.
No fim do mês, mais um lance importante na dança das cadeiras interna: os procuradores vão escolher 4 dos 10 integrantes do Conselho Superior, nos dias 23 e 30 de junho. O CSMPF é o órgão máximo de decisão do Ministério Público Federal, e suas decisões impactam fortemente o funcionamento da instituição.
Manifesto da maioria dos procuradores
A renovação na estrutura do Ministério Público acontece num momento ruim para Aras. Na semana passada, um manifesto de procuradores atingiu a marca de 655 assinaturas ao pedir que o Congresso inclua na Constituição o mecanismo da lista tríplice na escolha do PGR.
O número representa mais da metade dos cerca de 1.150 membros do MP em atividade no país. E inclui profissionais de diferentes "alas": desde procuradores ligados ao combate à corrupção e à Lava Jato até membros que atuam em questões de direitos humanos.
Embora não faça críticas diretas a Aras, o texto foi mal recebido por ele — o procurador baiano foi o primeiro a ser indicado para o cargo fora da lista tríplice desde 2003.
No fim da semana anterior, o atual PGR minimizou a importância do ocorrido e disse que o manifesto, de apenas dois parágrafos, era genérico. "Nesses termos, até eu assinaria esse abaixo-assinado", disse.
"É um tema que nunca foi debatido no Congresso. Todavia, eventual propositura de uma PEC (uma proposta de emenda à Constituição) poderia ensejar reformas de toda sorte na estrutura do Ministério Público, atingindo direitos e prerrogativas constitucionais", disse ele, em tom de alerta.
Os organizadores do manifesto negam que o objetivo seja atingir o procurador-geral — mas admitem que o movimento pode ter gerado incômodo.
"Ninguém questiona a legitimidade de Aras como PGR. Foi escolhido dentro do trâmite legal. Mas, para ele, tratar da lista tríplice é como falar de corda em casa de enforcado", diz um profissional à BBC News Brasil, sob anonimato. "Resumir a questão à pessoa de Aras seria apequenar a pauta. A lista tríplice é algo que existe desde 2003."
'Oportunismo e ressentimento'
Já no entorno de Augusto Aras, a percepção é a de que o manifesto é movido por oportunismo, e por ressentimento de pessoas que foram derrotadas na disputa pela PGR.
"É típico da disputa política, mas preferia que não fizessem. Porque, bem ou mal, é o chefe da nossa Casa, num momento difícil (...). Estamos no meio de uma pandemia, temos mais de 30 mil mortos no país, e os colegas preocupados com lista tríplice?", questiona um procurador próximo a Aras, sob anonimato.
"Da última vez que essa máquina foi ligada, foi contra a (ex-PGR) Raquel Dodge, alegando que (um projeto encampado por ela) violava o princípio do promotor natural. O que não era verdade, mas colheu 600 assinaturas. Então, o mesmo grupo que fez aquilo contra a Raquel no ano da eleição dela (2019, quando ela tentou mais dois anos no cargo), agora está movendo o mesmo mecanismo. É a segunda vez que tentam enfraquecer o PGR, o que é um tiro no pé", diz ele, sob anonimato.
Segundo o profissional, há também um interesse político de parte do MPF em pressionar Aras para atingir Jair Bolsonaro — o procurador-geral é o único que pode apresentar denúncia contra o presidente.
Coube à deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) elaborar uma proposta de emenda à Constituição (PEC) para incluir a escolha do PGR por meio da lista tríplice na Constituição.
No momento, Joice está coletando as assinaturas necessárias para formalizar a proposta. Ela já tem quase 100 das 171 assinaturas de deputados necessárias.
Atualmente, a Constituição determina que a escolha do PGR cabe ao Presidente da República. No entanto, desde 2003 todos os ocupantes do cargo foram escolhidos dentro da lista tríplice (de três nomes) eleita pelos membros do MPF, numa disputa organizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).
Do 'pessoal dos Direitos Humanos' à Lava Jato
Para descontentamento de Augusto Aras, a lista de signatários do manifesto pró-lista tríplice é bastante ampla: inclui procuradores com diferentes posições políticas e distintas áreas de atuação.
Assinam o texto, por exemplo, quase todos os procuradores que estavam na primeira formação da força-tarefa da Lava Jato no Paraná: Deltan Dallagnol; Januário Paludo; Douglas Fischer; Roberson Pozzobon, Laura Tessler e Isabel Groba, entre outros. Além deles, há também procuradores que atuam ou já atuaram na Lava Jato em outros Estados.
No caso da Lava Jato paulista, assinam o manifesto as procuradoras Janice Ascari e Thaméa Danelon.
De outra parte, também subscrevem o texto procuradores que atuaram na gestão da ex-titular da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), Deborah Duprat — recém-aposentada, ela era uma das principais defensoras das pautas de Direitos Humanos dentro do MPF.
Dois dos signatários do texto, Domingos da Silveira e Eugênia Gonzaga, foram adjuntos de Duprat na PFDC. Também assinam o manifesto dezenas de procuradores que integraram grupos de trabalho da PFDC durante a gestão de Deborah.
Um outro organizador do manifesto explica que a iniciativa surgiu com procuradores ligados ao tema dos direitos humanos — e depois se espalhou, por listas de e-mail e grupos de WhatsApp, para colegas de outras áreas.
"O MPF, ao contrário do que algumas pessoas pensam, ele é bem heterogêneo. Ele tem de tudo (...). Tem gente de todos os campos, da direita e da esquerda", diz ele, sob anonimato.
"E aí, dentro do grupo (informal) de colegas que atuam em Direitos Humanos, a gente começou a pensar em levantar essa questão da independência do MPF. Independente de discutir o Aras, porque não é algo simplesmente direcionado ao Aras, mas reforçar a questão da independência do MP", diz o procurador.
Proximidade do PGR com Bolsonaro?
Nas últimas semanas, Augusto Aras se tornou alvo de críticas de procuradores por supostamente ter se aproximado do presidente Jair Bolsonaro, o que ele nega.
Desde o início do mandato, Aras se encontrou com Bolsonaro por seis vezes — muito mais que a antecessora, Raquel Dodge. Ela só esteve com o ex-presidente Michel Temer duas vezes durante o período correspondente.
A última demonstração pública de alinhamento partiu do próprio Bolsonaro: no fim de maio, o presidente acompanhava por videoconferência uma solenidade presidida por Aras na sede da PGR, quando o presidente então "se convidou" para encontrar o procurador-geral. Bolsonaro atravessou a Esplanada e passou cerca de 15 minutos com Aras.
No mesmo dia, Bolsonaro lançou nota dizendo "acreditar" no arquivamento de um inquérito aberto para investigar as suspeitas de interferência dele na Polícia Federal. A decisão sobre arquivar ou não cabe a Aras.
"No âmbito macro, a gente tem começado a passar vergonha, né? Por que ele vai nas posses, ele senta como se fosse da equipe, vai fazer reunião (com integrantes do governo). E isso não é normal, do jeito que ele faz. Ele é vendido pelo Bolsonaro como alguém da equipe", disse um procurador à BBC News Brasil, sob anonimato.
Aras, por sua vez, nega ser próximo do presidente da República. "Na verdade, não sou amigo do presidente. Não temos relações de amizade. Temos relações de respeito", disse ele numa entrevista ao programa Conversa com Bial, da TV Globo, na semana passada.
Para que servem os cargos em disputa
Nesta segunda-feira (08), os membros do Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF) e Augusto Aras vão escolher os integrantes das sete Câmaras de Coordenação e Revisão (CCRs) do Ministério Público.
O processo deveria ter acontecido semana passada, mas foi adiado depois que o secretário-geral da PGR, Eitel Santiago, contraiu o novo coronavírus.
As Câmaras são formadas por três titulares e três suplentes. Em ambos os casos, dois dos três são eleitos pelos membros do CSMPF; o terceiro é indicado pelo PGR. Aras também deve indicar o coordenador de cada uma das Câmaras.
Cada um dos colegiados tem uma especialidade: a 4ª Câmara, por exemplo, atua em casos de Meio Ambiente; a 5ª lida com processos que dizem respeito à corrupção, a 6ª trata dos direitos das populações indígenas e das comunidades tradicionais, e assim por diante.
Das funções das Câmaras, duas são consideradas as mais importantes.
Quando um procurador decide arquivar uma investigação, cabe ao colegiado dizer se está de acordo ou não com o arquivamento. As Câmaras também emitem pareceres sobre determinados assuntos recorrentes em sua área de atuação. Esse parecer pode ser seguido ou não pelos procuradores, que possuem independência funcional para atuar — no entanto, é um elemento que pesa na atuação dos profissionais.
Mais adiante, nos dias 23 e 30 de junho, os integrantes do MPF deverão decidir sobre quatro dos dez assentos no Conselho Superior do Ministério Público (CSMPF), órgão máximo de deliberação do órgão.
São muitas as atribuições desse conselho: ele formula desde as regras para a distribuição de inquéritos entre os procuradores até as diretrizes para os concursos públicos da instituição.
Em cada dia, serão escolhidos dois integrantes, por meio de votação. Para duas dessas vagas, só votam os subprocuradores-gerais da República — profissionais que estão no terceiro e último degrau da carreira. As outras duas vagas são escolhidas por todos os membros do MPF.